Medo, Aviões e Números
Tenho medo de muita coisa. Todo mundo tem. Quem diz não ter
medo de nada, mente. Além disso, todos nós – pelo menos aqueles de nós que
param para refletir sobre o assunto – guardamos dentro alguma coisa que vai
além do medo: um terror absoluto do qual nossos pensamentos e sensações não
conseguem escapar. É o medo para acabar com todos os outros medos. No meu caso,
o maior terror imaginável é estar num desastre aéreo catastrófico.
Esse medo não começou cedo. Desde que era bebê já pegava
avião com meus pais e avós. Quando criança viajei muito, inclusive longas
distâncias para fora do Brasil. Adorava voar com seis, nove ou doze anos de
idade. Era parte da aventura de ir conhecer outros lugares. Não mais. Há pelo
menos quinze anos algo mudou para mim e só vem piorando.
Começou mais ou menos na época em que os Mamonas Assassinas
morreram num desastre de avião e em especial depois que vi, um tempo depois, as
fotos dos corpos deles na internet. Desses anos para cá não ajudou nada ter
visto fotos dos acidentes da TAM em Congonhas e da Gol (aquele que se chocou
com o jatinho e levou a pior).
Dizem que aquelas pessoas não sentiram “nada”: nem medo, nem
pavor ou dor. É mentira. Podemos estar quase certos de que o momento final foi
muito rápido. Mas os momentos que antecedem o impacto, os segundos ou até
minutos, são o suficiente para eu saber que de todas as formas possíveis de
morrer essa não é a que desejo para mim.
Não me agrada também que essa forma de morrer causa uma
completa e grotesca destruição física. Isso não é exclusividade de acidentes
aéreos: uma violenta batida de carro pode causar danos tão grotescos quanto.
Mas associar esse conhecimento com o já existente medo de voar torna a coisa
toda ainda mais aterrorizante. Como Júlio César disse na peça de Shakespeare:
“O covarde morre muitas vezes antes de morrer. O valente experimenta a morte só
uma vez.” Dentro de um avião, valente não sou.
Na semana em que o voo da Air France entre Rio-Paris caiu,
eu voei Atlanta-Rio poucos dias antes. Nesse voo houve uma severa turbulência
que durou horas. Assim que atingimos o caribe, o Boeing 777 no qual eu estava
parece que entrou numa sequência interminável de cumulonimbus.
O serviço de bordo estava em pleno andamento, mas teve que
ser interrompido no momento em que houve, de forma repentina, uma queda tão
acentuada de altitude que a aeromoça que estava do meu lado servindo o jantar
teve que se jogar ao chão e segurar no encosto das cadeiras do corredor para
não voar até o teto da aeronave.
Depois dessa queda, seguiram-se mais duas, uma ainda mais
grave, mas dessa vez todos dentro do avião já estavam devidamente sentados e
amarrados em suas cadeiras, incluindo os atendentes de voo. O resto da jornada
foi inteiramente dominado por turbulência severa e pequenas quedas. Por oito
horas seguidas o aviso de permanecer sentado com o cinto de segurança afivelado
permaneceu ligado e o serviço de bordo só retornou faltando meia hora para o
pouso no Rio, quando finalmente a coisa melhorou.
Fazem mais de cinco anos desde que isso aconteceu. Já voei
muitas vezes desde então, inclusive poucas semanas depois desse ocorrido.
Alguns desses vôos foram tranquilos. Outros foram terríveis (mas não tanto),
inclusive dois vôos que peguei há poucas semanas; me arrependi de não ter ido
de ônibus, muito embora teria sido uma viagem de 14 horas.
Alguém certamente irá dizer: “mas é muito mais seguro viajar
de avião do que de ônibus ou carro”. Tendo estudando um pouco de estatística na
faculdade e entendendo como ela funciona eu sei que não é bem assim que a banda
toca. A estatística apresentada pelo setor aéreo mundial para dizer “avião é a
forma mais segura de viajar” é por distância percorrida, não por
viagem.
Sim, por distância percorrida numa viagem, avião é o meio de
transporte mais seguro. Lógico: aviões saem de São Paulo e vão para Paris ou
Nova Iorque todos os dias. Logo atrás vem ônibus e trem – bem atrás, não é uma
diferença tão enorme quanto geralmente se pensa.
Contudo, utilizando esse método de distância percorrida, as
missões Apollo para a Lua foram quase tão seguras quanto viajar de carro,
quando, na realidade, elas tiveram um risco muito maior. O mesmo vale para o
ônibus espacial: quase tão seguro quanto viajar de carro, utilizando essa
metodologia. De nada adianta dar várias voltas em torno da Terra se o ônibus
espacial se acidentar e todos morrerem no final da jornada – coisa que já
aconteceu. O mesmo vale para aviões.
Mas se observarmos o número de fatalidades por
viagem, ônibus é disparado a forma mais segura de se viajar. Logo atrás
vem viagens de trem. Calculando dessa forma, viajar de carro é três vezes mais
seguro do que viajar de avião. Sei que isso vai contra a “doutrinação” que se
faz a respeito da segurança de voar, mas contra números não se pode fazer nada.
Por viagem, até viajar de barco é bem mais seguro do que avião (mas menos que
ônibus, trem e carro, e o mais perigoso de todos os métodos é motocicleta,
independente do tipo de cálculo).
Isso faz sentido quando entendemos que o número de carros e
ônibus no mundo é muito maior que o de aviões. A estatística da distância
percorrida não leva isso em conta. A proporção de aviões da Boeing ou Airbus
que caíram em relação aos que foram fabricados é muito maior do que a proporção
de carros que a Fiat ou Volkswagen fabricaram e que sofreram acidentes onde
todo mundo morreu. Se levarmos em conta modelos específicos de aviões e carros,
a coisa fica ainda pior.
O problema é que quando repetem o mantra “VIAJAR DE AVIÃO É
MUITO MAIS SEGURO DO QUE VIAJAR DE CARRO OU ÔNIBUS”, todo mundo pensa que essa
é uma probabilidade baseada em número de viagens, quando na verdade não é. Ou
seja: não se leva em conta o número de vezes que se entra dentro de um avião
para o cálculo utilizando o método da distância percorrida. Aquela velha
história de que temos mais chances de morrer indo de carro até o aeroporto do
que num desastre aéreo não é correta.
Então que fique claro de uma vez por todas:
Por viagem: não, avião é menos seguro que navio, carro,
trem e ônibus. Por distância: sim, avião é mais seguro que todos os outros
meios de transporte. E motocicletas são sempre mais perigosas, independente da
metodologia.
Entre 1988 e 2007, cerca de 33.500 pessoas morreram em
acidentes comerciais de avião. Se levarmos consideramos uma população mundial
de seis bilhões de pessoas, a chance de morrer num acidente é uma em 179.104,
caso você viaje a média de viagens de avião que uma pessoa faz por ano.
Mas, de acordo com a Boeing, o número de passageiros-voo no
mundo é de 1,09 bilhão. Ou seja: a média de viagens por ano é 0,181666666667,
que eu aqui vou arrendondar para baixo: 1/6 por ano. Ninguém viaja 1/6 de avião
por ano. Se arredondarmos isso para um voo por ano, a chance de morrer num
desastre agora aumenta de uma em 179.104 para cerca de uma em 30.000. Isso é
muito maior do que 1 em 20 milhões, ou até mais, como às vezes são reportadas
as chances de morrer num desastre aéreo.
Há outras formas de se calcular a segurança de um meio de
transporte. Uma delas é a quantidade de horas viajadas. Por horas viajadas, viajar de ônibus ainda
é o método mais seguro seguido de trem e avião. Só depois desses três vêm
viagens de barco e, bem depois, carro (mas ainda assim moto é o mais perigoso
de todos). Ou seja: por horas de viagem, avião ganha do barco e carro, mas
ainda assim perde para trens e ônibus.
Se observarmos a chance de sobreviver a um evento
catastrófico, um desastre de ônibus pode matar todos os que estão dentro, mas
não é algo tão comum quanto se pensa. A chance de sobrevier a um acidente de
ônibus (ou de carro) considerado grave é bem maior do que sobreviver a um
acidente de avião grave. Conheço pessoas que estiveram em acidentes de carro
gravíssimos e sobreviveram. Praticamente não existem pessoas vivas que
estiveram em acidentes de avião gravíssimos (apesar de que elas existem: foram
seis ou sete nos últimas três ou quatro décadas).
Por fim, é possível calcular a chance de morrer num acidente de avião baseado até na qualidade das companhias aéreas. As top 39 companhias nos dão uma chance em 19,8 milhões, as piores 39 dão uma em 2 milhões, e nas 78 maiores companhias aéreas do mundo a chance é de uma em 4,7 milhões. Em qualquer um desses casos é mais fácil morrer num acidente aéreo do que ganhar na Mega-Sena, Timemania ou Lotomania.
Agora que lidei com o mito de que aviões não caem, posso
dizer: eles continuam sendo muito seguros.
Você que me lê e provavelmente acreditava (ou ainda
acredita, fazer o quê) que aviões são mais seguros do que carros sob
qualquer ótica, por acaso deixa de andar de carro por causa disso? Não. Nem
eu deixo de andar de avião por saber que as estatísticas são, de certa forma,
apresentadas incorretamente para favorecer a indústria. Bem que eu queria não
ter mais que voar – e um dia, se puder, irei deixar de fazê-lo. Mas por
enquanto não.
O medo, porém, vai muito além dos números. Digamos que a
probabilidade mais correta é mesmo a de distância percorrida e que aviões são o
meio mais seguro de se viajar para qualquer lugar (o que não é verdade, mas
vamos fingir que seja). Mesmo assim, se fosse possível, eu preferiria não ter
que voar para nenhum lugar. Mesmo que a única outra alternativa fosse passar
semanas dentro de um barco.
“Mas por quê?”, você pergunta. A explicação é mórbida, mas
morbidez faz parte da vida e não adianta nada virar o rosto e fingir que não
existe. É o seguinte: quase todo mundo que chegou numa certa idade já parou
para pensar como gostaria – ou não – de morrer. É triste, mas é uma realidade:
a probabilidade é de 100% que todo mundo irá morrer um dia e muitos de nós têm
preferências – eu incluso.
De todas as maneiras possíveis de morrer que já contemplei,
a que menos me agrada é um desastre de avião. Você pode me dizer “mas o impacto
é rápido” que eu respondo: mas os segundos ou até minutos (de 35 mil pés de
altitude leva um bom tempo até o impacto com o solo ou água) de terror que
antecedem são intoleráveis para mim.
Segundos que se tornam meses. Um tempo tão curto e cheio de
terror no qual eu não terei tempo de dizer adeus para ninguém e,
principalmente, não terei tempo de aceitar o meu fim. Já tive amigos que
disseram que preferiam morrer num desastre aéreo do que de doença. Bom para
eles, mas não é o meu caso.
O meu medo, mesmo aceitando que aviões são o meio mais seguro
de viajar (e isso dependerá do tipo de estatística apresentada), anula a
probabilidade. Na verdade, o medo é multiplicado pela probabilidade.
Meu medo de andar de carro é ínfimo. Se eu multiplicar esse
medo ínfimo pela probabilidade de que o carro irá bater (que é muito mais baixa
do que se acredita), o número será pequeno.
Meu medo de voar é gigantesco. Se eu multiplicá-lo pela
probabilidade (mesmo ela sendo pequena) de que o avião irá cair, vai dar um
número enorme. Esse é o aspecto qualitativo da coisa. A
probabilidade, mesmo quando é favorável, como no caso da “distância
percorrida”, leva em conta somente o aspecto quantitativo.
Pode até ser que um dia voar se torne o meio mais seguro de
locomoção levando sob qualquer ótica analisada e eu tenha que calar minha boca
com relação a isso. Não vai interessar muito, porque a possibilidade, mesmo
remota, ainda vai estar lá – e o medo, esse não ligará para estatística alguma,
como já não o faz hoje.
Por evento, é muito mais provável eu ser assassinado saindo
à noite para tomar cerveja com amigos em determinados lugares do que morrer num
desastre aéreo, mas nem por isso eu deixo de ir tomar cerveja com meus amigos.
O medo, ou a falta dele, não liga para números, nem quando eles são favoráveis.
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Referências usadas (incluindo os números, exemplos, etc),
nesses links: