Sobre ideologias e economia política (ou: por que abandonei o liberalismo, critico o capitalismo, defendo o socialismo democrático e não defendo regimes de partido único “comunista”)
O liberalismo ao qual irei me referir neste texto é a encarnação contemporânea do liberalismo clássico. Existem várias escolas de pensamento diferentes que se encaixam dentro dessa matriz ideológica. Dois exemplos famosos são a escola austríaca de economia e a escola de Chicago. Seus maiores expoentes, Milton Friedman (Chicago) e Murray Rothbard (escola austríaca), discordavam bastante um do outro, por exemplo. No entanto, apesar das diferenças, todas as escolas de pensamento liberais contemporâneas convergem na defesa do capitalismo desregulado, sem grandes intervenções por parte do estado — em alguns casos, elas defendem a abolição do estado e a privatização de todos os aspectos da vida humana. Podemos chama-los todos de neoliberais daqui para frente, muito embora essa denominação não seja de seu agrado.
Para o neoliberal, desde que um indivíduo não machuque os outros, nem danifique ou roube a propriedade alheia, a liberdade individual dele deve ser garantida. Forçá-lo a fazer qualquer coisa ou tomar sua propriedade vai contra o princípio de não-agressão, princípio adotado de forma mais ou menos explícita por quase todas as escolas de pensamento liberal. A aplicação deste princípio variará caso o neoliberal defenda o estado mínimo ou caso ele defenda o fim do estado por completo. Importante mencionar aqui um texto meu, de 2009, que ainda circula em alguns sites neoliberais brasileiros como se fosse mais atual, chamado "Os Ensinamentos Libertários de South Park". Originalmente postado no blog que viria a se tornar este site, esse texto está muito mal escrito, algo que já podemos notar a partir do título. Porém, ele serve para ilustrar a parte social da ideologia neoliberal a qual aderi anos atrás — isto quer dizer, pelo menos no que concerne as implicações sociais do princípio de não-agressão. O texto, apesar de ser muito mal escrito, tentava dar exemplos da aplicação desse princípio.
Na época, acreditava que o estado não deveria intervir nem em casos de conflitos sociais, pois pensava que qualquer intervenção estatal na sociedade ou na economia era "engenharia social" — e, por alguma razão, considerava isso necessariamente ruim, sempre, independente da situação. Algo que defendi naquele texto foi o direito ao porte de armas e o direito à autodefesa com armas em caso de ataques. Ou seja: defendia que todos nós deveríamos ter o direito de usar armas para defender nossa vida e nossa propriedade. Defendi, por exemplo, o direito de casais gays defenderem a si e a sua propriedade de fascistas preconceituosos, caso tivessem sua integridade física e sua propriedade atacadas. Contudo, na minha antiga visão neoliberal, qualquer tentativa do estado de mediar a situação e criar uma sociedade mais tolerante era vista por mim — dentro daquela ideologia — como indesejável. O dogmatismo me impedia de aceitar uma sociedade harmoniosa graças à ação política, acreditava que qualquer mudança positiva deveria partir dos indivíduos.
Obviamente, mudei de posição e discordo disso já fazem alguns anos. Não preciso perder muito tempo falando que de 2009 para cá (e em especial depois de 2011) meus posicionamentos sobre tudo mudaram bastante, ainda bem. Sobre o exemplo específico que dei, hoje penso que o estado pode e deve promover um ambiente de maior tolerância — porém, ainda não acredito que seja possível promover um ambiente de total aceitação, porque não acredito que todos estariam dispostos a isso, e também por acreditar que todos devem ter o direito à livre consciência, mesmo que essa consciência seja uma porcaria. Neste ponto, quero deixar claro que ainda concordo com o liberalismo quando tratamos da liberdade de consciência e expressão, seja ela politicamente correta ou não, e independente dela constranger setores conservadores ou progressistas da sociedade — desde que essas opiniões não sirvam para cercear as liberdades, direitos e a integridade física dos outros. De qualquer forma, para que fique claro: hoje penso que é sim papel do estado a promoção de um ambiente onde preconceitos, racismo, homofobia e outras mazelas sejam eliminadas ou, no mínimo, contidas ao máximo. Também sou totalmente contra o livre porte de armas para todos em um país como o Brasil, porque não tenho dúvidas de que o armamento livre causaria um banho de sangue ainda maior do que o existente hoje.
Já no campo político-econômico, o neoliberalismo que defendi está alicerçado nos seguintes pontos: propriedade privada dos meios de produção, livre mercado, livre comércio entre as nações e desregulamentação. Basicamente, defendia o capitalismo sem intervenção estatal. Desde então, felizmente, entendi que isso não existe. Se há propriedade privada dos meios de produção, há estado. Os dois se complementam. Portanto, a intervenção do estado existirá sempre. Aos poucos, entendi que a intervenção em si não é necessariamente problemática, mas sim a forma como ela é feita — um anátema para os neoliberais. Mesmo nos países com alto grau de liberdade econômica ainda existe um estado interventor que subsidia de uma forma ou de outra a atividade econômica. A diferença é que nos países capitalistas com maior grau de desregulamentação, o estado intervém para ajudar justamente quem está no topo da pirâmide socioeconômica. Diferentemente do mito que circula entre os neoliberais de internet, quanto mais liberal a economia de um país é, em geral, mais os ricos lucram e mais os trabalhadores são explorados — exatamente como afirma a tese marxista, por exemplo.
Não existe não-intervenção. Ao deixar uma megacorporação lucrar os tubos sem precisar pagar impostos corporativos, e ao permitir que seus dirigentes e acionistas majoritários paguem pouquíssimos impostos, o estado não está sendo legal e respeitador dos direitos naturais de propriedade dessas pessoas — ele está ferrando com o resto da sociedade. As diferentes escolas neoliberais pensam de forma diferente sobre como surge a propriedade privada dos meios de produção. Para algumas, ela existe apenas com o aval do estado, enquanto outras acreditam que ela surge naturalmente, das relações entre os homens. Os neoliberais que creem que a propriedade existe apenas com a garantia do estado pensam que ela pode, neste caso, ser tratada de maneira utilitária pelos governantes (algo que a escola austríaca teme, mas que não é totalmente rejeitado pelos Chicago boys). Já para aqueles que a consideram natural, ela é um direito sagrado que não pode ser tocado sem a permissão do dono. Quando um neoliberal defende o estado mínimo, geralmente, as únicas áreas que ele acha que devem ser financiadas com o dinheiro público são a segurança e a justiça. Isso se deve porque, na visão dele, o estado existe somente para assegurar os direitos naturais — ou úteis, dependendo da escola — de vida, liberdade e propriedade, e fazer cumprir contratos particulares. Nesse caso, o princípio de não-agressão não leva em conta a (suposta) "agressão" do governo em cobrar impostos para financiar segurança e justiça.
Para os poucos neoliberais que defendem o fim do estado — às vezes chamados de anarcocapitalistas — até mesmo um imposto baixo fere o princípio de não-agressão. Isso ocorre porque, para eles, a propriedade privada é um direito natural e, portanto, tomá-la sem o explícito consentimento do dono é roubo. É por essa razão que eles são a favor da privatização de absolutamente tudo, inclusive do sistema de justiça, das ruas, da infraestrutura, etc. Não tratarei a fundo desse caso mais extremo aqui, pois ele é obviamente ridículo, mas o que escreverei sobre o liberalismo econômico em geral também poderá ser aplicado a ele. Sobre o anarcocapitalismo, basta dizermos o seguinte: a última coisa que bilionários querem é viver num ambiente onde não há estado e, caso o estado seja derrubado, os próprios capitalistas criarão outro no dia seguinte, justamente para assegurar que existam leis e governantes dispostos a usar a força física para defender sua propriedade e seu privilégio econômico. De novo, a análise marxista se mostra correta. Poder econômico e poder político andam necessariamente juntos dentro do sistema capitalista — e o principal problema da civilização moderna não é o estado, mas o capitalismo. Os críticos do capitalismo sempre estiveram certos quanto a isso. É necessária uma enorme ginástica mental para negar esse fato, coisa que fiz durante anos, infelizmente.
Minha crença era a mais comum de todas dentro do meio neoliberal: defendia alguma variante tosca do jusnaturalismo lockeano, não o utilitarismo, ao mesmo tempo em que defendia o estado mínimo. Segundo a crença que tinha, uma sociedade que respeitasse os direitos de vida, liberdade e propriedade privada acabaria prosperando, como que por mágica, não por alguma razão técnica. Acreditava que a melhor forma de organização econômica era o mercado desregulado e que taxar qualquer segmento da população era ruim — inclusive (e em especial) os ricos, já que eles eram, ao meu ver, os "geradores de empregos". Como era ingênuo. Pensava que o direito natural à propriedade privada dos meios de produção (algo que, mesmo antes de abandonar o liberalismo, já começara a ver como sendo um conceito falso, porém ainda o considerava útil) produzia, de maneira espontânea, uma sociedade na qual o bem-estar era maximizado para todos. Acreditava que a culpa dos desequilíbrios econômicos e das mazelas sociais era do estado interventor, que não apenas arruinava os direitos individuais, como também tornava a produção de riquezas menor e menos igualitária.
No entanto, algumas das críticas que os neoliberais fazem parecem verdadeiras, especialmente quando observamos o caso do Brasil — aliás, esse é um dos motivos pelos quais muitos caem na esfera de influência do pensamento liberal. É difícil defender a manutenção de altos impostos quando temos serviços públicos tão deficientes. Parecemos ser um dos maiores — se não o maior — exemplo de como o dinheiro público é desperdiçado nas mais variadas desgraças. Só uma pessoa obtusa se espanta com a reação de ojeriza aos mais de dez anos de um governo que usou dinheiro público para favorecer construtoras bilionárias, isso quando não financiavam protótipos de ditadores, como Hugo Chávez e Nicolás Maduro, como se estes fossem grandes expoentes da luta latino-americana contra o imperialismo americano. Não foram e nem são. São apenas exemplos de líderes violentos, autoritários e burros.
Não bastasse isso, quem mais se beneficiou durante o governo da última década foram os ricos e não os pobres — muito embora, durante o período pré-recessão, os pobres também tenham se beneficiado, graças à expansão econômica brasileira e graças aos programas sociais da era Lula. Não critico os programas sociais do governo petista, pelo contrário, apoio. O bolsa família foi provavelmente o melhor programa de ajuda aos menos favorecidos da história do Brasil. No entanto, foram os bancos, principalmente os bancos privados, os mais beneficiados com a política de crédito fácil que enganou uma enorme camada da população, fazendo ela acreditar ter maior poder aquisitivo quando, na verdade, não era dona de nada. Até nisso os liberais, na minha concepção, ainda poderiam ter uma certa razão: uma expansão econômica baseada em crédito fácil artificial é como um castelo de cartas prestes a desmoronar — e foi o que acredito que aconteceu com a economia brasileira. Mas, se concordo com todas essas críticas feitas pelos liberais, por que então não digo que sou liberal? O que passei a defender? Para responder, olho para outro texto tosco meu, de 2013, intitulado "Ideologia: eu não quero uma pra viver". Escrevi aquelas coisas ainda na infância da minha fase pessimista. Assim como quando as escrevi, ainda hoje enxergo-me anti-idealista (no sentido político mais simplório da palavra, não no sentido filosófico). Porém, algumas coisas mudaram desde então. Uma delas foi ter estudado Marx para além dos autores neoliberais — e para além da visão neoconservadora de certos pseudo-gurus da internet.
Na conclusão do texto "Ideologia: eu não quero uma pra viver", deixei claro o desapego ideológico que tinha na época quando escrevi, parafraseando, que não me importava que o estado brasileiro cobrasse altos impostos, desde que eles fossem revertidos em excelentes serviços públicos. Hoje eu acrescentaria as seguintes palavras: também gostaria que o estado provesse uma excelente infraestrutura e assistência social às camadas mais pobres da população. Sei o quão anti-intelectual a noção de não-ideologia é, especialmente aos que tendem à esquerda, mas preciso de um desconto, estava apenas começando. Acreditei ter tornado-me nada — muito embora meus posicionamentos políticos pudessem ser classificados como sendo majoritariamente de esquerda dentro do espectro político contemporâneo. Entendo que, para muitos, sempre somos algo, independe de nos considerarmos ou não, pelo simples fato de que nunca estamos fora da sociedade, logo nunca estamos fora do embate político. Também entendo que, para muitos, é um cacoete fascistóide falar em não-partidarismo, algo que argumentei contra em "Ideologia: eu não quero uma pra viver", erroneamente. Hoje enxergo esse erro e tendo a concordar que sim, é um cacoete fascistóide.
Ponto a ponto, assunto por assunto, diversas posições políticas que passei a defender de alguns anos para cá são, aos olhos dos liberais, políticas de esquerda ou socialistas. Aos olhos dos conservadores, então, nem se fala. Porém, a recusa em encaixar-nos em uma ideologia específica não é algo bem visto, e ainda fazia isso quando escrevi o tal texto em 2013. Tal recusa torna-se prelúdio de fascismo, diriam alguns. Essa crítica vem do fato de que, por mais que o fascismo real sempre tenha tido expressões partidárias, ele se apresentou como uma espécie de anti-ideologia e anti-partido, que vinha para (supostamente) resgatar os interesses da nação inteira e não de grupos específicos. Ou seja, ele sempre se apresentou como negação da "velha política". A minha não-especificação partidária, contudo, não tinha — e, desde então, passou a ter menos ainda — a ver com a ideia de considerar-me acima política. Pelo contrário, quanto mais tendi à esquerda, mais percebi o quanto estava errado sobre a ideia de um possível anti-partidarismo quando tratamos de posicionamentos políticos. Essa ideia de completa neutralidade é sim fascistóide. Mesmo quando não nos identificamos com uma sigla, sempre nos identificamos com alguma posição política, queiramos ou não. Não existe um default neutro. Quando digo que não tenho um partido, refiro-me a não seguir uma sigla específica, somente isso. Geralmente, meu voto tem ido para candidatos de esquerda, especialmente desde as últimas eleições municipais deste ano. Infelizmente, esse é um problema recorrente: muitas pessoas na direita pensam que simpatizar com o mundo capitalista é uma posição neutra, uma espécie de default ideológico. Mas simpatizar com o mundo capitalista não é o default, nem muito menos uma posição neutra.
A verdade é que, por mais que tentasse ser isento de ideologia naquele meu texto de 2013, ainda usava a retórica neoliberal. Lá escrevi que não me importava que o estado cobrasse impostos altos, desde que o dinheiro fosse usado para nos dar excelentes serviços públicos, um posicionamento que já demonstrava simpatia por políticas de esquerda. Porém, também escrevi que, caso os impostos não retornassem na forma de excelentes serviços públicos, seria melhor que não cobrassem imposto algum — e isso ainda era um posicionamento extremamente liberal. Como assim "não cobrar imposto algum"? O que estava pensando quando escrevi essa bobagem? É certo que ainda havia resquícios de ideologia liberal nos meus pensamentos em 2013. A questão do mau uso dos impostos é uma demanda próxima da demanda dos liberais e, novamente, não acho que estejam errados em reclamar da péssima qualidade dos serviços públicos no Brasil. Porém, deveria ter deixado claro que acho correto que existam serviços públicos de qualidade e em abundância, prestados pelo estado. Não é uma mera questão de "ou nos deem serviços, ou devolvam nossa grana", uma retórica conveniente para aqueles que têm grana, e que pode ser usada de maneira oportunista por certos setores da sociedade dispostos a manipular as massas em benefício próprio, como foi no caso do golpe militar de 1964. Mais uma vez, percebi que estava errado.
Entretanto, como deixei transparecer no texto de 2013, ainda acredito ser um exagero a ideia de comparar as manifestações antigoverno daquele ano com as marchas conservadoras de 1964, mas entendo perfeitamente a comparação: em 1964, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi o prelúdio do golpe militar, e em 2013, as manifestações foram o prelúdio do impeachment, ocorrido em 2016. A diferença é que João Goulart, em seu discurso aos trabalhadores no Rio de Janeiro em 1964, propôs ideias que, talvez, realmente beneficiariam a classe trabalhadora, enquanto que o governo que sofreu impeachment recentemente beneficiava empreiteiras, bancos e ditaduras populistas falidas. Mas posso estar errado, claro. De qualquer forma, se pudesse retornar no tempo e reescrever aquele texto, a principal mudança que faria seria escrever o seguinte: nos deem serviços públicos de qualidade, saúde, segurança, educação, infraestrutura, e assistência aos mais necessitados. A parte na qual falo "ou devolvam nossa grana" não existiria, porque acredito que essa opção só seria possível se a sociedade entrasse em colapso — e nesse caso não haveria mais grana alguma para ser devolvida. O estado está aí para ficar, e a melhor coisa que um estado pode fazer é promover o bem-estar de toda a sociedade, principalmente das camadas menos favorecidas pelo sistema capitalista. O máximo que nós como cidadãos podemos exigir é que o estado utilize bem os recursos públicos, mas nunca devemos aceitar o engodo liberal do estado mínimo e ausente.
Com o passar do tempo, comecei a ter posicionamentos antes indefensáveis para mim, como sobretaxar os mais ricos. Peguemos um exemplo real. O estado da Califórnia, que até pouco tempo atrás estava dominado por republicanos, encontrava-se em recessão e com um grande déficit orçamentário. A promessa republicana de cortar impostos dos ricos não trouxe crescimento econômico, algo que a cartilha da minha antiga ideologia neoliberal jurava que aconteceria. A ideia dos neoliberais era e continua sendo a mesma: quando os ricos pagam menos impostos, eles investem na economia real, contratam mais pessoas e, por conseguinte, geram crescimento econômico e aumentam a base de arrecadação do governo. Porém, as coisas não funcionam assim. Mesmo os economistas liberais que defendem esse tipo de política afirmam que o efeito não é imediato, ele demora. E, além disso, ainda há economistas que discordam que o efeito seja significativo o suficiente para justificar a diminuição dos impostos dos mais ricos. Depois da saída de Schwarzenegger do governo do estado da Califórnia, um governador democrata assumiu. Além disso, o controle da casa legislativa do estado também passou a ser do partido democrata. Quando os republicanos saíram do poder na Califórnia, a previsão dos economistas ortodoxos era de caos nas contas públicas e recessão. No entanto, a Califórnia passou a ter superávit e crescimento econômico alto. Podemos debater que o crescimento ocorreu a despeito do aumento dos impostos para os ricos, e que as políticas anteriores "só passaram a ser sentidas depois", mas a verdade é que a previsão apocalíptica — de que um aumento nos impostos para mais ricos causaria um caos econômico na Califórnia — não se concretizou. Aliás, aconteceu justamente o oposto.
Algo similar ocorre nos países nórdicos. Quando defendia o liberalismo, acreditava no mito de que o estado do bem-estar social nórdico só passou a existir bem depois daqueles países já terem enriquecido através do "bom e velho" liberalismo econômico. Também acreditava que o modelo social-democrata nórdico estava se esgotando. Essas crenças são totalmente falsas. Os países nórdicos cresceram e se desenvolveram após a implementação da social-democracia, há mais de meio século atrás. Claro que nem tudo são rosas. Existem problemas na Suécia, Dinamarca e Noruega. Não acredito que um mundo maravilhoso seja possível, mas certamente um mundo menos pior é possível. Há uma diferença gritante entre esse mundo menos pior e o mundo capitalista liberal. Basta compararmos a qualidade de vida das classes baixas nos países nórdicos com a qualidade de vida das classes baixas nos Estados Unidos. Outra falácia a respeito do liberalismo é que quanto mais uma economia segue os ditames do laissez-faire, maior é a mobilidade social. Mas não há nenhuma correspondência disso com a realidade. Existe uma maior mobilidade social nos países nórdicos do que nos Estados Unidos. É fato, não opinião, por isso incluí nas referências deste texto. Além disso, alguns estudos sugerem que a mobilidade social nos Estados Unidos caiu nas últimas décadas — e mesmo os que sugerem que ela se manteve estável, indicam que as chances são gigantescas que a pessoa morrerá na mesma classe social em que nasceu, o que destrói a noção meritocrática americana de que, no capitalismo liberal, basta você correr atrás que é possível subir na vida. O tal "só depende de você" é um mito. Não interessa quantas histórias de sucesso apareçam, elas mostram apenas os poucos vencedores. A maioria das pessoas, porém, vai continuar na mesma situação socioeconômica em que nasceu.
Ao contrário do que pensava, também, é falsa a noção de que necessariamente altos impostos sobre grandes fortunas fazem com que os ricos simplesmente desistam da sociedade e sumam, ao estilo "A Revolta de Atlas", livro da escritora, filosofa e defensora voraz do capitalismo laissez-faire, Ayn Rand. Diversos países que ignoraram o conselho de diminuir impostos sobre os ricos para gerar crescimento (propagado pelo economista Arthur Laffer) conseguiram e conseguem ter um alto grau de crescimento e desenvolvimento econômico. Quem diria? A situação econômica de uma nação depende de diversos fatores, mas quando se tem uma fé inabalável que só o liberalismo econômico traz prosperidade, tudo gira em torno da inexorável e falsa dicotomia entre setor produtivo privado versus estado desperdiçador de dinheiro público. É verdade que em certos casos específicos essa dicotomia pode ocorrer? Talvez. Mas a saúde econômica de um país vai depender mais de como o estado utiliza os impostos que arrecada do que da aplicação de fórmulas ideológicas neoliberais.
Peguemos o período de maior expansão econômica dos Estados Unidos: as décadas logo após a Segunda Guerra Mundial. Durante os anos de 1950, no período do presidente Eisenhower, por exemplo, o imposto de renda cobrado dos mais ricos era de até 90%, e o governo chegava a tomar 50% do lucro corporativo. Tudo isso acabou nas décadas subsequentes, com a diminuição dos impostos e eventuais desregulamentações de diversos setores, inclusive o setor financeiro. Sim, também houve expansões econômicas nesses períodos de impostos mais baixos e menos regulamentação — algumas delas foram até grandes —, mas as taxas reais de crescimento não foram tão grandes quanto no período anterior. Há controvérsia a respeito das diferenças entre imposto nominal e efetivo na década de 1950: alguns afirmam que o imposto efetivo seria muito menor do que os horripilantes 90%, mas a realidade é que mesmo as taxas efetivas eram muito maiores do que são hoje, e nenhuma grande catástrofe econômica aconteceu durante a década de 1950 e 1960 nos Estados Unidos. Pelo contrário: o país prosperou, a pobreza diminuiu e a classe média teve a maior expansão de toda a história. É possível interpretar os dados de uma maneira que mostre que, nas décadas de impostos mais altos e maior regulamentação, existia um espaço maior para economia americana crescer. Mas, novamente, segundo o dizem os neoliberais, isso deveria ser impossível, já que, supostamente, uma maior regulamentação e impostos mais altos destruiriam qualquer economia, mesmo aquelas que têm espaço para crescer. Outra coisa que deveria ser impossível é a existência e a contínua prosperidade do modelo europeu nórdico — segundo a crença neoliberal, os países nórdicos já deveriam ter falido há décadas.
Falei da mobilidade social, no mínimo estagnada, mas posso falar da desigualdade que aumenta cada vez mais nos Estados Unidos e nos países que adotam a curva de Laffer como dogma. O liberal poderá dizer: "mas não devemos analisar a desigualdade, que é relativa, e sim a pobreza absoluta. Quando uma economia cresce, mesmo setores que ficam com uma fatia menor da renda produzida acabam se beneficiando. É melhor ter uma fatia menor de um bolo maior, do que uma fatia mais igualitária de um bolo menor". Ok. Vou dar esse ponto para os liberais. Na verdade, daria o ponto caso fosse verdade que desonerar os ricos gerasse um crescimento econômico absurdo, o que não é verdade, mas vamos dizer que eles estão certos. De fato, não adianta nada um governo fazer políticas toscas e deixar todo mundo na mesma fossa igualitária — tirando seus dirigentes, claro —, que é o que vem acontecendo na Venezuela há mais de dez anos. Porém, repito: não são as intervenções do estado, os impostos, etc, que fazem uma economia desandar, mas sim a forma como são realizadas as intervenções e a maneira como se utilizam os impostos, algo que neoliberais ignoram por completo.
Mesmo assim, ainda é possível questionarmos a desigualdade supostamente relativa. Que tipo de vida é essa em que a fatia do bolo é desigual, mas o bolo é maior? Se juntarmos esse conhecimento com o fato de que a mobilidade social é muito menor nos regimes liberais do que nos regimes sociais-democratas da Europa, basicamente os defensores do sistema liberal estão dizendo: "sim, é isso mesmo, e você tem sorte de continuar um peão de classe média baixa para o resto da vida, mesmo nos Estados Unidos. Agora cale a sua boca e aproveite seu iPhone, seu carro vagabundo, e agradeça aos céus, porque você poderia ser da classe média baixa num país onde o 'bolo' é muito menor para todo mundo, e onde ser classe média baixa é muito pior, como é o caso do Brasil". De fato, é melhor estar na base da pirâmide sócio-econômica nos Estados Unidos do que no Brasil. Mas ainda assim é muito melhor ser um dinamarquês, finlandês, norueguês ou sueco, do que ser americano, pelo menos no que diz respeito às possibilidades de ascensão socioeconômica. O salário real nos Estados Unidos está praticamente estagnado desde meados da década de 1970, muito embora a produtividade marginal do trabalhador americano tenha aumentado durante esse tempo. Não acredita? Veja nas referências deste texto. Enquanto isso, o lucro das grandes corporações e do setor financeiro só aumentou. Essa é uma tendência mundial, aliás. O liberal pode criticar isso, afirmando que os Estados Unidos não são um país com liberalismo econômico de verdade, mas o fato é que, no mundo real, os Estados Unidos são um dos países com maior liberdade econômica.
Até pelos padrões de think-tanks liberais, como o famoso Índice de Liberdade Econômica, os Estados Unidos têm alto grau de liberdade econômica. O que é observável nele, é observável em outros lugares também: o lucro dos mais ricos, dos donos dos grandes meios de produção, só aumenta, enquanto os salários reais dos trabalhadores ficam estagnados. É esse o exemplo que devemos seguir? O próprio surgimento de uma classe média próspera não é característica natural do sistema capitalista desregulamentado e sem intervenção estatal (de novo, consulte as referências abaixo). Continuemos com o exemplo dos Estados Unidos. A maior expansão da classe média americana foi durante o período de maior redistribuição de renda naquele país — as décadas logo após a Segunda Guerra. Os recursos arrecadados pelo estado, na forma de impostos sobre os mais ricos, foram repassados ao resto da população na forma de subsídios. A G.I. bill, por exemplo, foi uma lei passada em 1944 que trouxe enormes benefícios para os veteranos das forças armadas e seus familiares. Ao longo das décadas seguintes, milhões de americanos usaram esse subsídio para conseguir uma educação melhor ou algum tipo de treinamento profissional. Outros milhões usaram o benefício para financiar a casa própria. As benesses dessa lei são praticamente incontestáveis entre historiadores e economistas americanos — tirando, claro, os fundamentalistas do laissez-faire.
Digamos que a economia liberal funcione bem e tudo o que falei esteja completamente errado — o que, para qualquer um que defenda o liberalismo econômico, é o que está acontecendo. Digamos que a economia liberal não tenha as disfunções que afirmo ter no que diz respeito à desigualdade, menor mobilidade social, estagnação de salários reais do trabalhador, etc. É falso, mas digamos que seja verdade. Ainda assim não dá para dizer que o modelo nórdico, que uso como exemplo para contrapor o liberalismo, seja um fracasso. Não é. No mínimo eu, quando era liberal, teria que assumir que não, os altos impostos, especialmente em cima dos mais ricos, não são necessariamente prejudiciais, mas sim compatíveis com uma economia de mercado dinâmica e avançada. Foi o que fiz. Também admiti que, no próprio caso dos países utilizados como grandes exemplos de liberalismo econômico, como os Estados Unidos, a economia teve alto rendimento e aumento de produto interno bruto graças à políticas econômicas intervencionistas, pelo menos em alguns períodos históricos, como no pós-Segunda Guerra Mundial. Já defendo essa posição há alguns anos, pelo menos de maneira informal, mas no início foi custoso. Isso porque, assim como um socialista ortodoxo — definido aqui como alguém que defende a propriedade estatal dos meios de produção e a economia de planejamento — acredita que a economia de mercado é um grande mal, eu defendia que o estado intervir no mercado era um mal necessário que, no máximo, deveria apenas proteger os direitos de vida, propriedade e liberdade. Foi difícil abandonar o que para mim tornou-se uma ortodoxia.
As classes dominantes, detentoras dos grandes meios de produção, os multimilionários, bilionários, donos de indústrias, bancos, conglomerados, são quem realmente ditam o que acontece tanto dentro dos países capitalistas, quanto na política externa deles. Ao contrário do que prega o liberalismo, o estado moderno não é oposto do setor privado, mas um complemento dele — e o estado tende a representar, como um fantoche, os interesses das elites econômicas. Por mais que possamos não concordar com a dialética implícita ao materialismo histórico, por mais que possamos ter aversão às políticas autoritárias dos regimes de inspiração marxista do século XX, com partido único, e por mais que possamos discordar do otimismo em relação ao futuro, não devemos desconsiderar as análises de Marx. Quando ignoramos Marx por completo, agimos como bobalhões, para não dizer burros. As diferenças que tenho com suas ideias não têm a ver tanto com o diagnóstico, mas o remédio. Muitos marxistas ortodoxos — mas claro que não todos — diriam que as forças produtivas precisam se desenvolver ao máximo e que a derrubada violenta da classe burguesa (detentora dos meios de produção no capitalismo) pela classe proletária é necessária para a instauração do regime socialista, no qual os meios de produção e a distribuição são estatizados e o estado é controlado pelo partidão. Não creio que isso dê certo. A estatização dos meios de produção e a economia de comando, seja através de uma revolução violenta, ou através do voto democrático, já mostraram ser um desastre.
Esse posicionamento que exponho pode parecer estranho. Admito que seja. Minha crítica é ao capitalismo liberal, desregulado, onde os ricos são subsidiados, e onde Warren Buffet, um investidor multibilionário, paga proporcionalmente menos impostos do que a secretária dele. Mas não penso que o mercado deva ser extinto por completa, nem a iniciativa individual. Meu evidente puxa-saquismo com o modelo nórdico seria, na visão de marxistas ortodoxos do início do século XX, uma defesa nojenta da classe burguesa. Isso porque, para alguns deles, a social-democracia nada mais é do que uma maneira da burguesia apaziguar a classe trabalhadora. E pode até ser que estejam certos. Só que a social-democracia nórdica trouxe níveis de prosperidade muito maiores para suas populações do que regimes que derrubaram a economia de mercado e instauraram ditaduras de partido único — quero dizer, sempre foi melhor viver na Suécia ou na Noruega da segunda metade do século XX do que na União Soviética, na minha concepção.
Além da prosperidade material, o modelo desses países foi capaz de manter excelentes níveis de liberdade econômica, mesmo com seus altos impostos e redistribuição de renda. Cidadãos nórdicos tiveram e continuam tendo o direito de empreender, buscar o lucro, com pouquíssimo intervencionismo estatal inútil — a diferença desse modelo para o liberalismo é que grande parte das suas riquezas são socializadas através de altos impostos. Prefiro um modelo em que o estado subsidie todos os cidadãos, e não apenas as elites, como acontece no liberalismo. São nações onde existe a liberdade de pensamento, de imprensa e manifestação, coisa que não acontecia nas ditaduras de partido único. Portanto, prefiro infinitamente esse modelo, considerado de apaziguamento, pelo simples fato de considerá-lo melhor no que diz respeito à prosperidade dos seus cidadãos — e também no que diz respeito às liberdades que eles têm — do que um modelo que destrói o sistema de trocas por completo, por considerá-lo a raiz de todo o mal. É claro que posso vir a mudar de opinião e reconsiderar posições de esquerda mais ortodoxas no futuro. Contudo, hoje penso ser triste a adulação de ideias que resultaram em uma enorme opressão, como as que ocorreram nos regimes stalinista, maoísta e outros ao longo do século XX. Não acredito que seja uma alternativa viável ou sequer menos pior ao terrível mundo no qual vivemos, nem acredito nos fundamentos filosóficos que baseiam tais ideias, como imaginar que haja um télos discernível para a humanidade, um ponto de consumação final da história humana. O problema é que apoiar o contrário — a ideia de que os ricos param de produzir caso tenham que pagar mais impostos — também é muito ruim. Apoiar o liberalismo econômico é dar carta branca para uma opressão altamente destrutiva.
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Atualização, janeiro de 2021: Título mudou de "Sobre ideologias e economia política (ou: por que abandonei o liberalismo, critico o capitalismo, mas não defendo o comunismo)" para "Sobre ideologias e economia política (ou: por que abandonei o liberalismo, critico o capitalismo, defendo o socialismo democrático e não defendo regimes de partido único 'comunista')", com o intuito de deixar mais clara a proposta do texto e os posicionamentos que comecei a adotar, que antes não estavam claros no título. Também concertei alguns erros de português e de argumentação que não deixavam o texto claro.
3. Capitol Journal: When it comes to paying taxes, California is Bernie Sanders’ kind of state
4. 'Scandinavian Dream' is true fix for America's income inequality
5. The 'trickle down theory' is dead wrong
6. Does the U.S. Have Lower Economic Mobility than Other Countries?
7. GETTING AHEAD OR LOSING GROUND: ECONOMIC MOBILITY IN AMERICA
8. The Good Ol' Days: When Tax Rates Were 90 Percent
9. Social mobility hasn't fallen: what it means and doesn't mean
10. Tax the rich: the minefield of high-level taxation
11. 1950s Tax Fantasy Is a Republican Nightmare
12. Why the Gap Between Worker Pay and Productivity Is So Problematic
13. How Well Do Wages Follow Productivity Growth?
14. The Middle Class is not “Normal”
15. A Global Middle Class Is More Promise than Reality
16. Capitalism is failing the middle class
17. Half of world's wealth now in hands of 1% of population – report
18. Andreessen: The American Middle Class Is A Historical Accident
19. What’s Killing the American Middle Class?
20. A Strong Middle Class Doesn't Just Happen Naturally