O Matadouro Chamado Brasil
Nas primeiras semanas de 2017 tivemos chacinas brutais em presídios no Amazonas, Roraima e em outros estados do Brasil. No total, foram mais mortos esfolados vivos e decapitados à moda "açougue do Estado Islâmico" do que baleados pela política no antigo Carandiru, durante o infame massacre de 1992. Não digo isso para comparar a brutalidade de um evento ao outro, nem para tentar dizer que a polícia estava certa—meu ponto não é esse.
Meu ponto é que, independente do que aconteceu em 1992 em São Paulo e independente dos tiroteios intermináveis das décadas de 1980, 1990 e 2000 no Rio de Janeiro (cidade em que nasci, cresci e morei a maior parte da minha vida), aquela ideia de que "no futuro" as coisas seriam melhores e a violência certamente diminuiria não aconteceu.
Supostamente, a violência—falo aqui do número de assassinatos—caiu no Rio de Janeiro nas últimas duas décadas.1, 2 Francamente, não estou escrevendo este texto apenas para falar de dados, muito embora irei utilizá-los. Quero aqui focar em algo que me aconteceu neste sábado, dia 21 de janeiro. Sobre a estatística, até acredito que o índice de homicídios e outros crimes possa ter caído. Só que, mesmo tendo caído, é bem provável que o Rio de Janeiro ainda seja mais violento que a cidade mais violenta dos Estados Unidos durante a década mais violenta da história daquele país, que foi 1980—isso para citar um exemplo de país rico violento, afinal, os Estados Unidos, dos países ricos, é o mais violento.
Por experiência própria, como morador da Tijuca, um bairro da zona norte da cidade, percebi que de 2010 até mais ou menos 2015 os tiroteios absurdos (aqueles onde era possível ver balas traçantes passando de um morro para o outro) cessaram. Em 2016, no entanto, volta e meia foi possível escutar algumas breves, porém sinistras, trocas de tiro. No sábado passado, menos de dois dias atrás, fui de Uber até a casa da minha namorada, no bairro do Méier, também na zona norte da cidade. Eram mais ou menos 18:30, ainda estava claro. Ela me aguardava próxima ao portão de sua rua, que é uma vila. No momento em que saltei do Uber, o carro parado no sinal vermelho à nossa frente foi abordado por três homens armados com pistolas.
Eu, minha namorada e o motorista do Uber corremos para o portão. Enquanto ela desesperadamente tentava achar a chave certa, os bandidos apontaram a arma para nós, mas não atiraram. Ao entrarmos, começamos a correr e escutamos dois tiros. Continuamos correndo pela rua e escutamos mais quatro ou cinco pipocos. Parecia uma cena do filme Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino.
Depois de um tempo dentro da casa dela, retornamos à cena do assalto. O carro do motorista—que ele deixou largado no meio da rua no momento do crime, de porta aberta e com a chave na ignição—ainda estava lá, sem danos. Conversando com populares (fomos saudados com "foram vocês que correram pra dentro da rua!") soubemos mais do que aconteceu: os bandidos levaram um Honda City e, dentro dele, um senhor de idade que não conseguiu sair do carro, mas foi desovado logo em seguida na outra quadra, "são e salvo". Os tiros foram dados em direções aleatórias, com o possível intuito de assustar.
Sabe-se lá se não dispararam na nossa direção quando entramos na vila. Um senhor, que também presenciou o assalto, segurava em uma das mãos uma bala esmagada que ele catou da calçada. Pouco tempo depois chegaram policiais de moto, que observaram a bala e perguntaram sobre o ocorrido. Um deles nos falou que os bandidos provavelmente levaram o carro para uma favela próxima e que nada poderia ser feito no momento. Ao me lembrar do policial falando aquilo, penso como é triste quando policiais e professores, aqueles que nos defendem e aqueles que educam nossas crianças, passam miséria, enquanto tem ex-governador com centenas de milhões de reais na Suíça.
Essa não foi a única vez que estive perto da violência que assola minha cidade e país. Ano passado fui assaltado no bairro de Botafogo, na zona sul. Nos últimos anos, também testemunhei vários rapazes roubando celulares e outras coisas nas ruas do Rio de Janeiro. Há alguns anos atrás, fui assaltado à mão armada no Paraná, quando visitava amigos naquele estado. Durante a adolescência, em pelo menos três ocasiões, estava ao lado de amigos quando eles foram assaltados...
Em boa parte dos casos, o resultado poderia ter sido diferente: ao invés de apenas bens materiais e dinheiro, a minha vida ou a vida de amigos meus poderia ter sido levada. Aliás, isso aconteceu com um amigo do meu irmão. Ele foi assassinado durante uma tentativa de assalto do lado de fora da feira de São Cristóvão. O índice de homicídios e latrocínios no Brasil como um todo—e acredito que de muitos outros crimes, como roubos e assaltos—tem crescido nos últimos anos. Talvez tenha caído no Rio de Janeiro, mas no agregado do país, é uma desgraça que só aumenta. Mais triste ainda do que nossos policiais e professores serem mal pagos, é saber que essa violência toda é uma situação inalterável.
No ano 2007, foram assassinadas mais de 44 mil pessoas por ano no Brasil. Em 2012, mais de 50 mil.3 Talvez algo mude no longuíssimo prazo. Quem sabe. Mas, por agora, NÃO HÁ NADA QUE POSSA SER FEITO, salvo voltarmos no tempo e impedir o nascimento daqueles que desferem tiros, facadas e daqueles que nos assaltam. Contudo, não temos uma máquina do tempo para voltar atrás. Antes que digam que sou "preconceituoso contra os pobres" porque penso que muitos dos criminosos atuais não deveriam ter nascido, saibam que nem de longe aplico esse raciocínio apenas aos criminosos que dominam nossas favelas e periferias: se o Sérgio Cabral (bandido do colarinho branco, membro da elite dominante) tivesse sido abortado pela mãe dele, talvez o estado do Rio de Janeiro não estivesse falido. Aliás, minha preferência é exatamente esta: quem não deveria ter nascido em primeiro lugar são justamente os ricos, que ocupam posições de poder e destroem nossa economia e sociedade, perpetuando a pobreza.
A realidade seria outra caso os pais de uma série de governantes e membros da nossa elite dominante de merda tivessem gozado fora, usado camisinha ou abortado.
Entretanto, a violência é um problema geral que afeta todas as classes sociais brasileiras. Se o problema começa com os ricos (e os governantes) explorando as classes mais baixas, fazendo com que alguns pobres não enxerguem outra alternativa a não ser o crime, honestamente não sei. De fato, pode ser que seja culpa desse maldito sistema capitalista em que vivemos. Mas pode ser que o próprio povo, seja ele pobre ou rico, tenha uma cultura violenta mesmo. A pobreza—e a continuidade da pobreza—certamente contribui para o aumento da criminalidade, mas não pode ser o único fator. Caso fosse, a Índia teria um índice de homicídios muito maior que o do Brasil, visto que a renda per capita lá é mais baixa do que a nossa. Claro, existem outros tipos de crime que são endêmicos naquele país, mas em termos de homicídios, a taxa lá é bem menor.
A China também tem uma taxa de homicídios menor que a nossa e uma renda per capita menor—na média, os chineses são mais pobres do que nós. Levando em conta o número de homicídios por 100 mil habitantes, a Índia tem 3, a China tem 1 e o Brasil tem 25.4 Alguns estudos apontam o índice de homicídios brasileiro como sendo 32 por 100 mil habitantes.5 Ou seja, acontecem entre 50 e 60 mil assassinatos por ano no nosso país.
A América Latina como um todo é bastante violenta quando falamos de pessoas sendo mortas por outras pessoas. Mas mesmo assim, ainda há exceções. O Chile tem 4 assassinatos por 100 mil habitantes, enquanto Argentina e Uruguai têm 8. Comparado com todos os países europeus (mesmo com terrorismo e contando os países da Europa Oriental, como a Polônia), os 4 assassinatos a cada 100 mil pessoas do Chile ainda é uma taxa alta—mas perto do Brasil, até os números argentinos e uruguaios são excelentes. E os Estados Unidos, que são considerados um país rico violento, têm 5 homicídios por 100 mil habitantes.
Vivemos um absurdo. Nosso país está morto, apodrecido e fedendo. O futuro aqui parece ser só dor, morte e banho de sangue. Qualquer um que diga o contrário está tentando vender algo, mas eu não estou mais afim de comprar. Já deixei de acreditar há algum tempo, embora tentasse ter um mínimo de esperança. Não mais. Não há espaço para idealismo. O futuro já chegou e ele é muito ruim. "Mas e o poder do voto?" Há muitos e muitos anos atrás eu votei em uma figura messiânica que discursava sobre esperança. O sujeito venceu. Algumas coisas melhoraram, enquanto outras pioraram bastante. A violência piorou e o valor da vida no meu país só diminuiu de lá para cá. Não tem ninguém legal, que "vai mudar para melhor", não interessa o quanto a pessoa compreenda as causas dos nossos problemas.
É bacana saber que um ou outro candidato entende o que há de errado e tenha soluções de longo prazo—mas acredito que nada mudará, sinto muito. Ele terá minhas bênçãos, mas dificilmente votarei e farei campanha para alguém novamente. Minha esperança de que a vida no Brasil venha a valer alguma coisa é nula, principalmente a vida da classe média baixa e dos pobres. É por isso que as eleições de 2016 foram as últimas em que votei. Nem sequer vou me dar o trabalho de sair de casa nas próximas. Também não vou justificar. Pagarei a multa. Salve-se quem puder. Boa sorte a todos. Quem sabe, quando chegarmos aos 80 anos—se chegarmos—, os índices de assassinato e crimes violentos não tenham caído pela metade.
Referências:
1. https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_Brazilian_states_by_murder_rate
2. https://en.wikipedia.org/wiki/Crime_in_Brazil
3. https://www.unodc.org/gsh/en/data.html
4. http://data.worldbank.org/indicator/VC.IHR.PSRC.P5
5. http://www.mcclatchydc.com/news/nation-world/world/article24777451.html