As coisas podem piorar
Na véspera do primeiro turno, Hamilton Mourão, candidato à vice na chapa de Bolsonaro, apontou para seu neto e falou que ele era um exemplo de "branqueamento da raça". Ele deu uma conotação positiva a isso, dando a entender que seu neto é bonito por ser branco, enquanto que outras raças seriam feias. O vice de Bolsonaro considera-se — e provavelmente é — descendente de indígenas. Há alguns meses atrás, ele afirmou que o Brasil tinha sérios problemas por ter herdado a cultura de privilégios dos lusitanos, a indolência dos índios e a malandragem dos africanos.
Família Guarani capturada por caçadores de escravos, pintura de Jean-Baptiste Debret |
Tenho observado, já há algum tempo, um argumento que posso parafrasear da seguinte maneira: "os progressistas no Brasil sempre pregaram um discurso divisor, de rompimento, que culpa todas as mazelas do mundo na família, na religião cristã, nas tradições, nos ricos, nas pessoas brancas e agora, em 2018, estão colhendo os frutos desse discurso com a radicalização da direita". Por um lado é verdade que o discurso do rompimento aconteceu. É verdade, também, que a figura da família tradicional tem sido alvo de críticas. Creio que, em parte, progressistas estão certos quando pensam que algumas pessoas nunca aceitarão a alteridade e algumas pessoas jamais vão abrir mão de seus privilégios. Porém, penso que deve-se tentar o diálogo — nem todos vão querer dialogar, mas muitos sim. As pessoas mudam.
Mas junto com esse discurso que justifica a radicalização da direita conservadora no país, podemos volta e meia escutar algumas críticas absurdas vindas de auto-proclamados direitistas. Criticam, por exemplo, movimentos negros, como se fossem negativos para o país, como se não devessem existir. A impressão que passam é de que se sentem ofendidos quando afro-descendentes valorizam sua própria história, forjada na base de sofrimentos extremos que reverberam até hoje. Outra crítica bem comum que fazem é a respeito dos povos indígenas: supostamente, dirão alguns, os indígenas que estão inseridos, total ou parcialmente, na sociedade brasileira, não podem considerar-se índios de verdade. Já virou clichê ouvir ignorantes falarem coisas como "índio que anda de tênis não é índio". É claro que não são todos os auto-proclamados direitistas que fazem uso desse discurso, mas também não são poucos.
Tais argumentos expõem visões racistas sobre a sociedade brasileira. Não são injúrias raciais pontuais, mas um racismo sistemático, pensado (ainda que mal e porcamente), contínuo. Ainda que se pense involuntariamente dessa forma, é racismo, e é muito fácil demonstrar isso. Dizer que índios que não vivem da maneira tradicional e milenar de seus ancestrais não são "índios de verdade" seria o equivalente a dizer que judeus que não se vestem com as túnicas e trapos de dois mil anos atrás não são, verdadeiramente, judeus, ou que chineses que utilizam terno e gravata e fazem parte do Partido Comunista Chinês não são chineses de verdade. Sociedades mudam com o passar do tempo. Índios podem andar de Porsche e serem donos de cassinos, como alguns fazem nos Estados Unidos, que ainda assim serão índios.
Brasileiros negros que tentam preservar as histórias de seus variados povos e afirmar sua existência também sofrem o pão que o diabo amassou na forma das críticas mais toscas. Muitos brasileiros de direita — dentre eles, muitos que não são brancos, inclusive — acreditam, não entendo bem por que motivo, que um negro no Brasil não pode admirar a história de seus ancestrais. Enquanto isso, há descendentes de europeus que não perdem uma oportunidade de demonstrar seu pedigree — e tudo bem, não há problema nenhum em fazer isso, mas é algo que pessoas de outras etnias também devem ter a liberdade de fazer sem serem criticadas.
Há toda uma corrente de pensamento conservador que afirma ser absurda a existência de movimentos de empoderamento de minorias e movimentos favoráveis às cotas e às políticas afirmativas. Geralmente pensam assim por raciocinarem da seguinte forma: nós que estamos vivos hoje não somos as mesmas pessoas que viveram no passado, ninguém aqui é a vítima ou o perpetrador de tais violências, estes já estão mortos há muito tempo. É um argumento filosófico que enfatiza o indivíduo ao ponto do absurdo, portanto é bastante fraco.
Sim, é verdade que ninguém vivo hoje é responsável pela escravidão dos negros e pelo massacre dos indígenas, nem mesmo um descendente direto daqueles que se beneficiaram com a escravidão e com o massacre. Mas isso só conta uma parte da história. Vou pegar um exemplo de fora do Brasil para ilustrar o ponto que farei mais adiante: a nobreza europeia de hoje só possui terras, títulos, riquezas e privilégios, porque descende de homens que há muitos séculos conquistaram violentamente um território e obrigaram todos que ali habitavam a pagar impostos. A nobreza europeia que está viva hoje não cometeu tal agressão, assim como o povo europeu vivo hoje não é exatamente o mesmo que foi subjugado lá atrás. Porém, há uma clara conexão de subordinação que ultrapassa os séculos até hoje: uns herdaram a nobreza, a riqueza e o privilégio graças à uma violência ocorrida no passado, enquanto os outros herdaram a obrigação de abaixarem suas cabeças e obedecerem.
A mesma lógica pode ser aplicada em diversos casos de subjugação, inclusive pode ser usada para analisarmos a realidade dos atuais descendentes de escravos e das tribos indígenas que aqui viviam. Os ancestrais dos negros que estão vivos hoje foram trazidos ao Brasil na base da porrada, sofreram violências grotescas, foram coisificados. Sim, é verdade que a escravidão já existia entre os africanos e árabes do norte da África, mas isso não faz diferença alguma. Não muda nada. Não tira a culpa dos europeus em momento nenhum, até porque a demanda dos europeus por escravos africanos era tão gigantesca que influenciou o crescimento do mercado de escravos dentro da própria África. O fato de que havia escravidão entre tribos africanas não tira a culpa daqueles europeus que participaram dela durante o período e não muda a realidade atual. Na prática, continua sendo ruim ser um descente de escravos no Brasil de hoje.
Em um país como o nosso, se os pais possuem uma condição sócio-econômica ruim, esta condição será refletida nos filhos. Um filho até pode, por talento e muita sorte, ascender na pirâmide sócio-econômica, mas por via de regra a mobilidade social não é alta, e no passado era ainda menor. Agora, imagine que esta cadeia de condições materiais ruins se estende por várias gerações anteriores. Tente imaginar que esta pobreza foi causada por uma violência primordial, que transformou os ancestrais dessas pessoas em coisas a serem compradas e vendidas. A abolição da escravatura dos negros e a demarcação de terras indígenas no passado deram um alívio mínimo perto do mal que foi causado antes. As atuais cotas em escolas e universidades públicas é o mínimo que pode ser feito hoje em dia para combater os efeitos negativos — que duram até hoje — de tal dominação.
Os indígenas foram estuprados, mortos e expulsos de seus territórios sem muita acomodação; os negros foram considerados mercadoria nas Américas durante séculos, algo que só se encerrou no final do século XIX, há pouco mais de cem anos atrás. Quando nasci, no início da década de oitenta, a Lei Áurea ainda não tinha completado um século de existência. Depois que os massacres aos índios e a escravidão acabaram, esses povos continuaram na miséria, já que poucos quiseram acomodá-los dentro da sociedade brasileira. Eles continuaram sendo tratados como coisas pelos descendentes dos colonizadores. Nunca foi dada uma chance efetiva de melhora para esses povos.
Os indígenas foram estuprados, mortos e expulsos de seus territórios sem muita acomodação; os negros foram considerados mercadoria nas Américas durante séculos, algo que só se encerrou no final do século XIX, há pouco mais de cem anos atrás. Quando nasci, no início da década de oitenta, a Lei Áurea ainda não tinha completado um século de existência. Depois que os massacres aos índios e a escravidão acabaram, esses povos continuaram na miséria, já que poucos quiseram acomodá-los dentro da sociedade brasileira. Eles continuaram sendo tratados como coisas pelos descendentes dos colonizadores. Nunca foi dada uma chance efetiva de melhora para esses povos.
Há uma cadeia histórica de privilégios sociais identificados com a ascendência europeia no Brasil, assim como há uma cadeia histórica de subordinações identificadas com a ascendência africana. É tolice negar isso. É tolice negar, também, que há uma cadeia de preconceitos e exclusão identificados com a ascendência indígena no Brasil. A história do encontro dos europeus com os índios brasileiros foi uma barbárie que se sente até hoje. Alguns poucos preconceituosos questionam os judeus que admiram o duro passado de escravidão e genocídio seu povo, mas não faltam críticos aos índios e afro-descendentes que fazem o mesmo. Aqueles que pertencem à povos que foram massacrados e dominados — e, também, povos que são massacrados e dominados hoje — não podem ter um senso de identidade, de orgulho, de superação? Ao dizer que negros e índios no Brasil deveriam ficar em silêncio sobre sua história, perpetua-se a cadeia de violências associadas à tais grupos.
Os massacres dos povos indígenas ocorreram, foram brutais, e tais eventos influenciam negativamente as vidas de seus descendentes hoje, quer eles saibam ou não. A escravidão e a coisificação de povos africanos no Brasil aconteceu, foi brutal, e estes acontecimentos influenciam negativamente as vidas de afro-descendentes até hoje. Diferentemente de alguns outros povos que também foram perseguidos e coisificados na história humana recente, índios e negros nunca foram acomodados de maneira efetiva em boa parte das sociedades americanas. No caso da sociedade brasileira, a falta de acomodação foi ainda pior do que em outras nações do continente.
Imigrantes europeus pobres que vieram ao país no final do século XIX e início do século XX, assim como imigrantes nipônicos que vieram para cá no mesmo período, não foram massacrados e coisificados como os índios e negros. Por mais que possa ter havido uma enorme exploração do trabalho desses povos, e houve, sua existência não era tratada como sendo equivalente à de um objeto. Suas mulheres não foram estupradas em massa, suas famílias não foram separadas à força para que filhos pudessem ser vendidos à outros senhores, seus homens não foram considerados como subumanos. A eles foi dada uma capacidade mínima de controlar sua existência — coisa que não foi dada aos povos indígenas e africanos.
Imigrantes europeus pobres que vieram ao país no final do século XIX e início do século XX, assim como imigrantes nipônicos que vieram para cá no mesmo período, não foram massacrados e coisificados como os índios e negros. Por mais que possa ter havido uma enorme exploração do trabalho desses povos, e houve, sua existência não era tratada como sendo equivalente à de um objeto. Suas mulheres não foram estupradas em massa, suas famílias não foram separadas à força para que filhos pudessem ser vendidos à outros senhores, seus homens não foram considerados como subumanos. A eles foi dada uma capacidade mínima de controlar sua existência — coisa que não foi dada aos povos indígenas e africanos.
Negar que os séculos de massacres, escravidão e subjugação extrema influenciam até hoje o nosso ambiente é viver em um mundo de faz-de-contas. As Américas foram construídas na base de horrores, gritos, choros, dores, torturas e assassinatos constantes, sem pausa, sem acomodação. Por mais que a escravidão já existisse entre as tribos da África ocidental, por mais que as tribos indígenas das Américas lutassem entre si, a culpa do extermínio indígena e da escravidão dos negros nas colônias foi sim de determinados estados europeus. Foram colonos de determinadas partes da Europa que invadiram uma terra que já tinha dono — terras indígenas. Foram os mesmos colonos europeus que fomentaram o comércio de seres humanos vindos da África.
Nós que vivemos hoje não participamos daqueles eventos como vítimas ou algozes, mas herdamos o passado daquelas vítimas e daqueles algozes através da cadeia de acontecimentos e pessoas que nos liga até ele. Ainda que nossos avós e bisavós tenham vindo da Europa para esta terra ao final do século XIX ou início do XX, por mais que eles não tenham tomado parte direta ou indiretamente nas coisas ruins que aqui ocorreram, o fato é que eles vieram para cá e nos inseriram dentro desta sociedade onde todas aquelas desgraças aconteceram.
O que fazer? Dar com os ombros e dizer "não tenho culpa"? Realmente, não temos. Fomos colocados no mundo sem o nosso consentimento e obrigados a lidar com uma realidade que não criamos. O sadismo da nossa história contra determinados povos — além do sadismo da história brasileira contra os mais fracos em geral, contra os pobres de todas as raças, inclusive europeus — permeia o presente. A violência sempre foi a maneira de nos expressarmos por excelência. Seria bom poder sair na rua e não ter medo dela, mas ela foi reproduzida e ensinada por muito, muito tempo. Não precisou chegar o Bolsonaro para o país cultuar a violência. Ela já é cultuada há séculos. Todos aqui aprenderam a ser violentos — brancos, negros, índios, ricos, pobres, tanto faz —, porque este foi o modelo utilizado pela colonização européia para construir a civilização brasileira. Temos dezenas de milhões de pobres que só são pobres porque seus ancestrais foram subjugados violentamente por sádicos em busca de riquezas. Boa parte deles aprenderam a linguagem da violência e a reproduzem geração após geração.
A pobreza pela qual os fracos e esculachados de nossa história passaram, e ainda passam, não se deu por falta de capacidade, como muitos querem fazer acreditar. Houveram violências graves. Eles foram submetidos na base da força e obrigados, juntos com sua prole, a abaixarem suas cabeças e obedecerem. Isto não é algo que seres humanos aguentam por muito tempo, portanto tal violência passou a servir como forma de expressão não apenas dos mais fortes, mas também dos mais fracos, o que dura até hoje. Só dar porrada e dizer "faça por onde" aos pobres, negros e índios não resolverá nada — não porque os hippies estavam certos e basta cantarmos de mãos dadas, mas porque não estamos lidando com a raiz do problema.
De pouco adianta os menos favorecidos — a grande maioria da população, boa parte deles negros e pardos — "correrem atrás do seu" ou "batalharem". Sim, muitos irão, através do talento e da sorte, mudar de vida, mas a maioria não conseguirá. A maioria continuará vivendo em periferias e favelas, porque o jogo da vida no Brasil não é nem um pouco justo. Quem diz que é, mente. Sem que ocorra uma mudança estrutural na maneira como as coisas funcionam, a maioria dos brasileiros nunca terá uma vida abastada, por mais que tentem.
Também não adianta dar porrada nos pobres — a maioria negros e pardos — esperando que isso resolva o problema da violência nas periferias. Se o uso exclusivo da política de repressão fosse eficaz, não teríamos mais de trinta assassinatos por cem mil habitantes. Aconteceram 63 mil homicídios neste país em 2017, a maioria das vítimas eram homens jovens, negros, pardos e pobres. Se o uso exclusivo da repressão funcionasse contra o crime, 94% dos homicídios dolosos não estariam sem solução no Brasil. Há de se reprimir o crime, sim, principalmente o crime violento, mas é risível pensar que apenas isso bastará para melhorar alguma coisa. Já não deu certo ao longo de décadas, não vai ser agora que vai dar.
Pobreza não necessariamente gera violência — a Índia possui uma renda per capita bem menor que a brasileira e tem uma média de três assassinatos por cem mil habitantes. Porém, no nosso caso, a pobreza foi gerada e mantida na base de uma violência extrema. Estes acontecimentos não ocorreram há milhares de anos, eles têm poucos séculos e foram continuados até os nossos dias. Foi essa a linguagem passada aos negros, índios e pobres de todas as raças ao longo do tempo no Brasil. Seria bom se não tornássemos as coisas ainda piores: se existe a chance de políticas públicas remediarem o sofrimento de pessoas que nasceram em clara desvantagem — seja por que elas descendem de grupos claramente prejudicados no passado, seja por elas serem pobres independentemente de quem foram os seus antepassados —, ela deve ser tomada.
Além disso, os povos que foram maltratados até pouco tempo na nossa história precisam ter a liberdade de se expressar, de resgatar suas raízes, suas tradições sufocadas, seu orgulho como membros de uma comunidade. O público brasileiro assiste normalmente à novelas como Terra Nostra, mas qualquer manifestação de culturas periféricas nas mídias é considerada negativa. Essas manifestações são vistas pelo brasileiro conservador médio, usuário de Facebook em 2018, como uma tentativa de doutrinação esquerdista ou alguma outra balela do tipo.
A pior coisa que nossa sociedade pode fazer com os descendentes de povos massacrados e coisificados hoje é negar o acesso à uma vida melhor e proibi-los de manifestar sua cultura. Se fizermos isso estaremos legitimando a brutalidade do passado no presente. Seus avós podem ter vindo para o Brasil no século XX, podem não ter tido nada a ver com os horrores que aconteceram com esses povos, mas agora você está aqui e tem que lidar com os efeitos de toda aquela brutalidade. Melhor não piorar ainda mais o que já é muito ruim, entender que eles precisam de espaço e de oportunidades reais de melhora na sua condição material.
Nenhum povo é inocente. Todos os povos sofrem. Sim, os europeus também sofreram muito durante sua história. O mundo não se divide entre pessoas boas e más. Não há um só povo, uma só pessoa, que justifique a humanidade. Somos todos dotados da incrível capacidade de arruinarmos uns aos outros e a vida em geral. Mas não se pode negar que em certos casos, em determinadas épocas, alguns conseguem ser muito piores do que a média da humanidade, que já é muito ruim. O que foi feito na nossa terra ao longo de séculos foi um desastre que nunca foi mitigado, apaziguado, consertado. O resultado está aí, e pelo andar da carruagem deve piorar ainda mais.
Nós que vivemos hoje não participamos daqueles eventos como vítimas ou algozes, mas herdamos o passado daquelas vítimas e daqueles algozes através da cadeia de acontecimentos e pessoas que nos liga até ele. Ainda que nossos avós e bisavós tenham vindo da Europa para esta terra ao final do século XIX ou início do XX, por mais que eles não tenham tomado parte direta ou indiretamente nas coisas ruins que aqui ocorreram, o fato é que eles vieram para cá e nos inseriram dentro desta sociedade onde todas aquelas desgraças aconteceram.
O que fazer? Dar com os ombros e dizer "não tenho culpa"? Realmente, não temos. Fomos colocados no mundo sem o nosso consentimento e obrigados a lidar com uma realidade que não criamos. O sadismo da nossa história contra determinados povos — além do sadismo da história brasileira contra os mais fracos em geral, contra os pobres de todas as raças, inclusive europeus — permeia o presente. A violência sempre foi a maneira de nos expressarmos por excelência. Seria bom poder sair na rua e não ter medo dela, mas ela foi reproduzida e ensinada por muito, muito tempo. Não precisou chegar o Bolsonaro para o país cultuar a violência. Ela já é cultuada há séculos. Todos aqui aprenderam a ser violentos — brancos, negros, índios, ricos, pobres, tanto faz —, porque este foi o modelo utilizado pela colonização européia para construir a civilização brasileira. Temos dezenas de milhões de pobres que só são pobres porque seus ancestrais foram subjugados violentamente por sádicos em busca de riquezas. Boa parte deles aprenderam a linguagem da violência e a reproduzem geração após geração.
A pobreza pela qual os fracos e esculachados de nossa história passaram, e ainda passam, não se deu por falta de capacidade, como muitos querem fazer acreditar. Houveram violências graves. Eles foram submetidos na base da força e obrigados, juntos com sua prole, a abaixarem suas cabeças e obedecerem. Isto não é algo que seres humanos aguentam por muito tempo, portanto tal violência passou a servir como forma de expressão não apenas dos mais fortes, mas também dos mais fracos, o que dura até hoje. Só dar porrada e dizer "faça por onde" aos pobres, negros e índios não resolverá nada — não porque os hippies estavam certos e basta cantarmos de mãos dadas, mas porque não estamos lidando com a raiz do problema.
De pouco adianta os menos favorecidos — a grande maioria da população, boa parte deles negros e pardos — "correrem atrás do seu" ou "batalharem". Sim, muitos irão, através do talento e da sorte, mudar de vida, mas a maioria não conseguirá. A maioria continuará vivendo em periferias e favelas, porque o jogo da vida no Brasil não é nem um pouco justo. Quem diz que é, mente. Sem que ocorra uma mudança estrutural na maneira como as coisas funcionam, a maioria dos brasileiros nunca terá uma vida abastada, por mais que tentem.
Também não adianta dar porrada nos pobres — a maioria negros e pardos — esperando que isso resolva o problema da violência nas periferias. Se o uso exclusivo da política de repressão fosse eficaz, não teríamos mais de trinta assassinatos por cem mil habitantes. Aconteceram 63 mil homicídios neste país em 2017, a maioria das vítimas eram homens jovens, negros, pardos e pobres. Se o uso exclusivo da repressão funcionasse contra o crime, 94% dos homicídios dolosos não estariam sem solução no Brasil. Há de se reprimir o crime, sim, principalmente o crime violento, mas é risível pensar que apenas isso bastará para melhorar alguma coisa. Já não deu certo ao longo de décadas, não vai ser agora que vai dar.
Pobreza não necessariamente gera violência — a Índia possui uma renda per capita bem menor que a brasileira e tem uma média de três assassinatos por cem mil habitantes. Porém, no nosso caso, a pobreza foi gerada e mantida na base de uma violência extrema. Estes acontecimentos não ocorreram há milhares de anos, eles têm poucos séculos e foram continuados até os nossos dias. Foi essa a linguagem passada aos negros, índios e pobres de todas as raças ao longo do tempo no Brasil. Seria bom se não tornássemos as coisas ainda piores: se existe a chance de políticas públicas remediarem o sofrimento de pessoas que nasceram em clara desvantagem — seja por que elas descendem de grupos claramente prejudicados no passado, seja por elas serem pobres independentemente de quem foram os seus antepassados —, ela deve ser tomada.
Além disso, os povos que foram maltratados até pouco tempo na nossa história precisam ter a liberdade de se expressar, de resgatar suas raízes, suas tradições sufocadas, seu orgulho como membros de uma comunidade. O público brasileiro assiste normalmente à novelas como Terra Nostra, mas qualquer manifestação de culturas periféricas nas mídias é considerada negativa. Essas manifestações são vistas pelo brasileiro conservador médio, usuário de Facebook em 2018, como uma tentativa de doutrinação esquerdista ou alguma outra balela do tipo.
A pior coisa que nossa sociedade pode fazer com os descendentes de povos massacrados e coisificados hoje é negar o acesso à uma vida melhor e proibi-los de manifestar sua cultura. Se fizermos isso estaremos legitimando a brutalidade do passado no presente. Seus avós podem ter vindo para o Brasil no século XX, podem não ter tido nada a ver com os horrores que aconteceram com esses povos, mas agora você está aqui e tem que lidar com os efeitos de toda aquela brutalidade. Melhor não piorar ainda mais o que já é muito ruim, entender que eles precisam de espaço e de oportunidades reais de melhora na sua condição material.
Nenhum povo é inocente. Todos os povos sofrem. Sim, os europeus também sofreram muito durante sua história. O mundo não se divide entre pessoas boas e más. Não há um só povo, uma só pessoa, que justifique a humanidade. Somos todos dotados da incrível capacidade de arruinarmos uns aos outros e a vida em geral. Mas não se pode negar que em certos casos, em determinadas épocas, alguns conseguem ser muito piores do que a média da humanidade, que já é muito ruim. O que foi feito na nossa terra ao longo de séculos foi um desastre que nunca foi mitigado, apaziguado, consertado. O resultado está aí, e pelo andar da carruagem deve piorar ainda mais.