Homens e baratas
Hubble ultra deep field, NASA |
Tenho grandes amigos que imaginam estar no meio de um processo histórico de superação de uma contradição, no qual duas forças opostas digladiam-se pelo controle da realidade. Discordo deles. Não acredito em nada disso. Só há duas características que posso concluir ao observar a realidade. A primeira delas é que não existe um rumo além daquele que é ditado pela natureza, com suas leis físicas, químicas e biológicas, e nós fazemos parte da natureza. A segunda é que a realidade é, em sua maior parte, dolorosa para os seres vivos dotados da capacidade de sentir dor.
Não digo que a realidade é ruim e dolorosa por causa da política. Ela é ruim e dolorosa em relação ao todo no qual os entes estão inseridos, desde o começo do tempo. Não tenho uma visão negativa da realidade porque penso que havia um modelo ideal que foi corrompido, mas porque que tudo está "corrompido" desde o começo, desde a primeira coisa que existiu.
Poderíamos dizer que nós "sobramos" aqui, nesta vida, e passamos toda ela procurando um sentido magnânimo, seja ele metafísico ou material, que não existe. Não penso que podemos concluir uma teleologia ao estudarmos o caminhar da história humana. Discordo que exista um propósito ou uma finalidade que se realizará quando todas as contradições forem superadas e houver harmonia entre os homens. Tentamos tornar a realidade menos pior — e em alguns lugares e épocas conseguimos, o que é positivo, claro —, mas nunca haverá um desfecho favorável. Parece-me fantasia acreditar que sim, por mais que, às vezes, esta fantasia seja bem elaborada.
Discordo que a história dos homens seja o desenrolar racional da Ideia, do Espírito ou das forças do mundo material através de um longo processo de superação de opostos, sejam eles ideais ou materiais. Isto quer dizer que discordo de Hegel e, também, de seus críticos e reformadores materialistas. A história dos homens, como a história de qualquer coisa no universo, até pode ser determinada mecanicamente, mas não é pautada por uma razão que nos usa para colonizar o universo, fazendo de nós seus agentes, algo que nos tornaria especiais, ainda que de uma forma tortuosa. Ela pode ser inteligível, compreendida a posteriori, sim, mas não se comporta de forma racional, não da maneira que pensadores dialéticos do século XVIII e XIX acreditavam. Se há racionalidade, ela é alheia a nossa presença e não aparentamos ser importantes nem individualmente, nem coletivamente.
Acredito que, na ânsia por descobrir a mecânica por de trás da história, alguns filósofos enxergaram padrões onde eles não existem e fizeram projeções a respeito do futuro baseando-se nesses padrões inexistentes. Não há nada que indique que as forças históricas nos impulsionam em direção a um desfecho desejável, pelo qual devemos lutar e morrer. Ao que parece, tanto a história natural quanto a humana engendrarão novos infernos ainda piores do que aqueles pelos quais a vida na Terra já passou.
Nada disso, no entanto, significa que devemos nos resignar e aceitar coisas negativas da vida como se não existisse nada que possamos fazer. Lutemos, sim, por um agora que não seja tão ruim. Não me oponho aos que batalham contra a concentração de renda, a mercantilização do ser humano e a pobreza, pelo contrário, eu os apoio. Mas não acredito em um futuro que possa redimir as lágrimas e dores passadas ou presentes. Nenhum futuro será capaz de redimir um único idoso morrendo sozinho, com frio e fome, esquecido pela família. Nada no futuro da humanidade justificará as dores sentidas por uma única criança lançada ao fogo pelos fenícios em sacrifício aos deuses.
Contudo, para os que creem que a história é uma sucessão de lutas que levam ao progresso, qualquer atitude que não seja o engajamento em favor do que acreditam ser a verdade da existência é equivalente a aceitar a opressão. Equivale, portanto, à uma legitimação do mal, seja ele qual for. Uns dirão que este mal é a opressão dos trabalhadores no modo de produção capitalista, outros dirão que o mal é representado pelos movimentos progressistas que querem acabar com a família tradicional e a propriedade privada — afinal, assim como existem herdeiros progressistas de Hegel, também existem os conservadores. Esse tipo de pensamento permeou tudo e, ao que parece, muitos de nós crescemos presos a ele.
Na minha vivência, quase não existem pessoas que discordam que a história se comporta necessariamente como uma espécie de evolução para algo melhor, que vai desde o mais primitivo até o mais desenvolvido. Pouco interessa que uns acreditem que a época mais desenvolvida se dará quando atingirmos uma sociedade sem classes, ou se o mais alto grau de desenvolvimento ocorrerá com a segunda vinda de Jesus Cristo. Todos concordam que a história segue algo e que este algo pode ser entendido de tal forma que podemos saber exatamente onde estamos dentro do processo e para onde vamos. Parece não haver grandes diferenças entre o pensamento místico ou o pensamento materialista.
Aqueles que têm fé na história humana como o progresso de algo acreditam piamente que abster-se do mundo — ou desejar uma alternativa diferente — é dar o voto para o inimigo. Não simpatizar com eles é — dentro de tal ótica, salvo raras exceções — automaticamente simpatizar com o lado errado. Observo isso todos os dias há dois meses, por conta das eleições presidenciais. Místicos e materialistas, infernizando meu devir. Ambos acham que é impossível não tomar um lado ou defender uma terceira posição, porque ambos, no fundo, acreditam que discordar da vanguarda, seja ela qual for, beneficia o inimigo, quer queiramos ou não.
Então, de acordo com meus chegados dialéticos (tanto os progressistas, materialistas, quanto os conservadores, místicos), a verdade certamente não é democrática, já que os candidatos mais rejeitados estão no segundo turno da eleição presidencial. Na tragédia do progresso histórico, portanto, os agentes com poder real são poucos. A maior parte da humanidade é arrastada contra a sua vontade.
Concordo que a verdade não seja democrática. A maioria das pessoas acredita que existir é uma benção e que há mais coisas boas no mundo do que ruins, e isso não é verdade. Os dialéticos sérios concordarão comigo que essas afirmações são falsas. O que me distingue deles é que não acredito na possibilidade de uma superação de contradições que dará a luz à uma realidade histórica que justifique todo o sangue, miséria e degradação pela qual a humanidade — e a vida em geral — passou ao longo da história. Não tenho como acreditar nisso. Nenhuma Utopia futura será capaz de justificar o nascimento, envelhecimento, doença, dor e morte de um ser vivo contra a sua vontade.
Há uma citação que tem sido erroneamente atribuída à Dante Alighieri, supostamente encontrada na Divina Comédia, que vi sendo utilizada muito nestas eleições: "o lugar mais quente do inferno é reservado para aqueles que se mantiveram neutros em tempos de crise." Esta frase não está na Divina Comédia. Contudo, no Canto III do Inferno, Dante e Virgílio entram no vestíbulo do Inferno, onde não é nem quente nem frio. Lá encontram os anjos que não foram nem fiéis, nem rebeldes a Deus, além das almas dos covardes que não foram nem louvados, nem difamados em vida. São anjos e homens que não foram aceitos nem pelo Céu, nem pelo Inferno. Sua punição é passar a eternidade na antecâmara do Inferno. Lá caminham incessantemente atrás de uma bandeira, sendo picados por vespas e mutucas.
Ser neutro é diferente de ser covarde e difere ainda mais de ser convicto de uma posição que não está de acordo com as duas grandes narrativas (ilusões) do nosso tempo, que é o caso em que me encontro na atual disputa. Não concordo que o partido da esquerda e seus aliados são a encarnação do processo histórico de libertação dos oprimidos. Não.
Penso que é um partido ruim, corrupto, desastroso e inconsequente, que contribuiu para o crescimento de um movimento de direita violento ao polarizar ainda mais a sociedade — muito embora não seja o único fator. Também discordo que o candidato da extrema-direita represente o lado de Deus na luta contra as forças do mal, da corrupção, da imoralidade e outras fantasias que seus apoiadores acreditam. Seu sucesso é apenas a capitalização de uma aposta política, que via no povo brasileiro um eleitorado muito mais conservador e reacionário do que setores progressistas acreditavam. Deu certo e ele provavelmente vencerá domingo.
Independente do que o futuro nos reservasse — uma revolução que inaugurasse uma nova era de igualdade e progresso humano; uma guerra que derrotasse o materialismo ateu coletivista; ou alguma outra bobagem —, seria positivo se entendêssemos que nada disto foi feito para nós: o planeta, o sistema solar, a galáxia, o universo. Uma barata que fosse capaz de refletir acreditaria que o esgoto foi feito para ela viver, quando na verdade o esgoto não foi feito nem especificamente, nem indiretamente para ela.
É um acidente que o esgoto sirva para a barata viver. Da mesma forma, é um acidente que este universo sirva para nós vivermos. Ao que tudo indica, não há um propósito aconchegante por de trás disto tudo. O que há é uma abundância infinita de dores. Mas acho que nunca vamos entender. No futuro, quando o último ser humano estiver prestes a morrer, ele provavelmente debater-se-á em prantos, acreditando, como tantos ao longo de nossa breve história, que deveria haver algo a mais.