Outubro de 2018
"No que me diz respeito, eu renuncio à humanidade. [...] O que me restaria fazer? Servir um sistema social e político [...] ? Procurar fraquezas em sistemas filosóficos, lutar pela moral ou por ideais estéticos? Tudo isso é muito pouco. Eu renuncio à minha humanidade, apesar da possibilidade de acabar sozinho. Contudo, já não estou sozinho neste mundo do qual não espero mais nada?"
—Emil Cioran, Nos Cumes do Desespero
Monge contemplando a morte, de Thomas Couture |
Lá vamos nós, mais uma vez, nos digladiar como se o que estivesse em jogo fosse o futuro imortal de nossas inexistentes almas sobrenaturais. Não é o caso, mas possivelmente muita coisa está em jogo. Há quem diga não. Quem sabe ao certo? Ao meu ver é uma questão estética, vai além da política. Nenhum político que pinta um mundo feio demais, colocando-se como a única alternativa para salvá-lo, agrada-me. É verdade que no mundo abundam coisas desagradáveis de se ver, mas elas não são do tipo que o candidato Jair Bolsonaro e seus aliados colocam.
Para os que irão votar nele com convicção ideológica, estas são as coisas desagradáveis que precisam ser mudadas: a tolerância às diferenças, o questionamento ao mito da meritocracia — mito que ele e seus eleitores acreditam ferozmente — e o estado do bem-estar social. Estas três coisas são algumas das principais características do que podemos chamar de "civilização moderna" ou contemporânea. Os países com maior qualidade de vida possuem uma boa dose dessas três características. Bolsonaro e seus eleitores convictos consideram tais características como sendo não apenas ruins do ponto de vista político, econômico e social, mas feias. Eles acham feio tolerar o diferente, acham feio questionar o mito da meritocracia e, por consequência, acham feio o estado do bem-estar social.
Além dos bolsonaristas convictos, há também os anti-petistas raivosos, que votariam até no assassino do próprio filho desde que fosse para evitar o retorno do PT ao poder. Não irei tratar deles neste texto, mas o que vou escrever sobre os eleitores convictos de Bolsonaro também serve, em parte, para eles.
Além dos bolsonaristas convictos, há também os anti-petistas raivosos, que votariam até no assassino do próprio filho desde que fosse para evitar o retorno do PT ao poder. Não irei tratar deles neste texto, mas o que vou escrever sobre os eleitores convictos de Bolsonaro também serve, em parte, para eles.
Voltando ao que escrevi no primeiro parágrafo: aqueles que consideram que há muita coisa em jogo são os que consideram que as próximas eleições trazem um sério risco à democracia representativa que temos, pois temem um autocrata fascistoide como chefe de estado; já os que pensam que não há tanta coisa em jogo, justificam tal posicionamento com alguma filosofia política. Um bom exemplo desse segundo caso são alguns colegas meus que enxergam a história a partir de perspectivas dialéticas, seja o hegelianismo ou o materialismo histórico.
Segundo esses colegas, a democracia burguesa só permitirá que Haddad (ou Ciro ou algum não-direitista) governe caso ele obedeça aos comandos da burguesia. Para eles, um presidente de esquerda, no máximo, teria de imitar o estilo "Lulinha Paz e Amor" das eleições de 2002 — quando Lula se apresentou ao eleitorado brasileiro e ao mercado financeiro como um reformador social-democrata que não mexeria muito nos privilégios das classes dominantes, e não mais como um socialista que queria pôr o fim ao capitalismo (o que deu certo, Lula venceu e governou desta forma até meados de seu segundo mandato).
Tendo à concordar com meus amigos seguidores de Hegel e de Marx nesse ponto. Especialmente quando vejo declarações feitas recentemente por militares de alta patente, que dão a entender que eles não aceitarão o resultado das eleições caso Bolsonaro não seja eleito — ou, pelo menos, não aceitarão nenhuma guinada muito à esquerda de um possível governo Haddad ou Ciro. Essas declarações encaixam-se perfeitamente na narrativa de que a classe que detêm o poder econômico e político não quer nenhum governo que altere seus privilégios.
Sim, concordo com eles nesse ponto, embora considere sua crença de que a história humana possua um télos — crença compartilhada de maneira diferente por hegelianos e marxistas — como sendo um conto-de-fadas para adultos racionalistas que não acreditam em deuses. Não acreditam em papai do céu, nem na mão invisível do mercado — o que é ótimo, pois também não acredito — mas dão crédito à noções fantasiosas de uma história guiada pelo ideal ou pela materialidade.
Não tem problema, não será por causa dessa diferença de pensamento que não vou concordar com a análise prática de meus colegas. Sim, as próximas eleições no Brasil não serão apenas sobre os candidatos, mas dirão respeito à toda uma estrutura material global, a qual os candidatos terão que lidar depois de eleitos. Concordo que se candidatos como Bolsonaro ou Alckmin forem eleitos, eles conformar-se-ão à essa estrutura material capitalista dominante, enquanto que candidatos como Haddad ou Ciro, se eleitos, no máximo seriam capazes de realizar reformas em doses homeopáticas (se isso) — caso contrário, o sistema os derrubaria, ou pelo menos tentaria.
Mas também dou crédito ao lado mais superficial das eleições, que não leva em conta essa análise da estrutura global do capital. Isto quer dizer que concordo que Bolsonaro representa uma visão simplista, negadora da política, autoritária e fascistoide.
(E como chegamos neste ponto? Não sei. Ao longo dos anos 90, assisti inúmeros noticiários em que protestos de estudantes e sindicatos eram destaque. Durante aqueles protestos, PSDB, FHC e seus eleitores eram frequentemente chamados "fascistas". Parece ser uma ironia trágica do destino que brasileiros de centro e centro-direita — que representam uma parcela significativa do eleitorado até hoje — cansaram de ser chamados de fascistas pelos movimentos progressistas e agora vão eleger um fascista de verdade. Agora talvez fosse o momento certo para alguns progressistas realizarem uma autocrítica, mas tenho certeza que o momento passará em vão e continuarão antagonizando todos aqueles que estão à sua direita, inclusive pessoas que também são de esquerda.)
Isso significa que vou retornar às minhas raízes pré-liberais e fazer campanha para o PT, como fiz em 2002 para o Lula? Antes de responder, farei um pequeno retrospecto da minha vida nos próximos três parágrafos:
(E como chegamos neste ponto? Não sei. Ao longo dos anos 90, assisti inúmeros noticiários em que protestos de estudantes e sindicatos eram destaque. Durante aqueles protestos, PSDB, FHC e seus eleitores eram frequentemente chamados "fascistas". Parece ser uma ironia trágica do destino que brasileiros de centro e centro-direita — que representam uma parcela significativa do eleitorado até hoje — cansaram de ser chamados de fascistas pelos movimentos progressistas e agora vão eleger um fascista de verdade. Agora talvez fosse o momento certo para alguns progressistas realizarem uma autocrítica, mas tenho certeza que o momento passará em vão e continuarão antagonizando todos aqueles que estão à sua direita, inclusive pessoas que também são de esquerda.)
Isso significa que vou retornar às minhas raízes pré-liberais e fazer campanha para o PT, como fiz em 2002 para o Lula? Antes de responder, farei um pequeno retrospecto da minha vida nos próximos três parágrafos:
Quando era bem jovem, antes dos meus vinte, tendi à esquerda. Votei em Lula, fiquei contente com sua vitória, mas logo a euforia acabou. Desiludi-me com a esquerda e acabei caindo no conto dos demagogos mais ridículos que se possa imaginar. Durante um breve período da minha vida, comecei a ler alguns textos de um tal filósofo obscuro, que na época escrevia para O Globo, e hoje é bem famoso por falar as mais grotescas barbaridades sobre todos os temas possíveis. Que vergonha, que mancha na minha vida. Impressiona-me ver, 15 anos depois, outros jovens (e alguns não tão jovens assim) caírem na ladainha do tal filósofo de direita, que não nomearei aqui.
Essa fase, contudo, não durou muito tempo. Logo percebi que aquilo que o tal filósofo de extrema direita vendia não passava de uma seita falida. Seu suposto conhecimento era fundamentado em teorias da conspiração recicladas dos Estados Unidos. Na época, entre 2002 e 2003, sua seita não fazia tanto sucesso assim, por isso, nos últimos anos, espantei-me ao ver como ela tem crescido. Uma pena tantos aderirem à um culto obscurantista altamente destrutivo. Tendo dito isso, continuarei a minha retrospectiva: depois daquele surto de imbecilidade, tornei-me liberal, coisa da qual também me arrependo. Contudo, creio que foi positivo ter abraçado aquelas ideias na época em que as abracei. De certa forma, olhando agora para o meu passado, percebo que foi bom aprender, de um ponto de vista internalista, o quanto esses movimentos estão errados em praticamente tudo o que pregam.
Muito embora não declare mais um lado, as iniciativas políticas com as quais simpatizo poderiam ser classificadas como sendo de centro-esquerda: penso que bilionários deveriam pagar proporcionalmente mais impostos do que as classes média e pobre, que o estado deve financiar o bem-estar geral da população e não servir de balcão de negócios para multimilionários. Não estou pedindo chavismo no Brasil. Muito pelo contrário, tenho aversão àquele regime e suas variantes que pipocaram na América Latina durante o início do século XXI. Porém, a ideia de cobrar mais dos ricos para a implementação de um estado do bem-estar social não necessariamente causa o total derretimento de um país, como o chavismo fez. Há exemplos de nações abastadas e prósperas que cobram mais dos ricos e têm um forte estado do bem-estar social — mas claro, admito a possibilidade de estar errado. Foi por estar aberto a argumentos contrários que abandonei liberalismo, anos atrás.
Depois desse retrospecto, posso responder: não, não farei campanha para ninguém. Apesar dos slogans repetidos pelos eleitores convictos de Haddad sejam parecidos com o que acho ser o correto na política, não posso fingir que não aconteceram coisas muito ruins entre 2002 e 2016. Muitas coisas excelentes aconteceram, é verdade, mas certamente não foram suficientes para fazer com que o país deixasse de ser altamente dependente das commodities que exporta. Enquanto a China copia e melhora tecnologias americanas, produzindo aparelhos eletrônicos que rivalizam em qualidade e preço com as marcas americanas mais importantes, nós estamos aqui apostando todo o nosso futuro coletivo em soja e pré-sal. A China também produz algumas commodities, mas eles não se contentam em serem exportadores de commodities.
Se o Brasil quisesse ser uma potência econômica, como pareceu ser a pretensão do governo entre 2002 e 2016, certos passos precisavam ser dados e não foram. Quando o boom das commodities chegou ao fim, não tínhamos muito mais a oferecer. Com isso, investimentos diminuíram. Houve forte desaceleração econômica. Caíram os gastos com políticas sociais, educacionais, etc. Não foi necessário vir uma nuvem do mal chamada Temer para trazer mazelas ao Brasil. Os cortes já estavam ocorrendo antes do impeachment. Se o estado brasileiro compromete boa parte de seu orçamento pagando juros da dívida pública, como alguns candidatos à presidência em 2018 falam — e eu concordo com eles —, que esta demanda seja discutida e algo seja feito a respeito. Porém, dentro do orçamento liberado para investimento, uma quantidade exorbitante de dinheiro também foi desperdiçada com projetos falidos e corrupção endêmica no período de 2002 a 2016.
Aonde quero chegar com isso tudo? Que serei isento? Quem me dera. Quisera eu poder me abster do mundo, ter a coragem de me abster. Não decidi criar a mim mesmo, esta decisão foi tomada por mim e agora me vejo obrigado a lidar com toda esta desgraça, a fazer parte de toda esta desgraça. Na realidade, somos todos obrigados a fazer parte dela. Foi por isso que acabei respondendo de formas variadas com o passar dos anos: segui esta ou aquela tendência, justamente por aceitar a obrigação do engajamento, sem questionar. A vida toda caí, sem saber, no conto-de-fadas dialético de que somos obrigados a tomar um lado. Achava "impossível não se ter ideologia", como um dos meus colegas dialéticos disse para mim durante a semana. Não mais. Apesar de possuir opiniões e muito embora tome lados, questiono o jogo ao qual fui colocado sem minha autorização prévia — impossível de ser dada, claro, pois ninguém escolhe vir ao mundo, ninguém dá a luz a si próprio.
É verdade que, ao concordar que teria sido melhor se nossos ancestrais hominídeos não tivessem se reproduzido, acabo me importando menos com as soluções para os problemas da vida coletiva. Não me enxergo como participante de uma batalha dialética pela resolução da história humana, como alguns se enxergam. Estas coisas não passam de conto-de-fadas para adultos, como já disse. Mas não serei isento nas malditas eleições deste ano. Entretanto, nenhum dos dois candidatos que estão na frente nas pesquisas de intenção de voto me agradam.
Bolsonaro não me agrada em absolutamente nada. Acho detestável o plano ultra-liberal que Paulo Guedes, seu guru econômico, têm para a política econômica do país. Acho uma imbecilidade sem tamanho a proposta de liberar o porte de armas em um país onde a maioria das pessoas não sabe ler e escrever de fato, e onde a sociedade é tão fragmentada. Não somos a Suíça, o país com o terceiro maior número de armas per capita do mundo. Lá, todos os cidadãos possuem educação de altíssima qualidade, ninguém vive na miséria e as pessoas são treinadas (pelo estado) para defender o território da nação ao longo de toda a vida.
O estado suíço arma os seus cidadãos com fuzis e o número de assassinatos intencionais é de apenas 0,54 por 100 mil habitantes. Isto não é porque os cidadãos metem bala uns nos outros o tempo todo, mas porque a qualidade de vida é tão absurdamente alta na Suíça que quase não existem os tipos de crimes que ocorrem por aqui. Os suíços, embora diferentes entre si, possuem um senso de dever coletivo que não existe nem nos Estados Unidos — país que tanto bajulamos —, quanto mais no Brasil. Aqui no Brasil, mesmo com o porte limitado de armas, o número de assassinatos é de mais de 30 por 100 mil habitantes — a maioria deles cometida com o uso de armas. Boa parte desses assassinatos é passional, cometido pelas ditas "pessoas-de-bem". Liberar armas para toda a população brasileira causará um estrago ainda maior.
O saudosismo de Bolsonaro pelo regime militar (1964-1985) é outro ponto que não tenho como concordar. Os mitos que foram fomentados por setores da direita brasileira ao longo das últimas décadas, mitos que retratam o regime militar como um período de prosperidade, ordem, segurança e idoneidade, são todos falsos. O crescimento econômico durante a ditadura beneficiou, em sua maior parte, quem já era rico. Os poucos pobres que conseguiram mudar de vida, pessoas como meu pai, conseguiram a despeito do regime militar, não por causa dele. Essas pessoas tiveram, além de talento, muita sorte para conseguirem deixar a pobreza para trás.
Idoneidade também não existia. A razão de não terem sido noticiados escândalos financeiros o tempo todo na imprensa durante o regime militar é bem óbvia, não é preciso explicar. Quanto à ordem e à segurança: algumas das facções criminosas que hoje dominam o país já existiam — e já iam de vento em popa — antes do final do regime. Os militares pegaram o país com a criminalidade relativamente baixa e devolveram-no mais violento. Durante o regime, ninguém se preocupou com as mudanças demográficas que estavam ocorrendo no país, nem com o exacerbamento da pobreza extrema e da desigualdade sócio-econômica. Pergunte-se: como foi possível que grupos oriundos das comunidades mais pobres do Brasil tivessem acesso à armamento de guerra ainda no início anos oitenta? Ou o regime militar era incompetente ou não ligava à mínima. Deixaram a granada da violência explodir nas mãos do regime republicano que se seguiu e dura até hoje.
Sobre Haddad e seu partido, já escrevi um pouco do que penso nos parágrafos anteriores. Infelizmente, para mim, menos de um dia antes da votação começar, essas são as opções que aparentemente irão ao segundo turno na disputa presidencial. A única coisa que posso dizer é que, sendo obrigado a participar dos assuntos humanos da coletividade na qual estou inserido, sendo obrigado sair para votar amanhã, não votarei em nenhum dos dois, nem em Alckmin, nem em Daciolo, nem em Álvaro Dias, Amoedo, etc. E, quanto ao segundo turno, sob hipótese alguma votarei em Bolsonaro, o que não significa que estou disposto a votar no seu aparente rival — pelo menos não com satisfação. Quer dizer, isso se houver segundo turno.
O que, dada a loucura em que vivemos no país, pode acabar não fazendo diferença alguma — especialmente se acreditarmos nas ameaças veladas de alguns generais. Bolsonaro pode perder. Alguém de esquerda pode assumir. Mas, no primeiro ato considerado problemático aos olhos dos detentores do poder econômico e da força física, o próximo presidente poderá ser removido à força. Seria, portanto, um golpe militar real. Há cinco anos atrás, quando ainda possuía cacoetes liberais, mas já discordava desta filosofia política em praticamente tudo, considerei alarmismo o que alguns conhecidos meus falavam a respeito de um possível golpe militar para remover a então presidente. Tal golpe militar não se concretizou mas, para estes meus amigos, ocorreu um golpe político, consumado no impeachment. Agora, passados esses anos, tenho que dar o braço a torcer e dizer que a possibilidade de uma mudança de regime feita pela força não parece ser tão fantasiosa assim. Se vai acontecer ou não, só saberemos no futuro.
Eu — que não acredito que a história dos homens é um embate dialético entre forças materiais geradoras de sua própria negação; que não acredito na síntese final que trará a harmonia dos povos e a igualdade entre os homens; que não dou crédito à teleologias e à Utopia; que apenas queria viver em um mundo menos pior, em relativa tranquilidade, até retornar ao nada de onde fui tirado sem meu consentimento —, tristemente, terei que participar do jogo coletivo. Possuir opiniões sobre diferentes filosofias políticas, sobre diferentes partidos, governos e personalidades da república, não muda minha vontade original, de querer renunciar à humanidade, de querer renunciar à tudo. Mas isso não é possível. O estrago já foi feito e eu estou aqui, é tarde demais para fazer qualquer coisa. Tenho que participar. Não serei isento, mas não acredito em nenhuma de suas grandes visões para o futuro. Votarei em quem acredito que será menos pior, se é que essa pessoa existe. Apenas isso.
Se o Brasil quisesse ser uma potência econômica, como pareceu ser a pretensão do governo entre 2002 e 2016, certos passos precisavam ser dados e não foram. Quando o boom das commodities chegou ao fim, não tínhamos muito mais a oferecer. Com isso, investimentos diminuíram. Houve forte desaceleração econômica. Caíram os gastos com políticas sociais, educacionais, etc. Não foi necessário vir uma nuvem do mal chamada Temer para trazer mazelas ao Brasil. Os cortes já estavam ocorrendo antes do impeachment. Se o estado brasileiro compromete boa parte de seu orçamento pagando juros da dívida pública, como alguns candidatos à presidência em 2018 falam — e eu concordo com eles —, que esta demanda seja discutida e algo seja feito a respeito. Porém, dentro do orçamento liberado para investimento, uma quantidade exorbitante de dinheiro também foi desperdiçada com projetos falidos e corrupção endêmica no período de 2002 a 2016.
Aonde quero chegar com isso tudo? Que serei isento? Quem me dera. Quisera eu poder me abster do mundo, ter a coragem de me abster. Não decidi criar a mim mesmo, esta decisão foi tomada por mim e agora me vejo obrigado a lidar com toda esta desgraça, a fazer parte de toda esta desgraça. Na realidade, somos todos obrigados a fazer parte dela. Foi por isso que acabei respondendo de formas variadas com o passar dos anos: segui esta ou aquela tendência, justamente por aceitar a obrigação do engajamento, sem questionar. A vida toda caí, sem saber, no conto-de-fadas dialético de que somos obrigados a tomar um lado. Achava "impossível não se ter ideologia", como um dos meus colegas dialéticos disse para mim durante a semana. Não mais. Apesar de possuir opiniões e muito embora tome lados, questiono o jogo ao qual fui colocado sem minha autorização prévia — impossível de ser dada, claro, pois ninguém escolhe vir ao mundo, ninguém dá a luz a si próprio.
É verdade que, ao concordar que teria sido melhor se nossos ancestrais hominídeos não tivessem se reproduzido, acabo me importando menos com as soluções para os problemas da vida coletiva. Não me enxergo como participante de uma batalha dialética pela resolução da história humana, como alguns se enxergam. Estas coisas não passam de conto-de-fadas para adultos, como já disse. Mas não serei isento nas malditas eleições deste ano. Entretanto, nenhum dos dois candidatos que estão na frente nas pesquisas de intenção de voto me agradam.
Bolsonaro não me agrada em absolutamente nada. Acho detestável o plano ultra-liberal que Paulo Guedes, seu guru econômico, têm para a política econômica do país. Acho uma imbecilidade sem tamanho a proposta de liberar o porte de armas em um país onde a maioria das pessoas não sabe ler e escrever de fato, e onde a sociedade é tão fragmentada. Não somos a Suíça, o país com o terceiro maior número de armas per capita do mundo. Lá, todos os cidadãos possuem educação de altíssima qualidade, ninguém vive na miséria e as pessoas são treinadas (pelo estado) para defender o território da nação ao longo de toda a vida.
O estado suíço arma os seus cidadãos com fuzis e o número de assassinatos intencionais é de apenas 0,54 por 100 mil habitantes. Isto não é porque os cidadãos metem bala uns nos outros o tempo todo, mas porque a qualidade de vida é tão absurdamente alta na Suíça que quase não existem os tipos de crimes que ocorrem por aqui. Os suíços, embora diferentes entre si, possuem um senso de dever coletivo que não existe nem nos Estados Unidos — país que tanto bajulamos —, quanto mais no Brasil. Aqui no Brasil, mesmo com o porte limitado de armas, o número de assassinatos é de mais de 30 por 100 mil habitantes — a maioria deles cometida com o uso de armas. Boa parte desses assassinatos é passional, cometido pelas ditas "pessoas-de-bem". Liberar armas para toda a população brasileira causará um estrago ainda maior.
O saudosismo de Bolsonaro pelo regime militar (1964-1985) é outro ponto que não tenho como concordar. Os mitos que foram fomentados por setores da direita brasileira ao longo das últimas décadas, mitos que retratam o regime militar como um período de prosperidade, ordem, segurança e idoneidade, são todos falsos. O crescimento econômico durante a ditadura beneficiou, em sua maior parte, quem já era rico. Os poucos pobres que conseguiram mudar de vida, pessoas como meu pai, conseguiram a despeito do regime militar, não por causa dele. Essas pessoas tiveram, além de talento, muita sorte para conseguirem deixar a pobreza para trás.
Idoneidade também não existia. A razão de não terem sido noticiados escândalos financeiros o tempo todo na imprensa durante o regime militar é bem óbvia, não é preciso explicar. Quanto à ordem e à segurança: algumas das facções criminosas que hoje dominam o país já existiam — e já iam de vento em popa — antes do final do regime. Os militares pegaram o país com a criminalidade relativamente baixa e devolveram-no mais violento. Durante o regime, ninguém se preocupou com as mudanças demográficas que estavam ocorrendo no país, nem com o exacerbamento da pobreza extrema e da desigualdade sócio-econômica. Pergunte-se: como foi possível que grupos oriundos das comunidades mais pobres do Brasil tivessem acesso à armamento de guerra ainda no início anos oitenta? Ou o regime militar era incompetente ou não ligava à mínima. Deixaram a granada da violência explodir nas mãos do regime republicano que se seguiu e dura até hoje.
Sobre Haddad e seu partido, já escrevi um pouco do que penso nos parágrafos anteriores. Infelizmente, para mim, menos de um dia antes da votação começar, essas são as opções que aparentemente irão ao segundo turno na disputa presidencial. A única coisa que posso dizer é que, sendo obrigado a participar dos assuntos humanos da coletividade na qual estou inserido, sendo obrigado sair para votar amanhã, não votarei em nenhum dos dois, nem em Alckmin, nem em Daciolo, nem em Álvaro Dias, Amoedo, etc. E, quanto ao segundo turno, sob hipótese alguma votarei em Bolsonaro, o que não significa que estou disposto a votar no seu aparente rival — pelo menos não com satisfação. Quer dizer, isso se houver segundo turno.
O que, dada a loucura em que vivemos no país, pode acabar não fazendo diferença alguma — especialmente se acreditarmos nas ameaças veladas de alguns generais. Bolsonaro pode perder. Alguém de esquerda pode assumir. Mas, no primeiro ato considerado problemático aos olhos dos detentores do poder econômico e da força física, o próximo presidente poderá ser removido à força. Seria, portanto, um golpe militar real. Há cinco anos atrás, quando ainda possuía cacoetes liberais, mas já discordava desta filosofia política em praticamente tudo, considerei alarmismo o que alguns conhecidos meus falavam a respeito de um possível golpe militar para remover a então presidente. Tal golpe militar não se concretizou mas, para estes meus amigos, ocorreu um golpe político, consumado no impeachment. Agora, passados esses anos, tenho que dar o braço a torcer e dizer que a possibilidade de uma mudança de regime feita pela força não parece ser tão fantasiosa assim. Se vai acontecer ou não, só saberemos no futuro.
Eu — que não acredito que a história dos homens é um embate dialético entre forças materiais geradoras de sua própria negação; que não acredito na síntese final que trará a harmonia dos povos e a igualdade entre os homens; que não dou crédito à teleologias e à Utopia; que apenas queria viver em um mundo menos pior, em relativa tranquilidade, até retornar ao nada de onde fui tirado sem meu consentimento —, tristemente, terei que participar do jogo coletivo. Possuir opiniões sobre diferentes filosofias políticas, sobre diferentes partidos, governos e personalidades da república, não muda minha vontade original, de querer renunciar à humanidade, de querer renunciar à tudo. Mas isso não é possível. O estrago já foi feito e eu estou aqui, é tarde demais para fazer qualquer coisa. Tenho que participar. Não serei isento, mas não acredito em nenhuma de suas grandes visões para o futuro. Votarei em quem acredito que será menos pior, se é que essa pessoa existe. Apenas isso.