Existe literatura mais nojenta do que a de auto-ajuda? Difícil dizer. Toda vez que um guru da positividade realiza um evento pago para uma platéia desesperada, toda vez que vendedores de sonhos afirmam que todos nós temos a capacidade de nos tornarmos "melhores versões de nós mesmos", um anjo é desmembrado por demônios no inferno. Já me questionaram sobre isso: "e no que pensar negativamente ajuda?" Além de preparar melhor para quando as desgraças acontecem, e elas vão acontecer, não muito. Otimistas são tão cegos de positividade que boa parte deles esquecem que seus entes queridos são mortais, que existem acidentes, violência urbana e câncer para nos aleijar e matar.
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Casadores, de Carlos Torres |
Faz parte da vida, sim, mas é exatamente este o ponto. Se faz parte da vida, por que o desespero quando nossas mães morrem? Por que tantas lágrimas e inconformidade quando nossos filhos padecem de leucemia? Geralmente, aqueles que choram por essas coisas são os mesmos que não ligam a mínima para as crianças de rua pelas quais passam todos os dias a caminho do trabalho. Não tem problema, só precisamos parar de fingir que nos importamos com a dor de todos, é mentira. Não nos importamos nem com a dor dos nossos filhos, quanto mais a de crianças abandonadas por pessoas que nem sequer conhecemos.
Não ligamos para os nossos descendentes. Ligamos para nossa própria perpetuação. Se ligássemos para a nossa prole, pensaríamos em todas as desgraças que ela certamente passará e, também, nas desgraças que ela pode vir a passar ou causar, e teríamos compaixão suficiente para não tê-la. A reprodução humana é a junção de uma ânsia animalesca, coisa que compartilhamos com o resto do reino animal, e cultural. Claro, estou me referindo ao mundo material, físico. Mas posso jogar religião no meio, também.
Tomando o cristianismo (seja ele católico, ortodoxo ou protestante) como exemplo, sabemos que Deus ordenou a nossa multiplicação após o dilúvio, mas ao mesmo tempo sabemos, através das profecias, que boa parte da humanidade já está condenada ao inferno. Todas as vezes que geramos uma nova pessoa, uma nova alma vem ao mundo e corre o risco de ser condenada. Passar a existir, seja do ponto de vista puramente material ou do ponto de vista da fé, é um risco. Gerar alguém novo é, sob qualquer aspecto, brincar com o bem-estar de uma pessoa que nunca pediu para existir.
Hannah Arendt escreveu que a natalidade é algo positivo, pois instaura a possibilidade do novo no mundo: uma nova pessoa é diferente de todas as que vieram antes e todas as que virão depois. Tive um professor que brincou com isso, dizendo, parafraseando: "sim, temos a possibilidade de ter dez novos Hitlers, cinco novos Stalins, vinte novos Pol Pots." Ele é um grande pesquisador e admirador de Arendt, sua ironia não significou um desprezo pelo pensamento arendtiano. Também gosto de muitas coisas na filosofia de Arendt. Porém, a ironia do professor me pareceu válida. A inevitabilidade das desgraças, sejam elas pequenas ou gigantescas, está presente em absolutamente todos os nascimentos que ocorrem. Todo berço é uma cova. E alguns berços são também geradores de covas alheias.
O que os gurus da auto-ajuda vendem em seus livros e eventos caça-níquel é exatamente a mesma coisa que vendem os pregadores da palavra de Deus e os ideólogos partidários: uma luz que ilumine o caminho e nos mostre algum propósito. Sempre preciso afirmar, nesta parte, que não discordo que o mundo possa melhorar. Penso que não devemos desistir de lutar por uma situação melhor. Mas mesmo o melhor dos mundos (que nunca vai existir) será manchado por todas as coisas ruins das quais falo. E, mesmo se fosse possível atingir a Utopia, onde todos serão realizados e felizes, o caminho entre nós e esse futuro magnífico será marcado por inúmeras dores e absurdos. Parece-me ruim expor alguém a isso — e, se nem mesmo os pensamentos de gigantes da filosofia me convencem do contrário, dificilmente livros e palestras ministradas por charlatões no século XXI serão capazes de fazê-lo.