A limitação pela pirraça

É normal termos limitações, não somos deuses. Alguns têm a sorte de terem um único talento, seja ele inato ou desenvolvido, outros nem isso. Há apenas um nicho de coisas nas quais sou relativamente bom e nenhuma delas o mercado de trabalho recompensa com uma diversidade de oportunidades e altos salários. Tenho muitas limitações em outras áreas da vida, também. Por exemplo, tenho dificuldades para entender teoria musical. Alguns conhecidos meus são limitados literariamente ao ponto de não conseguirem ler um livro durante toda a vida, mas têm a sorte do mercado estar contratando e pagando bem por aquilo no qual eles têm talento e se dedicaram a aprender.


Até agora, nenhum mistério. Tratei dos talentos de cada um e como não podemos nos dedicar ou sermos bons em tudo. Nada fora do comum. É um dado da vida.

Há também aqueles que são limitados por serem portadores de problemas de saúde congênitos ou adquiridos. Limitação por razão de doença é mais uma das muitas características que apontam, pelo menos para mim, que a vida é um poço de injúrias que só um Deus mau seria capaz de forjar. A vida é trágica. Mas não é nem das limitações normais que todos nós temos, nem das limitações por razão de saúde que quero tratar aqui. Meu objetivo aqui é lidar com pessoas limitadas por pirraça. Existem pessoas que têm toda a capacidade física e mental para compreender algo, mas se recusam por terem medo de adquirir uma nova perspectiva. Acreditam que, ao assumirem que entenderam uma coisa nova, acabariam por destruir sua própria identidade.

Existem aqueles que pensam que mudar um posicionamento que possuem sobre determinado assunto seria algo tão agravante, tão radical, que isso implodiria toda a sua existência. Seria como assassinar a si mesmo; um insulto a seus ancestrais, à sua cultura; um desagravo a tudo o que há de bom e de belo no mundo. Sim, uma simples mudança de posicionamento através da absorção de novos dados e novos argumentos, para determinadas pessoas, significaria a morte. Isso talvez seja algum distúrbio mental, mas não sou especialista no assunto, então prefiro não palpitar. Porém, vou palpitar sobre aquilo que me cabe, por experiência.

Só para deixar claro o que estou falando, vou dar dois exemplos. Imaginem se o Bolsonaro acordasse um dia e pensasse: "porra, eu não acredito mais em nada do que estou falando." Ele teria dois caminhos. Um deles seria dar o braço a torcer, ser honesto consigo mesmo, e admitir que não é mais um conservador neofascista. O outro seria ele fingir que nada (ou quase nada) aconteceu e, quem sabe, ficar ainda mais radical no seu conservadorismo neofascista, adotando uma ideologia ainda mais bizarra, o conservadorismo-liberal-judaico-cristão-capitalista-olavista. É desse segundo caminho que estou falando: pessoas assim são limitadas por pura pirraça, nada mais.

Posso imaginar outro exemplo mais realista do que o anterior, pois sabemos que Bolsonaro nunca refletirá sobre suas crenças e sobre a possibilidade delas estarem erradas. Imaginemos um sujeito que, por convicção religiosa fundamentalista, recusou-se a vida toda a acreditar na teoria da evolução das espécies. Imaginemos que um dia ele acorda e percebe que sua crença tornou-se insustentável. Assim como no exemplo anterior, essa pessoa teria uma escolha a fazer: admitir que não acredita mais no criacionismo e, quem sabe, dar crédito para as teorias científicas, ou fingir que nada aconteceu e, talvez, ficar ainda mais radicalizado em sua crença.

As pessoas realizam um julgamento de valor interno quando, ao longo do tempo, deparam-se com uma série de informações que desmentem ou colocam em dúvida suas crenças sobre um determinado assunto. Isso é muito comum com relação à posicionamentos políticos e a religiosos. Em alguns casos a mudança pode ser muito difícil, pois toda uma rede de contatos, amizades e até familiares pode ter sido construída ao longo dos anos por conta dos posicionamentos que a pessoa tinha. Às vezes seu emprego depende da continuidade de suas crenças: imaginem padres ou pastores evangélicos percebendo que não acreditam mais em nada daquilo que pregam—eles existem e acabam vivendo esse dilema. Mas, em boa parte dos casos, não há nenhum grande prejuízo social ou financeiro associado ao abandono de determinadas posições—especialmente posições toscas, tóxicas e mal argumentadas. Em boa parte dos casos, a pessoa não muda porque é babaca, pura e simplesmente.

Penso que uma das razões possa ser o grande valor que se dá a ideia de opinião, associado à crítica que fazemos daqueles que são "vira-casaca" ou que "mudam de opinião toda hora". É verdade que pessoas que mudam de time ou de opinião por conveniência, ganho pessoal ou coisa do tipo, são dignas de desconfiança. Claro. Mas mudar de opinião devido ao aprendizado genuíno de determinados assuntos não deveria ser um problema, independente da frequência. Pelo contrário, deveria ser visto como virtude. Não estou argumentando que as pessoas devam mudar seus posicionamentos a respeito de um assunto para adotarem os meus posicionamentos — seria ótimo, mas não é esse o ponto que estou fazendo. O meu ponto é que devemos dar uma chance para aprendermos e analisarmos o contrário das nossas posições, tanto os argumentos que sustentam esse contrário quanto os que o minam. O ponto é darmos uma chance para sairmos do achismo e buscarmos fundamentar as nossas posições.

Vou exemplificar:

Fazem muitos anos que não sou uma pessoa religiosa. Mesmo assim, não vejo nenhum problema quando um descrente passa a acreditar em Deus. A única coisa que penso é que seria bom se ele fundamentasse sua nova posição a respeito desse tema importante em algum tipo de argumento. Não precisa ser um argumento puramente racional ou científico. Um argumento com algum tipo de rigor ou gravidade já basta. Até algo como: "tive uma profunda experiência sobrenatural que creio ter sido genuína e me converti a religião X" já está bom. Eu não serei convencido por esse argumento, mas não tem problema. Ter alguma argumentação, seja ela qual for, já significa que a pessoa alterou (ou manteve) seu posicionamento depois de algum tipo de reflexão um pouco mais profunda, seja ela correta ou não. Tendo a crer que esse tipo de atitude acabaria sendo mais benéfica do que maléfica, trazendo mais pessoas para o lado dos bons argumentos do que para o lado dos argumentos ruins. Pelo menos eu gostaria de acreditar nisso, mas acho que estou sendo otimista demais.

Até para concordar comigo gostaria que usassem algum tipo de fundamentação ou argumento. Aliás, é o que todo mundo que pensa deveria exigir de seus pares pensantes, ainda mais sobre temas importantes para a coletividade. Sem uma fundamentação, concordo com todos os que dizem que vira-casacas e pessoas que mudam de opinião toda a hora não são dignos de confiança. Porém, há o problema do babaca: volta e meia um babaca torna-se plenamente capaz de fundamentar uma mudança de pensamento e atitude, mas escolhe, por pura pirraça, continuar no seu mundinho dogmático—normalmente esse mundinho é rodeado de crenças tóxicas, nocivas à qualquer noção de civilização moderna. Muitos, ao serem expostos à outras visões de mundo mais bem fundamentadas do que as suas, tornam-se ainda mais dogmáticos e intolerantes com o contrário.

O problema é que certo e errado existem, por mais que na contemporaneidade sejamos alérgicos à esses conceitos. Determinados erros trazem consequências ruins não apenas para a vida da pessoa que erra, mas para a vida em geral. Quando se trata de crenças filosóficas, religiosas e políticas, alguns erros podem ter efeitos nefastos na coletividade—efeitos como pobreza, doença, destruição e mortandade. Erros políticos podem, inclusive, produzir a extinção involuntária da nossa espécie: bastam duas potências nucleares entrarem em conflito. Para usar um exemplo do Brasil atual: se a reforma da previdência vier a ser um erro, como alguns defendem e eu concordo que seja, um mal estará sendo feito.

Faria um bem enorme, por exemplo, se pessoas racistas no Brasil não apenas percebessem que o seu racismo foi motivado por pura babaquice cultural (como ter crescido em um lugar cheio de brancos que se acham o máximo), mas também assumissem essa nova percepção, ao invés de negarem ela e continuarem sendo racistas. Causaria um bem enorme, por exemplo, se as potências nucleares do mundo não só percebessem que é um erro manter um arsenal grande o suficiente para dizimar a vida humana—algo que elas já sabem—, mas abandonassem a postura militarista boçal e vivessem em paz como nações éticas.

Faria um bem enorme, mas nós sabemos que não será assim. Sabemos que, infelizmente, grande parte das pessoas que possuem posicionamentos tóxicos, quando confrontadas com a ideia contrária, tornam-se mais tóxicas, limitando-se ainda mais. É por isso que aqueles que se limitam por pirraça só podem ser definidos como babacas. Quando nós descobrimos que aquilo em acreditamos a vida toda provavelmente está errado e faz mal aos outros, temos uma escolha a fazer: mudar ou assumir a alcunha de babaca.