Discutimos burrices enquanto o mundo desaba ao nosso redor
Dizer que o nazismo foi um regime de esquerda, socialista, não é um erro inconsequente. Não é apenas uma burrice ou uma idiotia pontual. É um erro que tem consequências graves para o mundo real, que não se limitam ao energúmeno que repete essa imbecilidade incessantemente. Há erros que afetam somente a vida da pessoa, enquanto que existem aqueles que prejudicam a todos, até mesmo os que nem fazem ideia de que esses erros existem.
É isso que quero dizer quando afirmo que todos aqueles que falam que o nazismo foi de esquerda estão cometendo uma burrice enorme. É uma burrice comparável ao tamanho da Tsar Bomba detonada pela União Soviética durante a Guerra Fria. Eu expliquei direitinho os motivos pelos quais o fascismo e o nazismo não foram de esquerda no meu último texto, que você pode ler clicando aqui: Fascismo e nazismo não foram de esquerda. Agora quero falar sobre outra coisa, que é o fato incontestável do mundo ser um lugar cheio de pessoas que ficam discutindo burrices enquanto o que é importante é deixado de lado.
Quando uma civilização se organiza de tal maneira que há nela disfunções graves constantes, que nunca são solucionadas, é inevitável o surgimento de narrativas políticas para explicar o que está ocorrendo. Na civilização brasileira, recheada dos mais diversos problemas, diversas narrativas se desenvolveram. Quando paramos para observar, a maioria delas convergem para dois campos distintos: o campo das narrativas que dizem que o problema brasileiro é a esquerda (social-democratas, socialistas, comunistas, etc) e o campo das narrativas que dizem que o problema é a direita (liberais, conservadores, fascistas, etc). Quem está certo? Você pode perguntar para mil pessoas e terá mil respostas diferentes, inclusive nos pormenores, mas a grande maioria das respostas poderá ser encaixada em uma dessas grandes narrativas.
Há erros grosseiros nos dois campos. Os mais extremistas em ambos os campos afirmam, por exemplo, que o modelo social-democrata nórdico está em declínio, fracassando. Os direitistas falam isso para desqualificar o estado do bem-estar social e promover o liberalismo econômico, enquanto que os esquerdistas falam isso para criticar a social-democracia como um sistema de apaziguamento da classe trabalhadora que impede a implantação do verdadeiro socialismo. Não é verdade que a social-democracia nórdica está fracassando, é justamente o oposto: quem está fracassando é o liberalismo, enquanto que os países que adotaram o socialismo (propriedade estatal de todos os meios de produção) já fracassaram. Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Islândia vão muito bem, apesar de todas as imbecilidades que falam a respeito desses lugares.
Essas grandes narrativas têm se acirrado no mundo todo, no Brasil não é diferente. No caso brasileiro, o acirramento começou lá atrás, quando parte da esquerda passou a chamar qualquer liberal de fascista. Acusaram toda a imprensa tradicional de representarem somente a direita, afirmando que só veículos alternativos—ligados à esquerda, como Mídia Ninja—eram confiáveis. Essa atitude foi de uma imbecilidade enorme, porque esse tipo de ideia estapafúrdia sempre circula e acaba atravessando o campo ideológico, o que de fato aconteceu. Hoje não é possível encontrar um único bolsonarista histriônico na internet que não passa o dia escrevendo que o Globo, a Folha de São Paulo e o Estadão "mentem", "são de esquerda" e que "não dá para confiarmos nos meios de comunicação"—tirando os meios assumidamente de direita, é claro.
Estão vendo o furacão que foi armado? Não estão? Olhem para a política nacional, vejam quem é o presidente da república. Vejam como anda a economia e as propostas ridículas para melhorá-la. Vejam como anda a sociedade brasileira. Boa parte da direita diz que o Brasil ficou uma merda depois dos anos que o PT passou no poder, enquanto que boa parte da esquerda diz que tudo ficou uma merda a partir do momento que tiraram a Dilma da presidência. Nenhum dos dois grupos está certo. E a cereja no topo desse bolo de bosta é a completa dissociação da realidade por parte de setores da direita que afirmam que o fascismo e o nazismo foram movimentos políticos de esquerda. Uma afirmação dessas entra na disputa para ser o suprassumo dos erros, o ápice da imbecilidade humana.
Os governos do PT fizeram o mínimo do mínimo com seus programas sociais. No mais, a política do Estado brasileiro de continuar tomando dinheiro dos bancos em troca de títulos da dívida pública continuou—política que endivida o Estado, já que ele passa a ter que pagar juros altos aos bancos, enquanto que o dinheiro que ele absorveu não pode ser utilizado de maneira alguma sob o risco de haver alta na inflação. Aliás, essa política piorou. De resto, esses governos tiveram muito discurso populista de controle à imprensa e apoio a regimes escrotos de esquerda em outros países, o que antagonizou ainda mais os ricos e parte da sociedade brasileira que é conservadora.
Assim como todos os governos anteriores e posteriores, o governo do PT também foi corrupto, e esse foi seu calcanhar de Aquiles: todo um discurso foi montado para vender a ideia de que o país quebrou e entrou em recessão por conta da corrupção—que só existiria, segundo esse discurso, por causa do tamanho do Estado brasileiro. Forjou-se a narrativa de que o Estado brasileiro seria muito grande, ineficiente e endividado por conta do "socialismo" corrupto da era Lula e Dilma. Em 2018, boa parte do eleitorado comprou essa narrativa e elegeu o atual desgoverno, sem entender que o Estado brasileiro não quebrou por conta da corrupção e muito menos por conta dos programas sociais, mas por ser obrigado a se endividar eternamente com o setor financeiro para evitar o espectro da inflação.
O que tudo isso que escrevi quer dizer? Que estou me colocando como "isentão" entre direita e esquerda? Não. Estou me colocando como alguém que tenta basear o que diz sobre determinados assuntos importantes na racionalidade. É bem claro que, no campo da política, as coisas que venho defendendo de um tempo para cá caem no campo da esquerda. Mas não posso desligar meu cérebro e comprar pacotes ideológicos completos, como se fossem venda casada, sem pensamento crítico.
O fato é que estão tentando abolir qualquer vestígio de estado do bem-estar social no país, como se ele fosse um dos grandes responsáveis pela situação caótica que enfrentamos em todas as áreas, da segurança à educação, passando pela previdência. A narrativa que está vencendo o jogo é aquela que afirma que se enxugarmos o tamanho do Estado e privatizarmos quase tudo, a eficiência privada nos levará ao primeiro mundo. Já estão na metade do caminho e, enquanto continuam a desmontagem do nosso (já precário) welfare state, temos que perder tempo repetindo obviedades históricas para burros—obviedades como o nazismo ter sido um movimento de direita.
Aprendam de uma vez por todas: nunca houveram santos na política. Nem mesmo Mandela e Gandhi foram santos—o que não invalida as lutas que eles travaram e venceram. Mas isso não faz com que a política seja algo do demônio, algo que deve ser hostilizado e substituído por líderes supostamente iluminados. O nazismo foi totalitário, assassino e de direita. O marxismo-leninismo foi totalitário, assassino e de esquerda. Você pode ser de direita e ter um discurso racional sem a necessidade de falsificar a história dizendo que o nazismo foi de esquerda (a não ser que você seja um cripto-nazista, como o guru astrólogo geocentrista, mas isso é outra história). Você pode ser de esquerda e ter um discurso racional sem a necessidade de viver em eterna nostalgia por regimes comunistas que faliram no século passado.
A pergunta que devemos nos fazer como sociedade é: podemos parar de discutir o óbvio e começarmos a debater racionalmente, com base em dados, números e fatos—mas também com base em filosofia política, já que precisamos entender que tipo de civilização queremos ter daqui para frente — ou não?
Dado a quantidade de falsificações, mentiras e burrice que permeiam o discurso político, não. Isso me faz lembrar das histórias que contavam quando as companhias aéreas passaram a querer cobrar pela bagagem. Falavam que o preço da passagem iria cair—não caiu. Usaram o mesmo tipo de lógica liberal quando disseram que a reforma trabalhista iria gerar mais empregos—não gerou. Na época, pouco se debateu a respeito dessas questões. Perdemos mais tempo debatendo sobre exposições com homens nus e sobre as prisões de líderes corruptos—quando poderíamos ter colocado novas lideranças no lugar e ignorado o falso-moralismo descarado daqueles que protestavam na porta de exposições irrelevantes. Mas não foi isso que fizemos como sociedade: perdemos tempo discutindo burrices enquanto o mundo pegava fogo.
Também lembro do entusiasmo dos que achavam que a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018 iria gerar uma avalanche de melhoras só pela expectativa do mercado financeiro, como a baixa sustentável do dólar perante o real e uma diminuição da taxa de juros pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central. Nada disso aconteceu—e é claro que os bolsonaristas culpam tudo, menos a inaptidão do atual desgoverno. Para eles, a culpa é do "cenário internacional". O discurso já mudou, inclusive: agora falam que todas essas melhoras ainda são possíveis, mas antes precisamos aprovar a reforma da previdência com regime de capitalização (que é uma porcaria irresponsável, além de ser imoral). O próprio presidente do Banco Central desmentiu o Ministro da Fazenda de Bolsonaro, afirmando que as taxas de juros não vão necessariamente cair caso a reforma seja aprovada (clique aqui para ler).
Pelo visto vamos continuar sendo burros, discutindo burrices, enquanto o mundo pega fogo ao nosso redor. Parabéns aos envolvidos.
O fato é que estão tentando abolir qualquer vestígio de estado do bem-estar social no país, como se ele fosse um dos grandes responsáveis pela situação caótica que enfrentamos em todas as áreas, da segurança à educação, passando pela previdência. A narrativa que está vencendo o jogo é aquela que afirma que se enxugarmos o tamanho do Estado e privatizarmos quase tudo, a eficiência privada nos levará ao primeiro mundo. Já estão na metade do caminho e, enquanto continuam a desmontagem do nosso (já precário) welfare state, temos que perder tempo repetindo obviedades históricas para burros—obviedades como o nazismo ter sido um movimento de direita.
Aprendam de uma vez por todas: nunca houveram santos na política. Nem mesmo Mandela e Gandhi foram santos—o que não invalida as lutas que eles travaram e venceram. Mas isso não faz com que a política seja algo do demônio, algo que deve ser hostilizado e substituído por líderes supostamente iluminados. O nazismo foi totalitário, assassino e de direita. O marxismo-leninismo foi totalitário, assassino e de esquerda. Você pode ser de direita e ter um discurso racional sem a necessidade de falsificar a história dizendo que o nazismo foi de esquerda (a não ser que você seja um cripto-nazista, como o guru astrólogo geocentrista, mas isso é outra história). Você pode ser de esquerda e ter um discurso racional sem a necessidade de viver em eterna nostalgia por regimes comunistas que faliram no século passado.
A pergunta que devemos nos fazer como sociedade é: podemos parar de discutir o óbvio e começarmos a debater racionalmente, com base em dados, números e fatos—mas também com base em filosofia política, já que precisamos entender que tipo de civilização queremos ter daqui para frente — ou não?
Dado a quantidade de falsificações, mentiras e burrice que permeiam o discurso político, não. Isso me faz lembrar das histórias que contavam quando as companhias aéreas passaram a querer cobrar pela bagagem. Falavam que o preço da passagem iria cair—não caiu. Usaram o mesmo tipo de lógica liberal quando disseram que a reforma trabalhista iria gerar mais empregos—não gerou. Na época, pouco se debateu a respeito dessas questões. Perdemos mais tempo debatendo sobre exposições com homens nus e sobre as prisões de líderes corruptos—quando poderíamos ter colocado novas lideranças no lugar e ignorado o falso-moralismo descarado daqueles que protestavam na porta de exposições irrelevantes. Mas não foi isso que fizemos como sociedade: perdemos tempo discutindo burrices enquanto o mundo pegava fogo.
Também lembro do entusiasmo dos que achavam que a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018 iria gerar uma avalanche de melhoras só pela expectativa do mercado financeiro, como a baixa sustentável do dólar perante o real e uma diminuição da taxa de juros pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central. Nada disso aconteceu—e é claro que os bolsonaristas culpam tudo, menos a inaptidão do atual desgoverno. Para eles, a culpa é do "cenário internacional". O discurso já mudou, inclusive: agora falam que todas essas melhoras ainda são possíveis, mas antes precisamos aprovar a reforma da previdência com regime de capitalização (que é uma porcaria irresponsável, além de ser imoral). O próprio presidente do Banco Central desmentiu o Ministro da Fazenda de Bolsonaro, afirmando que as taxas de juros não vão necessariamente cair caso a reforma seja aprovada (clique aqui para ler).
Pelo visto vamos continuar sendo burros, discutindo burrices, enquanto o mundo pega fogo ao nosso redor. Parabéns aos envolvidos.