Fascismo e nazismo não foram de esquerda
Há pessoas do alto escalão do governo Bolsonaro afirmando que o fascismo e o nazismo foram movimentos de esquerda. Qual a base teórica que eles usam para dizer isso? Algumas muito loucas. Uma delas é a ideia de que aquilo que define o "ser de esquerda" é a perversão de algo bom. Por exemplo: eles dizem que o nacionalismo é algo bom, mas que foi pervertido pelo nazismo; logo, o nazismo seria de esquerda. Chegou ao ponto de já ter escutado de amigos (que são seguidores do ex-astrólogo geocentrista, Olavo de Carvalho, e eleitores de Bolsonaro) que os primeiros esquerdistas foram Adão e Eva. Parece brincadeira, mas falo sério. Nos últimos anos, muitos direitistas — sejam eles liberais, anarco-capitalistas, conservadores, etc — passaram a dizer que tanto o fascismo quanto o nazismo teriam sido de esquerda porque foram, segundo eles, coletivistas, autoritários, socialistas, anti-capitalistas, anti-religiosos e anti-conservadores. A seguir tratarei de cada um desses pontos para mostrar que estão errados.
Vamos falar primeiro do coletivismo. Se você define o coletivismo como um regime político onde o Estado é organizado de forma a levar em conta os interesses da coletividade antes do interesse dos indivíduos, então o fascismo e o nazismo não foram coletivistas. Digo isso porque, apesar do discurso populista de ambos os regimes, os maiores beneficiados do fascismo italiano e do nazismo alemão foram os industriais, os empresários e os membros da alta cúpula do governo. Agora, se você define o coletivismo como um regime político no qual as decisões são tomadas de maneira coletiva e igualitária, fascismo e nazismo não foram regimes coletivistas, por razões óbvias. Ou seja: independentemente de definirmos coletivismo como "regime político onde o Estado é organizado de forma a levar em conta os interesses da coletividade antes dos interesses individuais" ou "regime político no qual as decisões são tomadas de maneira coletiva e igualitária", tanto fascismo quanto nazismo não foram coletivistas.
Vale lembrar que o autoritarismo por si só não faz com que um regime seja de direita ou de esquerda. Alguém dirá que a Arábia Saudita do século XXI tem um regime de esquerda por ser autoritário? Claro que não. A Arábia Saudita é uma monarquia absolutista teocrática e ultra-conservadora. Da mesma forma, ninguém sério dirá que o regime stalinista foi de direita só porque foi autoritário. Dizer que um regime foi autoritário não define lhufas. Não basta juntar um monte de características negativas e igualá-las a algo. É por conta disso que quando um sujeito afirma que fascismo e nazismo foram de esquerda ele soa como um completo imbecil. É uma baboseira. O mais triste é que têm pessoas com formação superior caindo nesse conto. Eu já caí em falsidades similares. Libertem-se da burrice.
Fascismo e nazismo não foram socialistas. O socialismo é uma organização política e econômica baseada na propriedade coletiva ou estatal dos meios de produção. No máximo podemos dizer que o fascismo e o nazismo foram regimes de economia mista — coisa que todos os países considerados economias de mercado atualmente são — com uma boa dose de dirigismo por parte do Estado, mas que mantiveram a propriedade dos meios de produção nas mãos de agentes particulares. As indústrias tinham donos que lucravam ou tinham prejuízo, assim como em qualquer país capitalista.
Fascismo e nazismo não foram anti-capitalistas. A economia na Itália fascista, apesar de não ser pautada no liberalismo econômico e livre comércio, estava muito mais próxima de uma economia capitalista contemporânea do que de uma economia socialista aos moldes da União Soviética ou Cuba. Os fascistas implementaram regras que empresas privadas tinham que cumprir, inclusive leis trabalhistas, mas a propriedade privada dos meios de produção não foi abolida ou socializada. Uma das características marcantes do fascismo como terceira via entre capitalismo liberal e socialismo marxista era justamente a rejeição da luta de classes e a hierarquização da sociedade, centrada no Estado fascista. A classe trabalhadora teve que se submeter a um controle muito maior do Estado do que a classe empresarial: os fascistas criminalizaram a greve e os protestos, além de nacionalizar todos os sindicatos como forma de controle dos trabalhadores.
Os nazistas também não aboliram a propriedade privada dos meios de produção na Alemanha. O simples fato de ter havido um maior grau de dirigismo econômico na Itália e Alemanha não tornava esses países em nações anti-capitalistas. Se assim fosse, todas as nações do mundo ao longo da história teriam sido anti-capitalistas, inclusive as do presente. Tirando as minorias perseguidas por esses regimes, aqueles que tinham condições podiam empreender e lucrar. O próprio Hitler insistiu no direito à propriedade privada dos meios de produção, afirmando em diversas ocasiões que os marxistas e socialistas (tirando nacional-socialistas) estavam errados em querer socializar a propriedade. O discurso anti-capitalista que existiu no fascismo italiano e no nazismo alemão tinha como alvo o capitalismo financeiro internacionalista, não o capitalismo empresarial. No caso dos alemães, a elite internacionalista foi associada exclusivamente aos judeus, o que serviu para alimentar o sentimento antissemita na sociedade.
Fascismo e nazismo não foram movimentos anti-religiosos. Sim, haviam aqueles dentro do nazismo que queriam modificar a religião cristã para tirar dela elementos tidos como "judaicos". Por mais grotesca que tal atitude possa ter sido, ela não foi anti-religiosa, mas sim uma tentativa de controle da religião. Não surpreendentemente, esses setores não tiveram sucesso dentro do próprio regime nazista. Em sua maioria, alemães protestantes e católicos não sofreram represálias ao longo do regime por conta de sua fé, ao ponto de que muitos perseguidos se disfarçaram de cristãos para não serem assassinados. A própria perseguição aos judeus não foi realizada com base na religião, mas por razões étnicas e raciais. Os fascistas italianos, por sua vez, estavam à frente do governo quando ocorreu o Tratado de Latrão, que deu autonomia para a cidade do Vaticano se tornar um Estado soberano, compensando financeiramente a Igreja pela perda dos estados papais.
Fascismo e nazismo não foram anti-conservadores. Depois dos fascistas exercerem uma forte pressão política, Mussolini tornou-se primeiro ministro por escolha do rei da Itália. O Estado fascista manteve a monarquia e as instituições italianas intactas. O catolicismo, religião da maioria dos italianos, foi reconhecido em 1929 como religião oficial do Estado italiano. Eliminou-se a necessidade do casamento civil — apenas o casamento religioso, na Igreja católica, passou a ser necessário. Ou seja: havia um respeito pelas instituições tradicionais italianas da parte dos fascistas. Nenhuma das inovações políticas, econômicas ou sociais propostas por eles tinha como alvo as instituições tradicionais.
Já o partido nacional socialista dos trabalhadores alemães — do qual os termos "nazismo" e "nazista" derivam — teve, por sua vez, uma ala de esquerda dentro do próprio partido. Essa ala do partido nazista também era nacionalista, racista e antissemita, mas considerava que a subida de Hitler ao poder seria incompleta sem a remoção das elites pertencentes ao capitalismo financeiro e a implantação de um regime que beneficiasse mais a classe trabalhadora alemã. Toda essa gente foi expurgada do partido nazista na famosa "Noite das Facas Longas", ocorrida em 1934, evento no qual membros do partido vistos com desconfiança por Hitler foram presos e mortos. Após a Noite das Facas Longas, o regime hitlerista se consolidou com o apoio da vasta maioria da elite alemã.
É isso.
Há também aqueles que preferem afirmar que existe apenas um contínuo entre sociedades com menos Estado de um lado e sociedades com mais Estado do outro, ignorando todas as outras características. Para eles, as sociedades com mais Estado seriam sempre socialistas ou coletivistas (de esquerda), enquanto que as têm um Estado menor seriam liberais (de direita). É por isso que alguns liberais colocam fascismo, nazismo, social-democracia, socialismo e comunismo no mesmo saco: o coletivismo de esquerda. Todos esses regimes seriam coletivistas, estatólatras, interventores, enquanto que o regime liberal promoveria a liberdade individual e, com isso, a prosperidade. Todos os que pregam essa teoria cometem o grave erro de utilizar somente o tamanho do Estado como parâmetro. Esse erro ocorre porque eles partem de um pressuposto teórico falho, que afirma ser possível separar o poder econômico e o poder político na história do mundo. Tal separação é impossível, os dois sempre andam juntos.
Nunca existiu uma dicotomia absoluta entre Estado e mercado. É precisamente o Estado que garante a existência (ou não) de um mercado livre. Basta pegarmos as favelas e periferias do Rio de Janeiro para vermos o que ocorre sem a presença do Estado de direito: não há mercado livre, o que existe é o controle por parte de grupos violentos (facções, milícias) que agem como se fossem um Estado, mas sem as garantias legais de um Estado democrático de direito. A ideia de que um Estado grande ou interventor pode ser definido como "esquerdista", independentemente de qualquer outra característica que ele tenha, mostra por que é sempre importante lembrarmos das definições. Os termos direita e esquerda foram consagrados no discurso político nos últimos dois séculos por uma razão simples: um denota permanência e cautela, o outro movimento e mudança, dentro de um contexto político.
Na Revolução Francesa, evento histórico que acabou originando os termos políticos direita e esquerda, a direita na Assembleia Nacional era composta por pessoas que defendiam a manutenção de certos privilégios que continuaram mesmo após o fim do Antigo Regime, enquanto que a esquerda queria a abolição desses privilégios — e ambos não se importavam de utilizar o poder do Estado para conquistar seus objetivos. Ou seja: direita e esquerda nunca tiveram nada a ver com tamanho do Estado, mas sim com objetivos políticos. O que não significa, também, que de lá para cá a direita passou a defender menos intervenção estatal enquanto a esquerda passou a defender mais: isso é falso. Se tomarmos por base a Revolução Francesa em si, a direita era conservadora, defendia a manutenção de privilégios com a força do Estado, enquanto que a esquerda queria, também com a força do Estado, a abolição de privilégios. Portanto, o tamanho do Estado ou o quanto ele intervém não tem nada a ver com ser de esquerda ou de direita. Nunca teve.
Para concluir, quem quiser mesmo saber se o fascismo e o nazismo foram movimentos de esquerda, basta estudar a relação que tais movimentos tinham com a esquerda na época (uma dica: eles eram opositores violentos da esquerda, enquanto eram acolhidos por movimentos tradicionalistas e empresariais). Também seria interessante ver a relação dos movimentos neofascistas com a esquerda na atualidade (outra dica: eles detestam uns aos outros).
Adendo:
Depois de terminar o texto, lembrei que esqueci de incluir uma acusação comum feita pela direita para associar — não entendo bem por que razão — o nazismo com regimes de esquerda: desarmamentismo. É falsa a ideia de que o regime nazista desarmou a população do país. Tirando as minorias perseguidas, os alemães passaram a ter mais direitos ao porte de armas durante o regime nazista, com leis passadas em 1938. Dizer que a proibição do porte de armas por minorias na Alemanha nazista qualifica o regime como desarmamentista, quando a maioria da população passou a ter mais direitos ao porte de armas, é uma completa idiotice. Além disso, o argumento de que se as minorias perseguidas estivessem armadas elas seriam capazes de lutar contra o regime nazista é uma bobagem, da mesma forma que é uma bobagem afirmar que os cidadãos americanos armados dos dias atuais seriam capazes de lutar contra as forças armadas americanas: um lado tem divisões de tanques, força aérea, treinamento e todo um aparato bélico gigantesco ao seu dispor, enquanto que o outro tem civis desorganizados com algumas armas de fogo.
Referências:
. "The Birth of Fascist Ideology: from cultural rebellion to political revolution". Zeev Sternhell, Mario Sznajder, Maia Asheri.
. Fascism and the Corporate State (Wiley Online Library)
. "Germany: economic and labour conditions under fascism". Jürgen Kuczynski.
. 'No room for the alien, no use for the wastrel' (The Gardian)
. Adolf Hitler was not a socialist (Vox)
. The German churches and the Nazi State (Holocaust Encyclopedia)
. The ‘Catholic’ girl hidden from Nazis who learned she was a Jew (New York Post)
. German pastor sent names of 'non-Aryan Christians' to Nazis (The Irish Times)
. Lateran Treaty (Wikipedia)
. Benito Mussolini (History.com)
. How the Catholic Church Got in Bed with Mussolini (The Daily Beast)
. Night of the Long Knives (Wikipedia)
. The Hitler gun control lie (Salon)
. Was Hitler Really a Fan of Gun Control? (Mother Jones)
. Gun-rights advocates cite Nazi laws in their defense of the Second Amendment. Is the comparison fair? (Tablet Magazine)