Janir Bolsoquadros e seu gado

Na sexta-feira, dia 13 de maio, o presidente do Brasil publicou um texto anônimo muito ruim, tanto em conteúdo quanto em escrita, que me fez lembrar com tristeza da época em que tentava me vender como defensor dos ideários da direita. O texto é permeado de um tom conspiratório e a tese principal é basicamente a seguinte: o presidente não conseguiria governar direito por existirem no Brasil grupos que atuam nas sombras, comandando as instituições—congresso, STF, militares, corporações, etc—e sabotando qualquer tentativa de fazer o país avançar.


Qualquer semelhança com a paranoia do alcoólica desastrosa de Jânio Quadros não é coincidência. Desde aquela época existe, entre muitos brasileiros, o sentimento de que o problema central de nosso país é a corrupção. Aliado a esse sentimento, há a ideia de que somente um homem com forte senso de moralidade pode curar o país da corrupção.

O principal partido conservador na época, a União Democrática Nacional, deu amplo apoio à candidatura de Jânio, um alcoólatra que em pouco tempo renunciou ao cargo, escrevendo uma carta ao povo na qual denunciava "forças terríveis" que o impediam de governar—quais eram, ele não se preocupou em dar detalhes. Ao que parece, Jânio esperava que o povo o aclamasse e exigisse seu retorno à presidência, agora não mais dentro das regras de uma democracia liberal representativa, mas como um autocrata. As consequências daquele desastre reverberam até hoje em nosso país.

Em pouco tempo, o autor da carta do presidente foi identificado. Obviamente, não foi o próprio presidente, pois ao que tudo indica, ele não sabe escrever. Não. O sujeito que escreveu a carta-teoria da conspiração é um trader de bolsa fracassado, que já se candidatou a cargo público por partido de direita e também fracassou (o que me lembra o ministro da educação atual. Esse ministro, formado em economia, tentou ser investidor, mas fracassou. Acabou prestando concurso público para um campus universitário de interior, construído e inaugurado durante a gestão Lula. Parece haver um padrão aqui: são pessoas que louvam o mercado livre, mas que são fracassados no mercado livre e precisam tentar ir para o setor público para defender o sistema no qual fracassaram.)

Essa carta ajudou a servir de chamado às manifestações que ocorreram domingo, dia 26 de maio, em favor do presidente. Mas por que diabos o presidente que foi eleito por 57 milhões de pessoas e tem um congresso favorável a ele precisa pedir que o povo vá às ruas por ele?

Os mais importantes veículos de imprensa brasileiros—O Globo, Folha de São Paulo e Estado de São Paulo—fazem editoriais afirmando a necessidade da reforma na previdência. Não há nenhum espaço nesses jornais para se falar que a dívida pública—dívida feita, na sua maior parte, com bancos—consome duas vezes mais o orçamento da união do que a previdência, muito embora isso seja um dado disponibilizado pelo próprio governo federal ao público. Qualquer analista político que não seja um teórico da conspiração diz isto atualmente: raramente houve tanto consenso na grande mídia em torno de uma pauta política. Já no congresso, o chamado "centrão" é majoritariamente favorável à reforma da previdência, mesmo sabendo dos possíveis custos eleitorais futuros. Mas nosso presidente e seus apoiadores imbecis dizem que estão todos contra ele, que estão todos sabotando a reforma da previdência e as outras propostas de Bolsonaro. Como pode?

Já falei disso anteriormente: a mídia tornou-se saco de pancadas de boa parte da esquerda há tempos. Mais recentemente, a direita tosca passou a fazer o mesmo que a esquerda sempre fez—acusar a grande mídia, Organizações Globo, etc, de conspirarem contra o bem da nação—e conseguiu resultados excelentes, melhores dos que os da esquerda, aumentando suas fileiras com gente burra. O jornal O Globo pode publicar editoriais defendendo a reforma da previdência que o eleitor do Bolsonaro vai achar que é uma conspiração comunista contra a reforma. Então, a parte da mídia ser acusada de sabotar a presidência atual é fácil de explicar.

Falta explicar a demonização do centrão. O centrão é o que a UDN, Jânio Quadros e o pessoal da Marcha da Família com Deus pela Propriedade na década de 1960 chamaria de "forças terríveis" e ocultas. O centrão seriam as forças corruptas e imorais que fazem o país ficar estagnado. Mas o centrão é favor de praticamente tudo o que Bolsonaro quer. Então por que o presidente e seus apoiadores odeiam os políticos desse pseudo-bloco político? Porque são burros e, também, oportunistas. A verdade é que o presidente não publicou a tal carta e estimulou passeatas a seu favor para passar reforma da previdência. Ele está pouco se lixando para reforma da previdência, ele só liga para a tal "guerra cultural" contra os "comunistas". As manifestações pró governo foram estimuladas pelo presidente e seus apoiadores porque ele quer ser um autocrata capaz de governar passando por cima do congresso e do STF.

O presidente só se deu o trabalho de falar para a imprensa que não era sua intenção estimular manifestações contra as instituições da república faltando três ou quatro dias para as manifestações. Passou a afirmar que, na verdade, queria que o povo fosse protestar em favor da reforma da previdência e do pacote anti-crime do Moro. Balela. A passeata nunca deixou de ter um viés golpista. Nota-se pela reação do próprio presidente às manifestações ao longo do dia 26. A mensagem das manifestações era apenas uma: ou o presidente governa com poderes autocráticos, ou o povo vai apoiar um golpe que dê a ele os poderes necessários. Não faltam imagens da passeata que mostram claramente isso (clique aqui para ver uma dessas imagens).

(Uma pequena observação sobre a imagem que dei como exemplo: não existe intervenção militar na constituição brasileira. O artigo 142 da constituição não fala isso em nenhum lugar.)

Pois é. Seus apoiadores querem um homem com forte senso de moralidade e acreditam que esse homem é Jair Bolsonaro. O presidente e os que o seguem sem questionar pensam que qualquer tipo de negociação política com o chamado centrão—ou com qualquer político no congresso—é corrupção. O presidente e seus apoiadores são pessoas que acreditam que é corrupção um legislador pedir a liberação de verbas para construir posto de saúde ou escola precária em sua cidade com o objetivo de angariar votos nas próximas eleições. Não é. Até a construção de uma estrada para lugar nenhum não é corrupção se não ocorrer algum tipo de desvio do dinheiro público. Sim, até mesmo uma obra pública mal planejada, cara e que não sirva para nada não é corrupção se não houver roubo, é "só" burrice e mal uso de recursos mesmo.

Estou dizendo que os parlamentares vilipendiados pelos bolso-moralistas são pessoas boas? Não. Porém, se eles estão pedindo coisas ilegais em troca do apoio aos projetos do governo Bolsonaro, que isso seja exposto. Por que Bolsonaro e sua equipe não poderiam expor Rodrigo Maia, presidente da câmara e líder informal do centrão, caso ele estivesse pedindo algo ilegal para apoiar as reformas do presidente? Onde está escrito que não poderiam expô-lo? Lugar nenhum. Pelo contrário, seria um dever expor à justiça e à imprensa um pedido ilegal. A coisa mais fácil para Bolsonaro ganhar todo o apoio que ele quer seria jogar uma luz clara em cima das supostas demandas ilegais dos parlamentares do centrão. Não joga por quê? Teria ele medo, porque ele próprio acabaria exposto depois de passar 30 anos no congresso sem fazer nada e cercado de laranjas?

A razão pela qual o governo Bolsonaro não consegue expor as supostas demandas ilegais do centrão para apoiar suas reformas é porque essas demandas ilegais muito provavelmente não existem. O que os parlamentares do centrão querem são, muito provavelmente, cargos importantes por apoio maior às reformas—o que também não é corrupção, pelo contrário, é perfeitamente legal. Oferecer cargos e liberar verbas: duas coisas que fazem parte do funcionamento de todas as democracias liberais representativas, inclusive as do primeiro mundo. Mas este governo é tão burro, mas tão burro, que não entende isso.

Mas, como falei, não é apenas burrice. É oportunismo também. Há uma clara inclinação fascistoide no presidente, e esse discurso de que existem forças terríveis e ocultas atrapalhando o governo é justamente o tipo de conversa mole que pessoas autoritárias usam para tentar adquirir mais poder. Só que, no caso deste governo, duvido que haja êxito. Já acompanhamos o sujeito tempo suficiente e está claro que há uma incapacidade tremenda na articulação de seus pensamentos: as palavras não saem de sua boca de forma coerente ou séria. Com todos os seus defeitos e monstruosidades, os ditadores fascistas da primeira metade do século XX eram bons oradores, sabiam convencer multidões. Eram toscos, brutos, incultos, sim, mas sabiam levar na lábia até políticos experientes. O que esse presidente sabe?