Deploráveis e burros, sim
A administração corrente do país é composta de pessoas deploráveis e burras. Não existem palavras mais apropriadas para descrevê-las. Pensei em usar o adjetivo 'ineptos', mas preferi não. Inepto não é forte o suficiente. E não são apenas o chefe do executivo, seus ministros e os legisladores governistas que são deploráveis e burros, os cidadãos comuns que apoiam a atual gestão também são. Por si só, o governo ser composto de pessoas burras e execráveis já seria um desastre para a nação, mas o dano não seria tão potente se a burrice e a execrabilidade estivessem contidas na esfera governamental. Infelizmente, o apoio de uma parcela significativa da população faz a coisa ser muito pior.
Antes de continuar, reafirmarei a diferença com a qual trato os conceitos de ignorância e burrice. Somos ignorantes quando nos falta conhecimento sobre algo. Somos burros quando insistimos em determinados erros mesmo após ampla oportunidade de aprendizado e quando não temos nenhum problema cognitivo. Não podemos esperar que um indivíduo com problemas graves de cognição seja capaz de aprender certas coisas. Contudo, pessoas saudáveis deveriam ser capazes de entendimento, principalmente quando elas se colocam em posições que requerem um determinado grau de conhecimento, como quando administram um país com mais de duzentas milhões de bocas para alimentar. Além disso, nós todos deveríamos ter um determinado grau de conhecimento para nos posicionarmos sobre isto ou aquilo caso queiramos ser levados a sério.
Já a questão da execrabilidade está relacionada à ética—na verdade, está relacionada à falta dela. Não precisamos nos basear em nenhuma ética consagrada específica, pois todas elas condenariam a presidência de Jair Bolsonaro e todas elas condenariam seus apoiadores. Tanto faz nos basearmos na ética deontológica, na ética das virtudes, na ética utilitarista, etc, sob a ótica de todas elas poderíamos chamá-los de deploráveis. Mas não são apenas o presidente e seus apoiadores que são deploráveis e não são apenas eles que são burros. Muitos dos que hoje criticam o Sr. Jair também são muito burros e execráveis. Peguemos o caso dos nossos liberais. Embora a esmagadora maioria dos conservadores apoiem toda e qualquer nojeira que saia do governo—demonstrando sua hipocrisia—não faltam auto-proclamados liberais que o condenam (condenam sua rispidez e tendências teocráticas, mas não a política econômica de Paulo Guedes, claro).
Aqui, mais uma vez, preciso fazer um mea culpa, algo que fiz anteriormente neste site e provavelmente farei de novo no futuro. Já fui liberal. Já achei escola austríaca de economia—a escola de pensamento liberal que tem menos adeptos na academia—o máximo, ao ponto de ler tomos enfadonhos como Ação Humana e Man, Economy and State. Pior ainda: antes disso, cheguei a considerar um certo astrólogo geocentrista e terraplanista como genial. Engraçado que, na época em que migrei dessas besteiras para o liberalismo, acreditei ter dado um enorme salto qualitativo intelectual—na realidade apenas troquei seis por meia dúzia na escala de sandices.
O que se deu foi o seguinte: eu era muito burro e deplorável. Assim como o atual presidente, seus apoiadores e muitos de seus críticos na direita, não achava que estava defendendo e propagando um bando de bobagens. Raramente as pessoas apoiam algo por acreditarem que estão fazendo o mal. Na época, não sabia que estava insistindo em erros e dogmatismo de vertentes políticas e econômicas sem crédito—vertentes que só têm força fora da academia, em think-tanks financiados por lobistas sem escrúpulos. Ou seja, não sabia que era burro e deplorável. Acreditava que aquelas coisas estavam certas, acreditava estar defendendo algo bom. Fica aqui a esperança: se eu—que não sou brilhante, nem excepcional—entendi o quão errado estava, qualquer um pode entender. Mas enquanto não entendem, permanecem burros e deploráveis, assim como fui.
O que se deu foi o seguinte: eu era muito burro e deplorável. Assim como o atual presidente, seus apoiadores e muitos de seus críticos na direita, não achava que estava defendendo e propagando um bando de bobagens. Raramente as pessoas apoiam algo por acreditarem que estão fazendo o mal. Na época, não sabia que estava insistindo em erros e dogmatismo de vertentes políticas e econômicas sem crédito—vertentes que só têm força fora da academia, em think-tanks financiados por lobistas sem escrúpulos. Ou seja, não sabia que era burro e deplorável. Acreditava que aquelas coisas estavam certas, acreditava estar defendendo algo bom. Fica aqui a esperança: se eu—que não sou brilhante, nem excepcional—entendi o quão errado estava, qualquer um pode entender. Mas enquanto não entendem, permanecem burros e deploráveis, assim como fui.
Afirmar que a atual direita brasileira é uma constelação de pessoas burras e deploráveis não é uma questão de falta de respeito com a opinião alheia, mesmo porque se fosse, teria que ser ainda mais duro, já que a opinião é o tipo de pensamento mais chulo que existe. Isso não significa que as pessoas não possam ter posicionamentos de direita—seja eles conservadores ou liberais—fundamentados em coisas que vão além do YouTube, do Facebook e de sites de think-tanks. Elas podem. Aliás, é o que se espera. Que bom seria se elas sustentassem seus posicionamentos em algo mais substancial do que o pensamento de boçais, ainda que viesse a discordar. Deveríamos iniciar uma campanha: mais Burke e Stuart Mill, menos Olavo e von Mises. O nível do discurso conservador e liberal (clássico) atual é decadente principalmente por conta dos teóricos desacreditados—charlatões em alguns casos—que a direita tem utilizado.
Também seria bom se usassem dados reais e não bravata ideológica. Uma das únicas coisas acertadas que a direita atual consegue repetir à exaustão é que os regimes de inspiração marxista-leninista do século XX foram autoritários, violentos e assassinos. Sim, foram. O período stalinista foi responsável por milhões de mortes na URSS (muito embora menos do que se imagina1,2,3) e Mao conseguiu ser várias vezes mais sanguinário com sua população.4,5,6
No entanto, apesar de se discutir o uso da fome pelos regimes comunistas como sendo proposital ou não em determinados momentos, conservadores e liberais colocam na conta desses regimes a fome gerada pela ineficiência supostamente intrínseca ao sistema de planejamento central socialista. Talvez seja razoável que se afirme isso. Mas porque então não se afirma o mesmo por conta das milhões de pessoas que morreram por desnutrição no mundo capitalista?7,8,9 Nos dois casos, o sistema político-econômico vigente foi incapaz de alimentar toda sua população, além de ter oprimido parcelas enormes da humanidade através de políticas governamentais—mas o capitalismo possui o agravante de ser mais antigo, ter durado mais tempo e ter saído vitorioso da Guerra Fria, tornando-se o sistema hegemônico desde o final do século passado.
No entanto, apesar de se discutir o uso da fome pelos regimes comunistas como sendo proposital ou não em determinados momentos, conservadores e liberais colocam na conta desses regimes a fome gerada pela ineficiência supostamente intrínseca ao sistema de planejamento central socialista. Talvez seja razoável que se afirme isso. Mas porque então não se afirma o mesmo por conta das milhões de pessoas que morreram por desnutrição no mundo capitalista?7,8,9 Nos dois casos, o sistema político-econômico vigente foi incapaz de alimentar toda sua população, além de ter oprimido parcelas enormes da humanidade através de políticas governamentais—mas o capitalismo possui o agravante de ser mais antigo, ter durado mais tempo e ter saído vitorioso da Guerra Fria, tornando-se o sistema hegemônico desde o final do século passado.
Em 2016, publiquei um texto neste site intitulado "Sobre Ideologias e Economia Política". Por mais que esteja cheio de problemas, esse texto representa de forma razoável algumas mudanças de pensamento pelas quais passei desde (pelo menos) 2010, e que se aceleraram de uns cinco anos para cá. Naquele texto, indiquei referências que mostram que o liberalismo econômico, longe de promover o aumento da prosperidade material de todos, mantém a grande maioria numa situação ruim ou, na melhor das hipóteses, praticamente estagnada.
Algumas das referências que indiquei mostram a questão da estagnação salarial dos trabalhadores americanos, que desde meados da década de 1970 quase não tiveram aumento salarial real, muito embora sua produtividade tenha aumentado significativamente. Enquanto isso, os donos dos meios de produção e os executivos do setor financeiro tiveram lucros assombrosos, o que contribuiu para um aumento na concentração de renda, que se tornou ainda mais extrema nos EUA e no resto do planeta.10,11,12,13,14,15,16 Essas questões vieram à tona recentemente em uma excelente reportagem da Folha de São Paulo sobre a desigualdade.17
Portanto, a crítica que a direita (liberal) faz ao desgoverno de Jair Bolsonaro é burra justamente por desconsiderar toda essa realidade. Eles criticam os modos deploráveis de Bolsonaro, mas pensam que Paulo Guedes é o melhor economista que já passou pelo governo federal, pois acreditam que as políticas liberais de Guedes salvarão nossa economia. Enquanto que no resto do mundo cada vez mais rejeita-se a ideia de que o capitalismo consegue trazer qualidade de vida sem a presença de um Estado que promova políticas de redistribuição de renda, no Brasil, a nossa direita—tanto a conservadora quanto a liberal—pensa que o Estado mínimo é solução para tudo.
Ao contrário daqui, a rejeição ao capitalismo liberal aumenta no resto do mundo, inclusive no primeiro mundo, onde as classes médias sentem há décadas a corrosão de seu poder aquisitivo. Mas preferimos acreditar em anedotas sobre fulano que foi morar ilegalmente nos EUA e hoje tem uma vida melhor. É óbvio que se melhora de vida quando se sai de um país capitalista pobre para um país capitalista rico. Porém, isso não muda o fato de que a renda dos trabalhadores americanos permanece praticamente estagnada desde meados da década de 1970, apesar deles terem se tornado mais produtivos. As expansões da economia americana nas últimas quatro décadas, inclusive a atual expansão pós-crise de 2008, não beneficiaram todos os americanos proporcionalmente. Os ricos passaram a concentrar mais poder econômico enquanto que as classes baixa e média foram obrigadas a abandonar o sonho de uma carreira relativamente estável. Os americanos vivem cada vez mais de gigs e não de real jobs.
Esses são problemas estruturais em um mundo de alta tecnologia—em que computadores e robôs em breve serão capazes de substituir trabalhadores altamente qualificados18,19—e crescente comportamento de rent-seeking por parte das pessoas que possuem um mínimo de capital20. Não temos soluções fáceis, milagrosas. Portanto, se é fácil dizermos para o comunista sonhador que suas soluções não são viáveis, também deveria ser fácil dizermos o mesmo para a turba de imbecis que agora nos governam e, também, para os liberais que criticam os modos do atual presidente, mas não sua política econômica.
É bom lembrarmos o alarde que fizeram quando Maurício Macri venceu as eleições na Argentina há alguns anos. Todos os propagadores da panaceia do Estado mínimo fizeram prognósticos maravilhosos. Elogios e previsões boas foram tecidos pelo MBL, pela Míriam Leitão, etc. Agora, no fim do mandato e prestes a perder a reeleição, Macri e suas políticas liberais mostraram-se incapazes. Contudo, talvez seja pedir demais que os liberais enxerguem o que aconteceu na Argentina como um fracasso do liberalismo. Eles já criaram todo tipo de desculpas para o fracasso governo Macri, como a tola afirmação de que "as reformas não foram profundas o suficiente" ou a absurda ideia de que as políticas só surtiriam efeito daqui uma ou duas décadas.
Aqueles que condenam o governo Bolsonaro por sua falta de tato (e pelo seu flerte com o autoritarismo fundamentalista anti-científico) ao mesmo tempo em que aprovam os aspectos econômicos da sua gestão estão cometendo um erro grosseiro. Essa política econômica não é capaz de prover os fundamentos para a construção de uma civilização. Com ela, caminharemos para a mediocridade, ainda que a economia venha a expandir. Será uma expansão que não beneficiará a todos de forma proporcional. Nossa classe média encolherá, nossos pobres viverão de promessas e assistencialismo eterno, e nossos ricos ficarão mais ricos negociando papéis, pois não haverá incentivo algum para eles investirem na economia real. Defender isso, além de burrice, é deplorável.
Referências:
Algumas das referências que indiquei mostram a questão da estagnação salarial dos trabalhadores americanos, que desde meados da década de 1970 quase não tiveram aumento salarial real, muito embora sua produtividade tenha aumentado significativamente. Enquanto isso, os donos dos meios de produção e os executivos do setor financeiro tiveram lucros assombrosos, o que contribuiu para um aumento na concentração de renda, que se tornou ainda mais extrema nos EUA e no resto do planeta.10,11,12,13,14,15,16 Essas questões vieram à tona recentemente em uma excelente reportagem da Folha de São Paulo sobre a desigualdade.17
Portanto, a crítica que a direita (liberal) faz ao desgoverno de Jair Bolsonaro é burra justamente por desconsiderar toda essa realidade. Eles criticam os modos deploráveis de Bolsonaro, mas pensam que Paulo Guedes é o melhor economista que já passou pelo governo federal, pois acreditam que as políticas liberais de Guedes salvarão nossa economia. Enquanto que no resto do mundo cada vez mais rejeita-se a ideia de que o capitalismo consegue trazer qualidade de vida sem a presença de um Estado que promova políticas de redistribuição de renda, no Brasil, a nossa direita—tanto a conservadora quanto a liberal—pensa que o Estado mínimo é solução para tudo.
Ao contrário daqui, a rejeição ao capitalismo liberal aumenta no resto do mundo, inclusive no primeiro mundo, onde as classes médias sentem há décadas a corrosão de seu poder aquisitivo. Mas preferimos acreditar em anedotas sobre fulano que foi morar ilegalmente nos EUA e hoje tem uma vida melhor. É óbvio que se melhora de vida quando se sai de um país capitalista pobre para um país capitalista rico. Porém, isso não muda o fato de que a renda dos trabalhadores americanos permanece praticamente estagnada desde meados da década de 1970, apesar deles terem se tornado mais produtivos. As expansões da economia americana nas últimas quatro décadas, inclusive a atual expansão pós-crise de 2008, não beneficiaram todos os americanos proporcionalmente. Os ricos passaram a concentrar mais poder econômico enquanto que as classes baixa e média foram obrigadas a abandonar o sonho de uma carreira relativamente estável. Os americanos vivem cada vez mais de gigs e não de real jobs.
Esses são problemas estruturais em um mundo de alta tecnologia—em que computadores e robôs em breve serão capazes de substituir trabalhadores altamente qualificados18,19—e crescente comportamento de rent-seeking por parte das pessoas que possuem um mínimo de capital20. Não temos soluções fáceis, milagrosas. Portanto, se é fácil dizermos para o comunista sonhador que suas soluções não são viáveis, também deveria ser fácil dizermos o mesmo para a turba de imbecis que agora nos governam e, também, para os liberais que criticam os modos do atual presidente, mas não sua política econômica.
É bom lembrarmos o alarde que fizeram quando Maurício Macri venceu as eleições na Argentina há alguns anos. Todos os propagadores da panaceia do Estado mínimo fizeram prognósticos maravilhosos. Elogios e previsões boas foram tecidos pelo MBL, pela Míriam Leitão, etc. Agora, no fim do mandato e prestes a perder a reeleição, Macri e suas políticas liberais mostraram-se incapazes. Contudo, talvez seja pedir demais que os liberais enxerguem o que aconteceu na Argentina como um fracasso do liberalismo. Eles já criaram todo tipo de desculpas para o fracasso governo Macri, como a tola afirmação de que "as reformas não foram profundas o suficiente" ou a absurda ideia de que as políticas só surtiriam efeito daqui uma ou duas décadas.
Aqueles que condenam o governo Bolsonaro por sua falta de tato (e pelo seu flerte com o autoritarismo fundamentalista anti-científico) ao mesmo tempo em que aprovam os aspectos econômicos da sua gestão estão cometendo um erro grosseiro. Essa política econômica não é capaz de prover os fundamentos para a construção de uma civilização. Com ela, caminharemos para a mediocridade, ainda que a economia venha a expandir. Será uma expansão que não beneficiará a todos de forma proporcional. Nossa classe média encolherá, nossos pobres viverão de promessas e assistencialismo eterno, e nossos ricos ficarão mais ricos negociando papéis, pois não haverá incentivo algum para eles investirem na economia real. Defender isso, além de burrice, é deplorável.
Referências:
1. The Scale and Nature of German and Soviet Repression and Mass Killings
2. Victims of Stalinism and the Soviet Secret Police: The Comparability and Reliability of the Archival Data
3. Soviet Repression Statistics
4. Great Leap Forward
5. A Grim Chronicle Of China's Great Famine
6. A Brief Overview of China’s Cultural Revolution
7. Mike Davis on the Crimes of Socialism and Capitalism
8. When Will Capitalism Answer for Its Crimes?
9. Condemn communists’ cruelties, but capitalism has its own terrible record
10. Why the Gap Between Worker Pay and Productivity Is So Problematic
11. A Strong Middle Class Doesn't Just Happen Naturally
12. The 'trickle down theory' is dead wrong
13. The American Middle Class Is A Historical Accident
14. Capitalism is failing the middle class
15. A Global Middle Class Is More Promise than Reality
16. Does the U.S. Have Lower Economic Mobility than Other Countries?
17. Em 40 anos, metade dos EUA ganhou só US$ 200 a mais
18. Will robots ever be able to perform surgery independently?
19. The robot will see you now: could computers take over medicine entirely?
20. Inequality is not inevitable