Os prisioneiros da Guerra do Brasil
Se você acompanhar jornais de grande circulação em redes sociais verá incontáveis comentários grotescos sempre que ler postagens referentes ao sistema prisional brasileiro — aliás, você verá incontáveis comentários grotescos sempre, em qualquer postagem, sobre qualquer notícia. Mas, neste texto, quero focar no sistema prisional do nosso país e na reação burra que a sociedade brasileira sempre tem à qualquer proposta de melhoramento. É um tema que já tratei anteriormente, mas que, por me ser caro, tratarei de novo aqui.
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Fui assaltado algumas vezes na minha vida, em diferentes partes do Brasil — especificamente, no sudeste e no sul do país. Já colocaram revólver na minha cara e no meu peito. Já me agrediram durante um assalto. A vontade que tive nos momentos que se seguiram foi de matar os bandidos sem dó e nem piedade e tenho certeza que, se fosse capaz, teria feito isso. Essa é uma das razões pelas quais, em uma civilização (supostamente) pautada pela razão, as últimas pessoas que devem julgar um acusado — ainda que não haja dúvida de sua culpa — são a vítima e seus familiares.
Podemos imaginar isso como uma extrapolação legal da máxima da ética kantiana: sempre devemos agir de tal forma que a nossa ação pudesse se tornar uma lei universal. Se pudéssemos matar aqueles que nos prejudicam, sem o devido processo legal, descambaríamos no caos, pois nada impediria que viessem fazer isso conosco, e nada impediria a morte de pessoas inocentes acusadas por engano. Uma sociedade pautada pela razão não poderia universalizar a vingança e a passionalidade como formas de punição. Essas coisas fazem parte de um mundo sem leis, do cada um por si, do bangue-bangue.
Mas tente explicar isso para o brasileiro médio. Parece não haver nenhuma vontade política por parte de nossa civilização de mudar o quadro prisional por conta de uma ideia fixa que a maioria dos brasileiros apoia: punição passional e vingativa daqueles que cometem crimes, principalmente se são pobres. Eles apoiam não só a pena de morte, mas execuções sumárias, pois creem que só isso fará com que o crime no Brasil seja contido. Esquecem-se ou ignoram que as forças do Estado promovem o extermínio de criminosos (e de meros suspeitos) há várias décadas e o problema da criminalidade está longe de ser resolvido.
Recentemente, assisti a uma série de documentários curtos na Netflix, chamada "Guerras do Brasil.doc". O último episódio documenta as raízes e a ascensão do crime organizado contemporâneo, focando no surgimento de facções cariocas e paulistas de extremo poder e influência. Nada de novo é falado, mas o documentário resume muito bem o drama da burrice com a qual a nossa sociedade lida — e sempre lidou — com o crime. Nós jogamos seres humanos que cometem crimes (em grande parte de baixa periculosidade) em masmorras horrendas, doentias e insalubres, e esperamos que eles saiam de lá recuperados. O resultado histórico disso foi que, diferentemente do crime organizado na Itália, no México e em outras nações, o nosso crime organizado surgiu dentro do sistema penitenciário, graças à sua precariedade e ao tratamento desumano dado aos detentos. No inferno dos maus-tratos e do abandono à própria sorte, esses homens se juntaram e criaram forças capazes de rivalizar com o poder do Estado.
Quando confrontado com esses fatos, a resposta do brasileiro médio é quase sempre a mesma. Ele afirma que não interessa, que os detentos devem sofrer mesmo — aliás, o brasileiro médio quer que os detentos morram torturados, até mesmo os detentos que viraram evangélicos, o que é irônico, pois mostra claramente que o suposto "cidadão de bem" cristão não acredita realmente que Cristo renova todas as coisas. Mas o Brasil já tem pena de morte, ela só não é legalizada. As forças do Estado brasileiro estão entre as que mais matam no mundo, inclusive quando contabilizamos execuções extrajudiciais. Então, o "cidadão de bem" precisa entender que legalizar uma prática que já é feita de nada vai adiantar para melhorar a situação da segurança no Brasil. Precisamos tentar a outra óbvia alternativa, que é tornar as nossas prisões em verdadeiros centros de recuperação, pautados pela racionalidade, e não alicerçados em desprezo e na vingança.
Mas isso não será feito e o ciclo da violência continuará. Teremos altas e baixas na criminalidade, mas sempre estaremos acima da média mundial em termos de homicídios por 100 mil habitantes. A violência no Brasil, quando cai, cai por conta do crime organizado fazer pactos entre si e com o Estado (em segredo). Quase nunca são políticas públicas as reais responsáveis pela diminuição do crime e da violência. A atual tendência de baixa, que o governo imbecil de Bolsonaro atribui ao ministro da justiça Moro, pouco ou nada tem nada a ver com as ações de Moro. A violência já vinha caindo desde 2016, e a queda se acentuou com a trégua entre as facções em diversos estados.
Ainda que fizéssemos algo para mudar a realidade das prisões, precisaríamos fazer alguma coisa para melhorar a nossa educação pública, como aumentar radicalmente os salários dos professores. Precisaríamos, também, fazer com que a nossa política econômica deixasse de caminhar para o mata-mata irracional e sem resultados do mercado desregulado, recuperando e estendendo redes de seguridade social. Contudo, nenhuma dessas políticas será feita.
Continuaremos acreditando que a desoneração da folha de pagamentos dos ricos fará com que eles invistam na produção (o suficiente para gerar dezenas de milhões de empregos), sem entender que eles teriam que ter incentivos gigantescos para tirar a maior parte de seu dinheiro do mercado financeiro, setor da economia em que não precisam se preocupar com a administração de empresas e indústrias. Continuaremos tendo um sistema de impostos regressivo, onde o pobre paga mais do que o rico em proporção aos seus ganhos. Continuaremos com a constante precarização do trabalho, acreditando que o acúmulo de capital beneficiará a todos. Educação precária, trabalho precário, sentimento de abandono e injustiças absurdas. Receita excelente para perpetuarmos a pobreza e a violência.
Estamos indo na direção oposta do que deveria ser feito. Estamos ferrados.
Referências: