Torturas e censuras, que semana...

Nesta semana veio à tona a tortura de um rapaz de 17 anos por dois seguranças de um supermercado em São Paulo, ocorrida mês passado. A desculpa dada pelos seguranças para amarrarem e chicotearem o adolescente foi que ele havia furtado um chocolate de menos de dez reais. Não contentes em serem violentos, eles filmaram a própria ação e repassaram o vídeo em grupos de Whatsapp, demonstrando sua burrice e, de tabela, dando mais uma prova de como a educação no Brasil é uma lástima—imaginem um serial killer americano ou um mafioso italiano divulgando suas ações e suas identidades de forma espontânea pela internet. Grotescamente, uma parcela significativa da população brasileira tem se manifestado a favor da atitude dos seguranças. Arriscaria dizer que a maioria da população adulta apoia a tortura do rapaz, assim como apoia a tortura nas cadeias e nos presídios.


Este é um dos problemas da democracia representativa contemporânea: quando não há uma educação pública muito boa, as pessoas simpatizam com todo tipo de barbárie e defendem, inclusive, o fim da política, o fim da ágora. Elas passam a acreditar na privatização de absolutamente tudo, inclusive da justiça, que se transforma na distribuição generalizada de vinganças pessoais, uma guerra de todos contra todos. O próprio Estado passa a ser visto como uma entidade maligna, parasitária, sem a qual todos nós estaríamos melhores—exceto quando aqueles que ocupam cargos públicos tomam atitudes que caem no gosto dos deploráveis, como quando Bolsonaro incentiva queimadas na Amazônia e Paulo Guedes destrói políticas de bem-estar social.

O rapaz amarrado e chicoteado pelos sádicos seguranças é pobre e claramente problemático. Ele viveu mais da metade da sua vida nas ruas, é viciado em crack, sua mãe é alcoólatra e seu pai morreu recentemente, quando o barraco em que morava pegou fogo durante um incêndio. O rapaz não sabe ler, nem escrever. Está claro que não ele teve uma criação minimamente boa o suficiente para distinguir corretamente certas normas sociais. Apesar de ter irmãos mais velhos por parte de pai que tentaram ajudá-lo antes, ele acabou voltando para as ruas. Depois da tortura vir à tona essa semana, um dos irmãos o trouxe novamente para casa, temendo a sua morte, já que o rapaz foi ameaçado pelos seguranças.

As pessoas podem cometer o crime que for, inclusive assassinato, que ainda assim não merecem e nem devem ser torturadas. A letra da lei é clara, crimes devem ser julgados pelas autoridades competentes e não por seguranças dentro de um calabouço improvisado. Mas essa questão vai além das leis. Nenhuma ética racional contemporânea admite a tortura como punição, mesmo que a pessoa cometa assassinato. Alguém poderia perguntar: "mas e se matassem um ente querido seu?" A resposta é simples: se matassem um ente querido meu, eu seria a última pessoa que deveria ter o poder absoluto de julgar o suspeito. No mundo contemporâneo, a maior parte da humanidade chegou a um consenso: somente o Estado tem legitimidade para julgar crimes, sejam eles quais forem, pois ele é o garantidor das leis (as quais todos nós nos submetemos) e dos direitos (que todos nós podemos usufruir).

Os mesmos direitos que defendem um acusado que é claramente culpado defendem também um acusado cuja culpa não é tão clara. Todos nós podemos ser acusados de roubo ou de assassinato, mesmo quando somos inocentes. É por essa razão que as leis contemporâneas não são baseadas em concepções medievais, religiosas e imbecis de mundo, mas em alguma racionalidade mínima que assegura o direito amplo à defesa. Mas há outra razão: até criminosos que são claramente culpados não devem ser torturados e maltratados, mesmo depois de julgados. Isso decorre de reconhecermos a irracionalidade e o barbarismo da tortura e dos maus-tratos. Quando pensamos com a cabeça e não com o ânus, entendemos que determinadas punições excessivas expressam apenas a indignação patológica (sem reflexão ponderada) particular que todos nós temos de vez em quando, indignação essa que não serve de base para uma legislação racional.

Quando não entendemos isso, deixamos de levar em conta que o barbarismo das punições excessivas pode abrir as portas para o revanchismo violento—inclusive o revanchismo violento na política, visto que uma facção que venha a derrubar um governo que tortura condenados poderá, por sua vez, torturar os ex-governantes, gerando um ciclo infindável de degradação violenta. Não faltam exemplos históricos. A monarquia russa tratava criminosos e dissidentes de maneira brutal e foi, ela própria, tratada brutalmente depois de perder o poder. Algo similar poderia acontecer na Arábia Saudita de hoje, caso uma parcela significativa da população se revoltasse. São por razões como essas que nós deveríamos nos inspirar nos melhores exemplos que o mundo secular pode nos dar. Contudo, há milhões de brasileiros que apoiariam um Estado que decepasse as mãos dos ladrões de chocolate.

As nações mais seguras do mundo geralmente são aquelas que não tratam seus criminosos e sua população pobre como lixo, duas coisas que ocorrem regularmente na América Latina, o que faz dela a região mais violenta do mundo. Até mesmo países com nível de pobreza maior do que o nosso conseguem ter menos violência. Em parte, isso se deve à questões culturais—como quando comparamos o número de homicídios por cem mil habitantes na Índia e no Brasil; há mais pobreza per capita lá do que aqui, contudo os indianos têm uma taxa muito menor de homicídios. Mas também há a questão da perpetuação da violência pela violência. Infelizmente, temos no Brasil uma horda de burros que não entende que, quando torturamos ladrões de galinha (ou de chocolate), criamos terreno fértil para a perpetuação do ciclo de violência. A violência generalizada nos dessensibiliza, geração após geração, tornando o clima ainda pior. E o problema não é apenas causado por seguranças de supermercado. Há no Estado brasileiro uma cultura de maus-tratos, basta ver a situação infernal das nossas prisões.

Mas é claro que o burrismo não permitirá que o cidadão médio, apoiador da tortura, enxergue isso. Ele vai continuar achando bacana os presídios brasileiros serem infernais, sem entender que há uma enorme quantidade de pessoas presas injustamente ou presas por crimes leves que se tornam criminosos violentos por causa da prisão. O cidadão médio, apoiador da tortura, não percebe que nossas prisões ruins são fábricas do crime. Quando ele percebe isso, não liga. Isso quer dizer que boa parte dos brasileiros paga impostos para sustentar um sistema prisional que produz mais violência, não menos, e acha isso bom. É o burrismo em ação.

Também nesta semana aconteceu outro fato lastimável, dessa vez na cidade do Rio de Janeiro. O prefeito teocrata—pertencente à uma vertente religiosa charlatã que só cresce graças à pobreza e a péssima qualidade da educação no Brasil—, Marcelo Crivella, utilizou-se de uma lei de proteção à crianças e adolescentes para censurar uma revista em quadrinhos da Marvel, intitulada "Cruzada das Crianças". Segundo o prefeito teocrata, evangélico e charlatão, a razão da censura foi o suposto fato da revista promover a sexualização infantil, o que é uma mentira deslavada. Ocorre que, na revista, há um beijo gay entre dois personagens homens. Não faltam revistas em quadrinho que mostram beijos entre personagens heterossexuais, inclusive personagens adolescentes. Sei disso pois consumo esse tipo de revista desde a década de oitenta do século passado, quando ainda era criança. Ninguém nunca viu problema algum quando o beijo ocorria entre rapazes e moças. Agora, quando dois personagens homens metem suas respectivas línguas fictícias dentro da boca um do outro, faz-se um escândalo, por pura homofobia e conservadorismo barato, lógico.

A direita conservadora e liberal brasileira adora bajular o que eles entendem como sendo os Estados Unidos, sem conhecer absolutamente nada da história e das leis americanas. Poderia escrever um tratado sobre isso, mas focarei no tema da censura. Morei nos Estados Unidos alguns anos, cursei colégio e universidade lá. Sei que nos Estados Unidos, assim como aqui, existem muitos adeptos do burrismo. Há burros em quantidade suficiente para eleger Donald Trump presidente (graças ao sistema de colégio eleitoral, visto que Trump perdeu no voto popular por alguns milhões), mas não o suficiente para que a legislação permita um disparate desse, pelo menos não na maioria dos estados que compõem a federação. Lá, a revista da Marvel que o prefeito charlatão e teocrata do Rio tentou censurar é vendida livremente, sem grandes riscos de haver censura por parte dos governantes, mesmo daqueles que são evangélicos e adeptos do burrismo; até porque, como todos sabemos, eles não leem.

O TJ do Rio chegou a proibir os fiscais da prefeitura de recolherem as revistas, mas um juiz teocrata, adepto do burrismo, mandou os fiscais irem novamente à Bienal neste sábado. Esse senhor já deu declarações como: "não se pode negar aos cidadãos heterossexuais o direito de, com base em sua fé religiosa ou em outros princípios éticos e morais, entenderem que a homossexualidade é um desvio de comportamento, uma doença, ou seja, algo que cause mal à pessoa humana à sociedade, devendo ser reprimida e tratada e não divulgada e apoiada pela sociedade". Essa declaração tem dez anos, então podemos ver que de lá para cá, ao invés de melhorar como pessoa, o juiz tornou-se ainda mais adepto da burrice e da teocracia. O que poderia ser um capítulo sombrio na biografia dele, estendeu-se até os nossos dias, fazendo com que nós possamos afirmar que, provavelmente, o livro da vida desse senhor será uma porcaria.

Não, senhor juiz, religiosos não têm o direito de impor a sua moral religiosa goela abaixo do resto da sociedade, da mesma maneira que o resto da sociedade não pode entrar dentro de um templo religioso e exigir que cessem as atividades ridículas que lá ocorrem. A homofobia dos crentes, por lei, só pode durar enquanto ocorre o culto, dentro das igrejas e das cabeças daqueles que creem, e isso porque ainda convivemos com a anomalia de leis liberais arcaicas que permitem que enganadores (líderes religiosos) explorem pessoas simplórias. É certo que o senhor e o prefeito não gostariam que nós censurássemos a Bíblia, um livro cheio de absurdos, que faz apologia da escravidão, da barbárie, da mentira, da misoginia, da homofobia e do genocídio. Então, tendo em vista que vocês não aceitariam a censura, fiquem sabendo que nós, o resto da sociedade, também não aceitamos que censurem a revista da Marvel. 

Não há apologia à sexualização infantil em nenhuma página daquela revista. Tentar censurá-la por conta de um beijo entre dois personagens gays mostra o quão desgraçados e deploráveis vocês são. Existem alguns países no mundo em que a lei pune severamente pessoas pegas com bebida alcoólica, países em que ateus, apóstatas e homossexuais são condenados à morte simplesmente por acreditarem e viverem de uma maneira que vai contra a religião da maioria, países em que maridos podem agredir suas esposas legalmente. Por que os senhores não vão morar nesses lugares? Eu me voluntario para pagar as passagens. Já sei, vocês darão a desculpa de que tais países não são cristãos—mas nós saberemos que é mentira. Na realidade, vocês não querem sair do bem bom que desfrutam aqui no Brasil (afinal, juízes, prefeitos e pastores vivem de regalias), fora o fato de que não têm inteligência suficiente para aprender outras línguas.

Os senhores são deploráveis.


Referências: