Uns são mais exilados do que outros: Ágatha, 8 anos, morreu baleada pelas costas
Dir-se-ia que vivi, durante toda a minha vida, com o sentimento de ter sido afastado do meu verdadeiro lugar. Se a expressão "exílio metafísico" não tivesse nenhum sentido, a minha existência, por si só, conceder-lhe-ia um.
—Emil Cioran, Do inconveniente de ter nascido
Desespero (1892), pintura de Edvard Munch |
Emil Cioran é um autor que tem me influenciado bastante. A filosofia negativa e niilista de Cioran coloca o homem como um exilado metafísico. Quando ele escreve que é um exemplo exílio metafísico, o que isso quer dizer? Exatamente o que propõem no parágrafo acima: temos a sensação de pertencimento a outro lugar, um lugar inalcançável. Ao lermos o resto de sua filosofia, percebemos que esse lugar é o pré-nascimento, o nada que existia antes de virmos ao mundo. Embora admirasse algumas expressões religiosas, Cioran não acreditava em nenhuma delas, como deixa explícito na sua obra. Ele utiliza o linguajar da religião e da metafísica de forma literária. Não há algo para além da física ao qual devemos retornar depois da vida. O que Cioran deseja é a paz de nunca ter existido. Sendo isso impossível, resta o desespero. E a morte não serve de consolo, como quando ele escreve em "Do inconveniente de ter nascido":
Escrevo tudo isso do ponto de vista de um homem branco de classe média que sabe muito bem dos privilégios que tem, algo que percebo ser raro. Há quem diga que o que faço é reclamar de barriga cheia, mas discordo. É aí que aparecem outras influências filosóficas no meu pensamento. Ao contrário de uma crença comum, filosofias negativas e pessimistas não são um puxadinho do pensamento conservador. Se fossem, Philipp Mainländer, seguidor de Schopenhauer, não teria tendido à esquerda. Vem ocorrendo o mesmo comigo: desde que comecei a estudar o pensamento negativo, há alguns anos, tenho simpatizado mais com políticas de esquerda. É claro que o raciocínio que uso para justificar minhas reflexões sobre política é diferente daquele usado por quem sustenta o materialismo histórico, por exemplo, mas o resultado prático acaba sendo parecido. Penso que sim, vir ao mundo é uma desgraça, mas nada nos impede de tornar este mundo um lugar mais aprazível e justo para todos. A vida já é ruim sem precisar da nossa ajuda, então para que organizarmos o mundo de uma forma tão horrível, desigual e brutal?
Aqui entra a morte de Ágatha, ocorrida no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Se todos nós somos exilados metafísicos, se todos nós habitamos uma espécie de purgatório ou inferno existencial, então uns habitam exílios piores do que outros, por conta de sua condição social. Ágatha era uma menina estudiosa e alegre. Mas por ser negra e morar na favela com sua família, o Estado brasileiro considerou sua vida como descartável. O vice-presidente, Hamilton Mourão, afirmou com todas as letras que sua morte foi um efeito colateral normal da guerra ao narcotráfico, como se isso fizesse diferença. Nas redes sociais, milhares de pessoas estão passando pano para essa política de segurança pública nojenta—uma política que privilegia o confronto armado sem preparo algum, ao invés de privilegiar a inteligência. Para coroar tudo isso, temos um ministro da segurança pública que quer passar um pacote anti-crime que dá às forças do Estado o direito de matar "sob forte emoção". Eles devem achar "emocionante" participar de um tiroteio no meio de crianças.
Ainda que o tiro de fuzil não viesse da polícia—e, pelo tempo que estão demorando para investigar, certamente foi—, a culpa da morte de Ágatha é do Estado brasileiro e da sua política de segurança assassina. Em outro texto, escrevi que as forças policiais brasileiras estão entre as que mais matam, não apenas em confronto, mas em execuções extrajudiciais. Isso significa que há pena de morte no Brasil, ela só não é legalizada. Pela quantidade de mortes promovidas pelos agentes de segurança ao longo dos anos, o crime já deveria ter sido extinto no país. Mas é claro que o crime não acaba nunca, porque esse tipo de política de segurança assassina não gera efeito positivo. Só não vê quem não quer—ou quem é racista e sabe que quem mais sofre com esse tipo de política são negros e pobres.
Policial não pode ter o direito de atirar impunemente para qualquer lado, nem mesmo durante confrontos, justamente porque eles não são cidadãos comuns, nem criminosos. Eles representam o Estado e são (ou deveriam ser) treinados para responder de forma calma e eficaz, sempre, em qualquer situação. Quando há suspeita de erro médico, o profissional é avaliado e pode responder criminalmente. Imaginem a loucura que seria caso médicos que cometessem erros grosseiros pudessem dizer que erraram por estar sob a influência de fortes emoções. O mesmo deve servir para policiais. O excludente de ilicitude proposto pelo ministro Moro—que pretende proteger agentes do Estado que matam em situações nas quais se encontram sob fortes emoções—é patético, porque retira a responsabilidade diferenciada que a profissão policial precisa ter. Até os soldados do exército que volta e meia são postos para patrulhar as cidades deveriam seguir padrões rígidos, afinal, estão lá como agentes da segurança pública, algo que nem sequer é sua função.
Vejam o caso de Evaldo Rosa dos Santos, músico que teve o carro fuzilado por 80 tiros no início do ano, também no Rio de Janeiro. Ele morreu com um tiro. Um catador de lixo que foi tentar ajudá-lo, também levou bala do exército. Quando seus familiares saíram desesperados de dentro do carro, foram zombados pelos soldados. Os militares disseram que confundiram o carro com um veículo que havia sido roubado, por isso atiraram. Esse não é um erro exclusivo do exército, a polícia do Rio já cometeu esse tipo de barbárie—atirar em veículo por acreditar que fosse roubado, matando inocentes, inclusive crianças. Observem o despreparo: o exército atirou centenas de vezes em direção ao carro, mas apenas 80 tiros acertaram. Desses 80 tiros, só um pegou no músico. Isso mostra que, além de assassinos, esses agentes nem sequer sabem atirar direito. O caso do músico e o caso de Ágatha aconteceram neste ano e foram divulgados, mas casos assim são recorrentes.
Ágatha não foi morta apenas pelo governador Witzel. Ela foi morta por todos que defendem esse tipo de política, principalmente aqueles que não são ignorantes disto: nossos agentes de segurança estão entre os que mais matam no mundo, inclusive em execuções extrajudiciais; se matar muito desse resultado, o crime já teria sido extinto no Brasil. Se, mesmo sabendo disso, você apoia esse tipo de política de segurança, você é culpado pela morte de Ágatha. Talvez tenha até comemorado, tamanha é a quantidade de pessoas desprezíveis que existem neste mundo. Quanto ao indivíduo específico que apertou o gatilho do fuzil que matou Ágatha—e quanto aos que atiraram contra o carro de Evaldo no início do ano—, não sei nem o que dizer. Até agora, várias testemunhas afirmaram que o tiro que matou Ágatha veio da polícia—eles atiraram na direção de uma moto que estaria fugindo em alta velocidade, com dois suspeitos. Pelo andar lento das investigações, fica claro que foi isso mesmo o que aconteceu. Já os soldados que atiraram contra o carro de Evaldo estão soltos, respondendo na justiça militar. Dificilmente serão punidos.
Se os responsáveis diretos e indiretos (os que apertam o gatilho e os que formulam a política assassina) pelas mortes de todas essas pessoas inocentes tivessem um pingo de remorso, eles se entregariam à justiça e confessariam, mas eles nunca tomarão essa atitude. Falta-lhes honra. Porém, sempre podemos torcer para que a memória dos mortos os atormente até o dia em que não aguentem mais. Esses são os meus votos para os assassinos de Ágatha, Evaldo, Vanessa, João Roberto e incontáveis outras vítimas de décadas dessa lógica imbecil de enfrentamento violento, que não gera resultado algum.
Referências:
1. Entenda como foi a morte da menina Ágatha no Complexo do Alemão, segundo a família e a PM
2. 80 tiros: STM decide soltar militares presos por mortes de músico e catador
3. Pai de menina de 10 anos morta no Rio diz que tiro partiu da polícia
4. Rio de Janeiro, 2017: A que horas será o tiroteio hoje?
5. Câmeras de segurança mostram PMs atirando no carro da mãe de menino
6. Brasil lidera número de assassinatos de diversos grupos de pessoas em 2017, aponta Anistia Internacional em novo relatório
7. Polícia brasileira é a que mais mata no mundo, diz relatório
8. Polícia brasileira: a que mais mata e a que mais morre
9. Para Mourão, morte de Ágatha é resultado da guerra do narcotráfico. Para presidente interino, não é hora de discutir derrubada do excludente de ilicitude; Bolsonaro ainda não se pronunciou
10. Ex-PM acusado de matar menino João Roberto, em 2008, está sendo julgado nesta quinta-feira
Nós não corremos em direção à morte; fugimos da catástrofe do nascimento, agitamo-nos como sobreviventes que procuram esquecê-lo. O medo da morte é apenas a projeção no futuro de um medo que remonta ao nosso primeiro instante. Repugna-nos, claro, chamar o nascimento de flagelo; não inculcaram em nós que era ele o supremo bem, que o pior se situava no fim e não no início da nossa carreira? O mal, o verdadeiro mal, está porém atrás, e não à nossa frente.Mas Cioran não é o único pensador que tem me influenciado. Sim, concordo com ele que teria sido melhor não termos vindo ao mundo. Se, há centenas de milhares de anos atrás, nos primórdios da humanidade, alguns casais tivessem resolvido não se reproduzir, a quantidade de sofrimentos que teriam nos poupado seria gigantesca. E, ao contrário da opinião comum que se reproduz impensadamente, não concordo que as "coisas boas" da vida compensem as ruins. Aliás, as tais coisas boas não chegam sequer perto de compensar os sofrimentos pelos quais passamos. Não que as coisas boas sejam ruins, mas elas apenas nos dão espaço para respirar, nada mais.
Escrevo tudo isso do ponto de vista de um homem branco de classe média que sabe muito bem dos privilégios que tem, algo que percebo ser raro. Há quem diga que o que faço é reclamar de barriga cheia, mas discordo. É aí que aparecem outras influências filosóficas no meu pensamento. Ao contrário de uma crença comum, filosofias negativas e pessimistas não são um puxadinho do pensamento conservador. Se fossem, Philipp Mainländer, seguidor de Schopenhauer, não teria tendido à esquerda. Vem ocorrendo o mesmo comigo: desde que comecei a estudar o pensamento negativo, há alguns anos, tenho simpatizado mais com políticas de esquerda. É claro que o raciocínio que uso para justificar minhas reflexões sobre política é diferente daquele usado por quem sustenta o materialismo histórico, por exemplo, mas o resultado prático acaba sendo parecido. Penso que sim, vir ao mundo é uma desgraça, mas nada nos impede de tornar este mundo um lugar mais aprazível e justo para todos. A vida já é ruim sem precisar da nossa ajuda, então para que organizarmos o mundo de uma forma tão horrível, desigual e brutal?
Aqui entra a morte de Ágatha, ocorrida no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Se todos nós somos exilados metafísicos, se todos nós habitamos uma espécie de purgatório ou inferno existencial, então uns habitam exílios piores do que outros, por conta de sua condição social. Ágatha era uma menina estudiosa e alegre. Mas por ser negra e morar na favela com sua família, o Estado brasileiro considerou sua vida como descartável. O vice-presidente, Hamilton Mourão, afirmou com todas as letras que sua morte foi um efeito colateral normal da guerra ao narcotráfico, como se isso fizesse diferença. Nas redes sociais, milhares de pessoas estão passando pano para essa política de segurança pública nojenta—uma política que privilegia o confronto armado sem preparo algum, ao invés de privilegiar a inteligência. Para coroar tudo isso, temos um ministro da segurança pública que quer passar um pacote anti-crime que dá às forças do Estado o direito de matar "sob forte emoção". Eles devem achar "emocionante" participar de um tiroteio no meio de crianças.
Ainda que o tiro de fuzil não viesse da polícia—e, pelo tempo que estão demorando para investigar, certamente foi—, a culpa da morte de Ágatha é do Estado brasileiro e da sua política de segurança assassina. Em outro texto, escrevi que as forças policiais brasileiras estão entre as que mais matam, não apenas em confronto, mas em execuções extrajudiciais. Isso significa que há pena de morte no Brasil, ela só não é legalizada. Pela quantidade de mortes promovidas pelos agentes de segurança ao longo dos anos, o crime já deveria ter sido extinto no país. Mas é claro que o crime não acaba nunca, porque esse tipo de política de segurança assassina não gera efeito positivo. Só não vê quem não quer—ou quem é racista e sabe que quem mais sofre com esse tipo de política são negros e pobres.
Policial não pode ter o direito de atirar impunemente para qualquer lado, nem mesmo durante confrontos, justamente porque eles não são cidadãos comuns, nem criminosos. Eles representam o Estado e são (ou deveriam ser) treinados para responder de forma calma e eficaz, sempre, em qualquer situação. Quando há suspeita de erro médico, o profissional é avaliado e pode responder criminalmente. Imaginem a loucura que seria caso médicos que cometessem erros grosseiros pudessem dizer que erraram por estar sob a influência de fortes emoções. O mesmo deve servir para policiais. O excludente de ilicitude proposto pelo ministro Moro—que pretende proteger agentes do Estado que matam em situações nas quais se encontram sob fortes emoções—é patético, porque retira a responsabilidade diferenciada que a profissão policial precisa ter. Até os soldados do exército que volta e meia são postos para patrulhar as cidades deveriam seguir padrões rígidos, afinal, estão lá como agentes da segurança pública, algo que nem sequer é sua função.
Vejam o caso de Evaldo Rosa dos Santos, músico que teve o carro fuzilado por 80 tiros no início do ano, também no Rio de Janeiro. Ele morreu com um tiro. Um catador de lixo que foi tentar ajudá-lo, também levou bala do exército. Quando seus familiares saíram desesperados de dentro do carro, foram zombados pelos soldados. Os militares disseram que confundiram o carro com um veículo que havia sido roubado, por isso atiraram. Esse não é um erro exclusivo do exército, a polícia do Rio já cometeu esse tipo de barbárie—atirar em veículo por acreditar que fosse roubado, matando inocentes, inclusive crianças. Observem o despreparo: o exército atirou centenas de vezes em direção ao carro, mas apenas 80 tiros acertaram. Desses 80 tiros, só um pegou no músico. Isso mostra que, além de assassinos, esses agentes nem sequer sabem atirar direito. O caso do músico e o caso de Ágatha aconteceram neste ano e foram divulgados, mas casos assim são recorrentes.
Ágatha não foi morta apenas pelo governador Witzel. Ela foi morta por todos que defendem esse tipo de política, principalmente aqueles que não são ignorantes disto: nossos agentes de segurança estão entre os que mais matam no mundo, inclusive em execuções extrajudiciais; se matar muito desse resultado, o crime já teria sido extinto no Brasil. Se, mesmo sabendo disso, você apoia esse tipo de política de segurança, você é culpado pela morte de Ágatha. Talvez tenha até comemorado, tamanha é a quantidade de pessoas desprezíveis que existem neste mundo. Quanto ao indivíduo específico que apertou o gatilho do fuzil que matou Ágatha—e quanto aos que atiraram contra o carro de Evaldo no início do ano—, não sei nem o que dizer. Até agora, várias testemunhas afirmaram que o tiro que matou Ágatha veio da polícia—eles atiraram na direção de uma moto que estaria fugindo em alta velocidade, com dois suspeitos. Pelo andar lento das investigações, fica claro que foi isso mesmo o que aconteceu. Já os soldados que atiraram contra o carro de Evaldo estão soltos, respondendo na justiça militar. Dificilmente serão punidos.
Se os responsáveis diretos e indiretos (os que apertam o gatilho e os que formulam a política assassina) pelas mortes de todas essas pessoas inocentes tivessem um pingo de remorso, eles se entregariam à justiça e confessariam, mas eles nunca tomarão essa atitude. Falta-lhes honra. Porém, sempre podemos torcer para que a memória dos mortos os atormente até o dia em que não aguentem mais. Esses são os meus votos para os assassinos de Ágatha, Evaldo, Vanessa, João Roberto e incontáveis outras vítimas de décadas dessa lógica imbecil de enfrentamento violento, que não gera resultado algum.
Referências:
1. Entenda como foi a morte da menina Ágatha no Complexo do Alemão, segundo a família e a PM
2. 80 tiros: STM decide soltar militares presos por mortes de músico e catador
3. Pai de menina de 10 anos morta no Rio diz que tiro partiu da polícia
4. Rio de Janeiro, 2017: A que horas será o tiroteio hoje?
5. Câmeras de segurança mostram PMs atirando no carro da mãe de menino
6. Brasil lidera número de assassinatos de diversos grupos de pessoas em 2017, aponta Anistia Internacional em novo relatório
7. Polícia brasileira é a que mais mata no mundo, diz relatório
8. Polícia brasileira: a que mais mata e a que mais morre
9. Para Mourão, morte de Ágatha é resultado da guerra do narcotráfico. Para presidente interino, não é hora de discutir derrubada do excludente de ilicitude; Bolsonaro ainda não se pronunciou
10. Ex-PM acusado de matar menino João Roberto, em 2008, está sendo julgado nesta quinta-feira