Os mitos sobre a violência no Brasil e sobre o Estatuto do Desarmamento

Segundo o Atlas da Violência divulgado pelo IPEA em 2019, os dados mais recentes mostram que o Brasil teve por volta de 31,6 homicídios a cada 100 mil habitantes. Muito se diz sobre a segurança na época da ditadura militar e nos anos anteriores ao Estatuto do Desarmamento. Alguns dizem que durante a ditadura as ruas eram seguras e que a violência só veio depois da redemocratização. Outros afirmam que ela só aumentou depois do Estatuto do Desarmamento e por conta das políticas "socialistas" do PT. As paixões políticas se acirram e, no final das contas, perde-se qualquer noção de objetividade que os números podem nos dar. Vale lembrar que todos os dados aqui apresentados não indicam (necessariamente) causalidade, mas podem servir para desbancar ideias como: "os homicídios só subiram depois de X", especialmente quando podemos ver que o número de homicídios já estava subindo antes de X. Focarei aqui em apenas um tipo de violência: homicídio.

Quadro de Andy Warhol

A última vez que os grandes centros urbanos no Brasil tiveram uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes abaixo do que a Organização Mundial da Saúde considera como epidêmica (10 homicídios a cada 100 mil habitantes) foi ANTES de 1964. Tomemos a cidade de São Paulo como exemplo. Entre 1920 e 1960, a taxa em São Paulo girava em torno de 5 assassinatos por 100 mil habitantes, muito embora a população da cidade tenha aumentado de 580 mil para 3,8 milhões nesse período. Oito anos depois, em 1968 (já na ditadura), a cidade de São Paulo registrava 10,4 assassinatos por 100 mil habitantes. Em 1985, final da ditadura, São Paulo tinha 36,9 assassinatos por 100 mil habitantes. A taxa continuou subindo gradualmente ao longo do regime militar e início da redemocratização, atingindo o ápice em 1999, com 64,3 homicídios por 100 mil habitantes na cidade. Em 2010, São Paulo teve 20,4 homicídios por 100 mil habitantes. O Atlas da Violência 2019 do IPEA mostra que a cidade de São Paulo teve 13,2 homicídios a cada 100 mil habitantes, consolidando-se como a capital menos violenta do país.


Quando falamos do país inteiro, a tendência de alta no número de homicídios já estava ocorrendo no decorrer da ditadura militar, mas para a nossa infelicidade, a taxa de assassinatos nacional deu um grande salto depois de 1980 (vale lembrar que a ditadura só acabou em 1985). O aumento gigantesco  na taxa de homicídio ocorrido nas décadas de 1980 e 1990 não veio do nada. Não é como se existisse uma situação perfeitamente estável que foi abalada em 1985. Apesar disso, houve sim um aumento bastante grande na taxa de homicídios nacional que o regime democrático pós-1985 foi no mínimo incapaz de conter. Vejamos os números. Em 1980, o Brasil teve 11,69 homicídios por 100 mil habitantes. Em 1985, a taxa subiu para 15. Em 1990 ela foi para 22,22. Entre 1990 e 1993, houve uma queda, mas a taxa voltou a subir e em 1995 tivemos 23,84 assassinatos por 100 mil habitantes. No ano de 2000, o número subiu para 27,35. A taxa continuou a aumentar até 2003, chegando a 29,14 assassinatos por 100 mil habitantes.

Em 2003, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes nacional caiu para 26,14. Ela flutuou entre 26 e 27 até 2009, quando chegou a 27,18. Entre 2009 e 2015, a taxa subiu e caiu algumas vezes, mas sempre oscilando entre 27 e 29. A última vez que os dados mostram uma queda foi em 2015. Em 2003, tivemos o Estatuto do Desarmamento, que foi gradativamente descaracterizado a partir de 2007 pelo Congresso. Os dados mostram CLARAMENTE que houve uma freada no número de homicídios por arma de fogo no país como um todo (e a maioria esmagadora dos homicídios é cometida por armas de fogo no Brasil). Por mais que possamos dizer que correlação não implica causalidade, o que é correto, a ideia de que o Estatuto do Desarmamento resultou em aumento da taxa de homicídios é COMPLETAMENTE FALSA. Como mostrou a revista exame, em 2016 (baseada no relatório do IPEA daquele ano):
Nos primeiros 23 anos da série histórica, a taxa média de crescimento dos assassinatos era de 8,1% ao ano. A partir de 2004—quando a lei entrou em vigor—até 2014, a taxa de mortes por armas de fogo caiu para 2,2% ao ano, de acordo com o estudo.
Ou seja: ao contrário do que muitos afirmam, o Estatuto do Desarmamento não desarmou os "cidadãos de bem" e os deixou à mercê dos bandidos, fazendo com que o número de assassinatos aumentasse no Brasil. Essa hipótese é absolutamente mentirosa. Quem repete isso é ignorante, malicioso ou burro. 

No decorrer dos anos, muitas mudanças podem ter contribuído para o aumento da violência no Brasil. Por exemplo, até 1960, a população brasileira era predominantemente rural. Em 1950, 64% das pessoas viviam no campo. Em 1960, esse número estava em 55%. Foi a partir de 1970 que as populações urbanas passaram a ser maioria—em 1970 estima-se que 56% dos brasileiros moravam nas cidades e 44% no campo. Em 1980, 66% viviam em cidades e 34% no campo. Em 2000, 81% da população brasileira vivia em cidades. Em 2010, 84%. Não encontrei dados que mostrem uma causalidade clara entre o aumento da violência e o aumento da população urbana no Brasil, mas alguns pesquisadores enxergam na urbanização (tal como ela foi feita) um dos fatores que podem ter contribuído com aumento da violência. Não é difícil vislumbrar essa possibilidade quando olhamos as condições de vida ao longo das décadas nas crescentes periferias das cidades brasileiras e quando lembramos da cultura de exploração violenta que o país tem desde suas origens coloniais.

Não há respostas prontas e fáceis. Mas no final das contas, podemos sim desacreditar algumas teorias propagadas há um bom tempo, como a ideia de que a ditadura foi uma maravilha no que diz respeito a segurança pública—as principais populações urbanas do país viram um aumento na violência durante a ditadura militar, mas como boa parte da população ainda vivia no campo (que sempre foi violento, porém não de maneira endêmica) esse aumento não foi sentido em todo o país e o crescimento da violência à nível nacional foi mais tímido do que o crescimento da violência em áreas urbanas durante a ditadura. Ao mesmo tempo, podemos admitir que o regime democrático foi—no mínimo—incapaz de frear o avanço da violência no país, apesar da queda no aumento do número de homicídios por armas de fogo ocorrida logo após a adoção do Estatuto do Desarmamento.

Observação:
Este texto não trata da situação atual, em que os indicadores em "tempo real" apontam para uma queda no número de assassinatos no país (tendência que começou em 2018, e que em determinados estados, como SP, já vem ocorrendo há muitos anos).


Referências: