Arendt, a dignidade da opinião e a Idade das Trevas digital

Pode não parecer, visto que vivemos num mundo onde todas as pessoas se orgulham de suas opiniões e enchem suas respectivas bocas para declamá-las, mas é verdade: a opinião, tanto na filosofia quanto nas ciências empíricas contemporâneas, é sinônimo de porcaria. Poucas palavras expressariam melhor a desvalia da opinião. "Lixo"e "nada" não servem, pois lixo ainda pode ter alguma utilidade e o nada não tem influência alguma no mundo. Quando conversamos sobre com cientistas, filósofos e acadêmicos em geral sobre assuntos científicos e filosóficos, nosso posicionamento precisa ser corroborado com dados ou precisa ser acompanhado de uma argumentação sofisticada que não ignore a realidade (afinal, é possível argumentar sofisticadamente sobre a existência de unicórnios), caso contrário, ele não vale absolutamente nada. Aliás, as nossas opiniões sem fundamentos ou com fundamentos ruins são menos do que nada, pois são capazes de gerar danos quase que irreversíveis no mundo. Ou seja, a nossa mera opinião, no linguajar cotidiano, é sinônimo de porcaria para a maioria dos filósofos e cientistas.


Enquanto que a opinião é tratada pela tradição filosófica, desde Platão até os nossos dias, como a expressão de ideias sem nenhum tipo de fundamento ou argumentação válida, no século XX, a filosofa Hannah Arendt promoveu um projeto intelectual de recuperação da opinião. Esse projeto está inserido numa proposta argumentativa maior na qual Arendt afirma que a filosofia nasceu a partir de um trauma com a democracia e com a pluralidade de visões de mundo. A democracia ateniense, através dos devidos mecanismos legais, condenou Sócrates à morte, produzindo um grande trauma em Platão e em toda a tradição filosófica ocidental que se seguiu. Isso não é uma interpretação nova. É algo assumido pela própria tradição filosófica. Tirando os céticos, para quem a descoberta de uma verdade universal e necessária é quase que impossível, foi apenas no século XX que alguns pensadores consideraram a possibilidade de "verdades" pertencentes a um determinado bloco geográfico ou temporal habitado por seres humanos—pensadores como Levi-Strauss, Saussure, Foucault e Derrida podem ser vistos assim, de certa forma.

Antes do século XX, contudo, os filósofos em geral se dividiam entre aqueles que acreditavam ser possível chegar à verdades universais e necessárias e aqueles que eram céticos quanto a essa possibilidade. Ambos os grupos não tinham—e, geralmente, ainda não têm—apreço por opiniões ou posicionamentos sem um bom embasamento empírico ou uma boa argumentação—e, na contemporaneidade, argumentações boas que possuam correspondências com a realidade empírica, como escrevi no primeiro parágrafo. Portanto, quando uma pessoa fala, numa sala de aula, mesa de bar ou no Whatsapp, que gases produtores do efeito estufa não contribuem com o aquecimento do planeta e citam uma ou duas publicações em páginas de think-tanks, escritas por um cientista—normalmente financiado pelo think-tank—ou por algum pensador da moda, sem citar estudos corroborados por outros pesquisadores que tentaram falsear a hipótese e não conseguiram, saiba: isso é uma opinião, portanto, é uma porcaria que não serve de absolutamente nada. Mesmo que essa opinião seja "fundamentada" em algo, esse algo é muito tênue e está aquém dos padrões contemporâneos adotados nas pesquisas da área específica. Quando essa mesma pessoa nem sequer se preocupa em sustentar o que diz através de fontes, ainda que sejam fontes ruins, é pior ainda: esse é o tipo mais vagabundo de opinião possível, é a porcaria da porcaria.

Contudo, boa parte dos filósofos ocidentais no pós-Segunda Guerra Mundial diagnosticaram uma crise no pensamento e na própria tradição filosófica, em todos os sentidos; crise na epistemologia, crise na filosofia política e, principalmente, crise na filosofia moral (ética). O que aconteceu, resumidamente, foi o seguinte: com a chegada da modernidade e das revoluções no pensamento científico a partir de figuras como Copérnico, Galileu, Descartes e Newton, os filósofos abraçaram com entusiasmo as revoluções científicas e a ideia de progresso humano inexorável. Estaríamos destinados ao sucesso. A princípio, esse avanço ocorreu na física, mas no século XIX, as ciências biológicas, ligadas à vida e à saúde, foram sujeitas a grandes mudanças de paradigma que produziram enormes avanços. Um deles foi a teoria da evolução de Darwin e Wallace. Por mais que setores imbecilizantes da sociedade europeia e norte-americana não aceitassem—e ainda não aceitem—que todas as formas de vida se alteram ao longo do tempo em virtude das pressões exercidas pela seleção natural (processo através do qual algumas espécies não se adaptam às mudanças no meio ambiente e são extintas, enquanto que outras, por mutações genéticas randômicas, conseguem se adaptar e sobrevivem), a maioria abraçou a ideia.

Infelizmente, sendo o ser humano um ser desamparado cosmicamente, muitas pessoas no século XIX e início do século XX viram esses avanços no campo da biologia como uma forma de justificar seus anseios existenciais de auto-afirmação cultural, étnica e racial. O nazismo na Alemanha foi apenas a mais famosa e destrutiva expressão do ideal eugênico racista dos povos europeus que se basearam na ciência—eles se basearam numa interpretação tosca e extremamente problemática da biologia, sim, mas o fato é que, legitimamente ou não, a ciência foi usada para justificar muitas desgraças. A física e a engenharia, também, auxiliaram na construção de armamentos milhares de vezes mais letais do que os usados até então. Isso culminou nas armas nucleares, usadas duas vezes contra populações civis, no Japão. Todo o entusiasmo com o progresso humano através da ciência—entusiasmo abraçado por correntes filosóficas muitas vezes opostas umas as outras—já havia sofrido um golpe na Primeira Guerra Mundial. Depois da Segunda Guerra Mundial, a ficha caiu. Pensadores começaram a olhar não apenas para a destruição ocorrida na Europa e no Pacífico, mas também a mortandade produzida pelo imperialismo europeu nas colônias—massacres que, inclusive, tiveram a participação de pessoas ilustres, como Churchill, na Índia.

Essa crise na tradição foi sentida por todos os pensadores e filósofos no século XX. De uma forma ou de outra, quase todos tentaram abordá-la à sua maneira. Alguns não focaram apenas na questão da filosofia como articuladora da ideia de progresso, mas olharam também para a problemática dos eventos totalitários do século XX—e talvez a mais famosa dessas pessoas foi a filosofa Hannah Arendt. Para ela, os totalitarismos do século XX, em especial o nazismo e o stalinismo, mostram um rompimento completo com a tradição. Para ela, nada—nem mesmo a ideia hegeliana de um progresso histórico advindo do embate entre forças dialéticas opostas—foi capaz de antever os regimes totalitários. Acima de tudo, Arendt afirmou que a ideia de que uma Razão universal se dá no mundo incrementalmente jamais poderia ser usada para justificar as atrocidades cometidas pelos regimes totalitários. Nada justificaria o nazismo ou o stalinismo como momentos necessários na história humana. Tais regimes não poderiam nunca ser tratados como "passos sangrentos que levariam a algo melhor no futuro". Não, em sua obra, ela argumentou que a história não é uma sucessão de necessidades rumo a um progresso inexorável. Vivemos num mundo de contingências, onde os eventos não são obra de forças metafísicas ou materiais que determinam esse ou aquele caminho para a humanidade. Por essa razão—e por outras—Arendt é detestada por muitos marxistas: ainda que exista luta de classes, ela descarta a noção de que a história possui um sentido, tenha ele a natureza que for, metafísica ou material.

Sua argumentação aponta que os movimentos e regimes totalitários surgiram de eventualidades históricas produzidas pelo mundo liberal—o advento de uma sociedade de massas, a despolitização do homem, a atomização das pessoas, a perda de um chão e de um mundo comum, a ideia de que tudo o que importa é o lucro particular. Essa crítica ao liberalismo é uma das razões pelas quais muitos liberais também a detestam. Ela afirma que são esses os ingredientes que tornam os movimentos totalitários possíveis. Contudo, mesmo com todos os graves problemas que o mundo liberal engendra, Arendt argumenta que o nascimento do totalitarismo não é um evento necessário, mas algo que pode vir a ocorrer dado esses ingredientes. Podemos e devemos alertar para os fatores que permitem o desenvolvimento desse tipo de pensamento. O futuro está por se fazer. Indo um pouco mais além na sua análise, ela observou que o totalitarismo pode tomar formas ideológicas diferentes, mas que em todas elas há uma característica comum: a tentativa de substituição da realidade factual pela versão (mentirosa da ideologia) totalitária—seja ela propagada pelo führer ou pelo partidão. Ela é incisiva na afirmação da existência de fatos que não podem ser questionados—tudo o que o homem pode fazer, segundo Arendt, é ter opiniões diversas sobre os fatos, mas ele não pode negá-los. Porém, é exatamente isso que o pensamento totalitário faz: ele tenta negar a realidade e substituí-la por uma mentira, baseado em alguma ideologia que é invariavelmente utilizada ao bel prazer do líder—ou líderes—do movimento totalitário.

Antes de continuar, cabe aqui um esclarecimento. Arendt argumentou que existem basicamente três tipos de proposições verdadeiras. Em primeiro lugar, temos as proposições ou verdades matemáticas, que são axiomáticas e, por isso, o pensamento sempre acabará chegando até elas. Essas são as mais difíceis de serem negadas ou proibidas. Depois, temos as verdades científicas, que são aquelas descobertas através das ciências empíricas. Tais verdades são mais frágeis do que as axiomáticas. Se a história tivesse tomado rumos diferentes, poderíamos nunca ter tido um Copérnico ou um Newton, além do que, essas proposições podem ser mais facilmente censuradas e negadas do que as verdades axiomáticas da matemática—é muito mais fácil um governo teocrático negar a teoria da evolução das espécies ou a mecânica quântica, proibindo a sua divulgação em escolas, do que negar verdades geométricas euclidianas, por exemplo. E, por último, temos a verdade factual, que são eventos ocorridos dentro do mundo humano. Falo aqui de verdades históricas, como, por exemplo, o fato de que Júlio César foi assassinado a facadas. Essas verdades são as mais frágeis e passíveis de alteração e negação por parte das pessoas—ou por parte de regimes políticos—que as enxergam como inconvenientes. Como exemplos atuais da fragilidade das verdades factuais, podemos citar a tentativa de negacionismo do Holocausto e, também, a tentativa de reescrever a história do golpe militar de 1964 no Brasil.

A tradição filosófica foi inimiga da democracia desde o começo, com Platão, por conta do trauma da morte de Sócrates. A filosofia nasceu contrária ao pensamento democrata, argumentando que em todas as áreas da vida buscamos aquele mais adequado à tarefa: se precisamos de sapatos, vamos ao sapateiro, se estamos doentes, vamos ao médico. Entretanto, na hora de administrar a cidade, os democratas defendiam que todos os cidadãos livres tinham não apenas o direito como a capacidade de administrar. Isso foi rechaçado pela filosofia, que tentou buscar argumentos para provar que a administração da cidade deveria ser feita, também, por aquela pessoa mais adequada—o filósofo, é claro, ou algum tirano esclarecido por algum filósofo. A filosofia nasceu acreditando que a opinião era ruim não apenas no campo das ciências e das técnicas, mas também no campo da política. Arendt argumentou que esse é um pensamento que precisa ser questionado, entendido e, de preferência, abandonado, porque o campo da política é justamente o lugar onde as opiniões podem e devem se manifestar. Quando elimina-se a opinião da política, não temos mais política, mas autoritarismo e, em casos extremos, totalitarismo. Ela observou que, em alguns casos, tal mudança chegou a ocorrer ao longo da tradição—como no caso de Kant, para quem a discussão saudável e livre deveria ocorrer se a humanidade quisesse sair de sua menoridade intelectual e política. Mas, em grande parte, a filosofia ainda considerava o pluralismo, inclusive o pluralismo na política, como algo extremamente problemático.

Tirando os céticos, como já mencionei, a maioria dos outros filósofos acreditava na existência de uma verdade—até mesmo Kant, muito embora ele fosse a favor da livre expressão política nas horas vagas. Portanto, para a maioria dos filósofos, a política, assim como as ciências naturais e empíricas, também deveria se submeter à uma única verdade—os totalitarismos do século XX, gerados do caldo da sociedade de massas despolitizada e desenraizada do mundo, proveram essa "verdade" para seus milhões de seguidores, todos ávidos por um sentido para as suas vidas. Foi por essa razão que Arendt tentou recuperar a dignidade da opinião na política ao longo da sua obra. Ela afirmou que não podemos questionar a verdade factual, além do que, também, não deveríamos poder negar proposições científicas, muito embora ela foque suas preocupações nos fatos mundanos. Ou seja, não deveríamos poder negar ou tentar alterar ao nosso bel prazer coisas como, por exemplo, teses científicas sustentadas por ampla pesquisa e sujeitas a revisões (proposições ou verdades científicas) ou eventos históricos corroborados por amplo testemunho e registrados por diversos agentes (verdades factuais). Isso quer dizer que não podemos questionar a esfericidade da Terra ou a ocorrência do Holocausto. Essas coisas não são questões de "opinião", elas são verdades—uma científica, a outra factual. Porém, desde que preservemos a verdade factual, num ambiente político democrático podemos (e até devemos) ter um viés opiniativo ou ideológico, sim—e aqui se encontra a real dignidade da opinião para Arendt, dignidade essa que foi ignorada pela tradição filosófica, que sempre preferiu a tirania da "verdade única" imposta à política. Contudo, apesar da dignidade da opinião dentro do discurso político, ela denuncia a apropriação e a alteração da realidade factual, especialmente para fins políticos, afirmando que esse é um caminho perigoso a se tomar, dada a realidade dos eventos ocorridos na primeira metade do século XX na Europa.

Arendt morreu em 1975. Ela chegou a ver os computadores avançados da época, mas não viu o desenvolvimento absurdo da computação de lá para cá, nem a popularização do PC. Ela não sonhava com a internet e muito menos com as redes sociais. Não sei o que ela diria do presente. Sim, devemos tomar todo cuidado do mundo com as promessas totalitárias—promessas que a própria Hannah Arendt afirmava que sempre nos tentarão como soluções para o nosso desenraizamento, visto que somos todos homens das massas, atomizados e órfãos de um mundo comum. Ela não viu a proliferação virulenta do negacionismo do Holocausto, o movimento anti-vacinação e a popularização da crença na Terra plana. O homem da massa parece tender à burrice—definida aqui como a insistência na ignorância mesmo após inúmeras oportunidades de aprendizado, ou seja, pessoas que escolhem a ignorância—e a era digital está acelerando esse processo de emburrecimento. Estamos entrando numa nova Idade das Trevas. Pensávamos que um mundo tecnológico e digital seria incapaz de produzir uma era de trevas, mas estávamos errados. Para combater a proliferação desenfreada do império da opinião burra—como substituta da verdade factual e da verdade científica—tem que se dar combate à burrice, mesmo que isso antagonize boa parte dos burros, mesmo que isso os ofenda. Caso a humanidade ainda queira ter um mundo que preste minimamente, ela precisa dar combate intelectual à burrice, sem acomodações e sem acreditar que as pessoas têm um suposto direito à ignorância. Até porque, caso a humanidade não seja dura com aqueles que escolhem ser ignorantes, os burros (que não são todos os ignorantes, é claro, mas um número cada vez maior deles), eles servirão de massa de manobra para novos movimentos totalitários, sempre à espreita.


Referências:
1. Entre o Passado e o Futuro (Hannah Arendt)
2. Origens do Totalitarismo (Hannah Arendt)
3. A Condição Humana (Hannah Arendt)