Fichamento textual do livro “Écartèlement", de Emil Cioran

NOTA: Este fichamento faz parte de um estudo que faço na universidade sobre as interpretações do conceito de história e a ideia de progresso na obra de Emil Cioran, portanto o foco do fichamento são as partes da obra relevantes ao tema. Há, porém, uma gama de outros temas tratados nesta e em outras obras de Cioran que também são interessantes, mas que não abordarei diretamente, como a questão do suicídio.


CIORAN, Emil. Écartèlement. Paris: Gallimard, 1990.


“Écartèlement”, em português, significa “esquartejamento” ou “esquartejado”. A obra, traduzida para o inglês como “Drawn and Quartered” (que significa, literalmente, o método de execução por esquartejamento na língua inglesa), nunca foi traduzida para o português. Apesar disso, podemos acessá-la no seu original em francês e, para aqueles que não dominam completamente esta língua, há a versão inglesa, traduzida por Richard Howard, que também traduziu diversas outras obras de Cioran para a língua inglesa e teve contato com o filósofo, assim como José Thomaz Brum, tradutor de diversas obras de Cioran para o português.

“Écartèlement” é composto por ensaios e aforismos. O livro começa com o ensaio “As duas verdades”. O início do ensaio trata de um mito de criação gnóstico, no qual a explicação da existência do mundo e da história se dá da seguinte maneira: no início dos tempos, ocorreu uma batalha nos Céus entre anjos fiéis e anjos rebeldes. Os rebeldes perderam, foram expulsos do Céu, e aqueles anjos que não tomaram partido foram colocados na Terra como humanos, sem lembranças da batalha passada e da sua indecisão. A punição desses seres foi viver a vida humana para aprenderem a escolher, sem vacilar. Cioran argumenta que, no Céu, é possível um certo grau de vacilação e neutralidade, enquanto que os humanos, na Terra, estão sempre procurando militar por causas e “verdades”, sejam elas quais forem — isto é, acreditamos seguir verdade absolutas e eternas sem o menor pudor, sem um mínimo de ceticismo ou questionamento, enquanto que parte dos anjos, segundo o tal mito gnóstico, sabia exatamente o que cada lado da batalha celestial defendia, mas permaneceram vacilantes e neutros mesmo assim.

A escola budista Madyamika, Cioran nos diz, enfatiza a distinção radical entre duas verdades: a real, eterna, acessível apenas àqueles que já foram liberados das amarras do mundo material; e a verdade ordinária, velada, comum ao mundo material e domínio dos que ainda estão presos a ele. A verdade real toma para si todos os riscos, até mesmo a negação da ideia de verdade, algo que somente os inativos têm acesso, por enxergarem a falta de substância em tudo aquilo que os cerca. Para eles, a história é como um pesadelo do qual não podemos acordar, um objeto sem essência, ou melhor, a história tem uma essência, a essência da enganação. Cioran afirma que ela nos cega e nos permite viver no tempo, no nosso tempo, tomando partido dentro dele, como se os fatos que ocorressem tivessem em si alguma importância, quando na realidade eles não têm nenhuma.

Aqueles que acordam deste sono, de acordo com Cioran, não podem ser o foco dos eventos, porque eles perceberam sua inanidade, seu vazio. Mas tal processo é raro, destinado apenas a alguns santos, místicos ou reclusos. Cioran afirma que, no âmbito coletivo, algumas sociedades ao longo do tempo rejeitaram o apelo das constantes inovações, que fazem cada geração ter novidades efêmeras que nada significam. Enquanto que a Grécia clássica e Europa moderna são modelos de civilizações afetadas por uma morte precoce, já que estão sempre ávidas por metamorfoses e pelo consumo de novos deuses, a China e o Egito antigos permaneceram milênios em uma esclerose onde as mudanças, quando ocorriam, levavam muito, muito tempo. As sociedades africanas também tiveram essa características, pelo menos antes de serem infectadas pelo Ocidente. Agora, o mundo todo padece do mal da mudança, o mundo inteiro é ameaçado pelo ritmo frenético da história.

Porém, independentemente das diferenças entre as sociedades no tempo e espaço, todas elas inevitavelmente sofrem de um problema: por nascerem, acabam experimentando um crescimento delirante, uma maturidade e um declínio. O declínio sendo o período mais são, na visão de Cioran — e, portanto, tão letal quanto os outros. Cioran escreve que a função dos períodos de declínio é desnudar uma civilização, tirar sua máscara, seu glamour e sua arrogância. Mostra-se qual foi seu valor antes e qual é seu valor agora, o que foi ficção e ilusão e o que é a realidade. É neste momento de desilusão que uma sociedade acaba encontrando terreno fértil para a sabedoria, uma sabedoria que poucos querem ter, que revela algo de podre por trás do real e por trás da história. Ao contrário de Hegel e dos filósofos que seguiram seus passos ou os inverteram, Cioran trata aqui de uma história cujo significado é a degradação pura, sem finalidade. Ao ligarmos história e significado, estamos, de acordo com Cioran, dentro do erro ligado à segunda verdade do budismo Madyamika, a verdade mundana, que poderíamos escrever simplesmente como “verdade”.

Aqueles que são fascinados pela história esperam uma calamidade: um juízo final ou uma hecatombe transformativa, mas ainda assim brutal. Os períodos de calma existem, mas estes são apenas momentos de interlúdio dentro de um pesadelo. Ao contrário dos que dizem que o trágico é a sina do indivíduo e não da história, Cioran argumenta que ela também sofre da tragédia, ainda mais do que os heróis trágicos da mitologia. Ela fascina tanto — e cada vez mais — porque sabemos, no fundo, as surpresas grotescas que ela produzirá. Os poucos que entendem da sua inanidade sabem que ela acrescenta pouco ou nada às maiores questões, que ela nos prende ao inescapável originário do existir. Estamos sempre querendo um momento de paz, um momento sem eventos para que possamos respirar. Em uma passagem que lembra o pensamento hegeliano — com uma forte pitada de pessimismo existencial —, Cioran escreve que o livre arbítrio existe apenas na superfície da história, nas suas aparências:

Ele nos lembra de Aníbal, que tomou a decisão de não invadir Roma quando teve a chance, apenas para perder a guerra, anos depois: parte significativa da história foi movida pela decisão daquele homem; hoje, ao invés das origens latinas do Ocidente, poderíamos falar das origens cartaginesas. Contudo, Cioran nos diz que, ao olharmos o todo da história, não temos como não pensar num trecho do Mahabharata que diz: “O nó do Destino não pode ser desfeito; nada neste mundo é resultado das nossas ações.” Mas somos todos divididos entre as duas verdades: não podemos escolher uma sem nos arrependermos de deixar a outra para trás. Podemos denunciar a história, algo relativamente fácil, mas muito mais difícil é deixá-la para trás, através de uma ética mínima e não-intervencionista, que se abstêm de ser causa (ou combustível) para os eventos. Nós nascemos da história e ela não nos deixa esquecer este fato, nunca.

A história se prova um obstáculo para a revelação máxima, uma prisão da qual podemos nos libertar somente se percebermos a nulidade de todos os eventos — menos deste evento que demonstra a nulidade de todos os outros. Nossa escolha é, portanto, entre verdades intragáveis e fraudes magníficas. Para Cioran, somente as verdades inumanas são dignas de serem chamadas de verdades, no sentido da primeira, a verdade real. É somente quando admitimos a superioridade — num sentido moral, avaliativo — da não existência que tocamos alguma verdade. Nós as rejeitamos porque elas nos causam vertigo, porque não somos capazes de viver “sem adereços disfarçados de slogans ou de deuses” (CIORAN, 1990). Cioran escreve que é doloroso ver que, em qualquer período, são justamente os iconoclastas que mais frequentemente adotam ficções e mentiras:
O mundo antigo deve ter tido uma terrível aflição para necessitar um antídoto tão bruto quanto aquele que o cristianismo administrou. O mundo moderno está tão ruim quanto, a julgar pelos remédios dos quais ele espera milagres. [...] Uma pessoa se enche de assombro e até de pavor quando ela escuta homens falando de libertar o Homem. Como poderiam escravos libertar o Escravo? E como acreditar que a história — uma processão de ilusões — pode se arrastar mais? Logo estarão fechando os jardins em todos os lugares. (CIORAN, 1990)
Em um determinado momento do ensaio seguinte, intitulado “O viciado em memórias”, Cioran escreve sobre como as grandes mudanças, como por exemplo, as revoluções ou conquistas, ocorrem muitas vezes por uma questão perceptiva e acolhedora do fim: “Os godos não conquistaram Roma, eles conquistaram um cadáver. O único mérito dos bárbaros foi ter um nariz” (CIORAN, 1990) O conceito de progresso, afirma Cioran, tornou-se inseparável do conceito de desfecho. Uma revolução como a que ocorreu na França ao final do século XVIII visa apenas democratizar a vacuidade vivida pela elite — esta, fadada à forca. Como exemplos da vacuidade moral — e, de fato, da amoralidade e oportunismo —, Cioran cita Filipe de Orleans, irmão de Luís XIV e regente francês do final século XVII e início do XVIII, além do próprio Luís XIV e Luís XVI. Entre estes três, e em contraposição a eles, ele também menciona Luís XV como um cético, indisposto a perseguir questionadores violentamente, como fizera seu antecessor.

Apesar das diferenças entre esses monarcas, a crescente frivolidade e falta de paixão gerada por uma abundância tão enorme de privilégios, fez com que os últimos monarcas franceses se abrissem para qualquer coisa — inclusive ideias novas que viriam, no futuro, cortar suas cabeças: “A acomodação do adversário é o sinal distinto da debilidade, i.e., da tolerância, que é, em última análise, apenas a coqueteria dos que estão morrendo.” (CIORAN, 1990) Cioran escreve que apenas as nações briguentas, indiscretas e ciumentas possuem uma história interessante — a francesa é o caso supremo, pois ela é fértil em eventos e em escritores que os dissecam. É por esta razão que Cioran a coloca como objeto de desejo do viciado em memórias.

No ensaio seguinte, “Depois da história”, ele nos mostra, como fez em outras obras anteriores, o lamento de nossa condição como seres históricos — a história sendo uma bastardização de algo que já era ruim, o tempo. Cioran chega a fantasiar, aqui, a felicidade de uma humanidade pós-histórica, onde a existência seria idêntica a si mesma, assim como era antes da história. Não devemos confundir essas fantasias assumidas de Cioran com algo similar às filosofias da história. Tal visão nada tem a ver com o fim da história e inauguração de um novo mundo utópico, como ocorreria após o fim da luta de classes na teoria marxiana, por exemplo. Não, o que Cioran está dizendo é que retornaríamos a nossa condição anterior, a mesma condição a-histórica da qual todos os outros animais desfrutam, afortunados por não terem desenvolvido a capacidade reflexiva do homem. O sucesso perfeito dessa empreitada, ele escreve, não deixaria ninguém vivo — pelo menos ninguém vivo na forma humana atual — para celebrar.

Profeta inexato do Fim, Cioran vê nos gestos mais simples, nos olhares mais passageiros entre as pessoas, denúncias de que o andar da humanidade chegará a uma conclusão — mas ela não precisa ser imediata, pode ocorrer em um século ou em dez, ele afirma. Essa certeza é ainda maior sabendo que substituímos cada vez mais os desastres naturais pelos artificiais; estes cada vez mais potentes. Enquanto a história segue um curso mais ou menos normal, os acontecimentos parecem aleatórios no tempo. Mas algo se modifica quando as coisas começam a sair da normalidade. Podemos pegar dois exemplos: o dos animais e o de determinados períodos do medievo humano. Os animais vivem num eterno presente, no tempo absoluto, onde os eventos ocorrem sempre no agora: “expressão de um presente que se repete, se multiplica” (CIORAN, 1990). Durante alguns séculos na idade média europeia, desconsideradas as enormes diferenças entre o humano e o animal, a vida era basicamente a mesma coisa. Não havia um eterno presente como no mundo animal, mas um eterno retorno do mesmo, através das gerações, onde pouco ou nada se alterava na vida das pessoas comuns. Cioran argumenta que, ao contrário desses, existem os períodos em que o futuro torna-se sinônimo de uma renovação mortal, onde tudo dá a entender um progresso em direção a algo completamente desconhecido e impensável: os séculos desde o Renascimento até o XX seriam exemplo crescente desse sentimento.

Ele novamente pega exemplos vindos das religiões e filosofias do Oriente, citando uma passagem da Samyutta-Nikaya, texto que se encontra no cânone Pali, o mais antigo grupo de textos budistas do e base do budismo Teravada: “O mundo inteiro em chamas, o mundo inteiro envolvido em nuvens de fumaça, o mundo inteiro devorado pelo fogo, o mundo inteiro treme.” Cioran também menciona Mara, a entidade antagonista na religião budista — Mara cumpre essa função em todas as versões e diferentes escolas do budismo —, em particular a versão tibetana da criatura, que sempre aparece pintada segurando a roda da vida, que mostra desde o nascimento dos homens até sua morte e reencarnação. Mara está sempre sorrindo sardonicamente, encarando todos aqueles que observam tais pinturas. Cioran comenta que o efeito etéreo dessa representação demonstra muito bem a sucessão interminável de eventos com suas idolatrias inerentes. Ele escreve, também, que só o pesadelo da história poderia nos fazer criar o pesadelo da transmigração de uma vida para a outra.

Porém, aqui ele faz uma ressalva importante: para os budistas, a peregrinação entre diferentes existências ao longo do tempo, ao longo de incontáveis eras e mundos, é um terror do qual o praticante busca se livrar. Seus esforços são — ou deveriam ser — buscar a liberdade desta prisão, similarmente à mentalidade gnóstica dos primeiros séculos da era cristã, que considerava o mundo material uma prisão para a alma humana. Entretanto, ele compara tal atitude de rejeição oriental a atitude ocidental do século XX e percebe que, ao contrário da mentalidade budista (e também gnóstica) mencionada, os ocidentais estimam aquilo que os ameaça, nutrem seus anátemas, são gananciosos por aquilo que os pulveriza. Cioran argumenta que nada os faria abandonar seu pesadelo — pesadelo este que recebeu diversas denominações e conteve inúmeras ilusões. Mesmo com as ilusões desacreditadas, não abandonamos o pesadelo: “É como se um aspirante ao nirvana, cansado de persegui-lo em vão, virasse na direção contrária para chafurdar, para afogar dentro do samsara, testemunha de sua própria queda, como nós somos da nossa própria.” (CIORAN, 1990)

Em uma das passagens mais emblemáticas sobre o conceito de história e progresso, que citarei na íntegra, apesar de longa, o filósofo escreve:
O homem faz a a história; por sua vez, a história desfaz o homem. Ele é seu autor e seu objeto, seu agente e sua vítima. Até hoje ele acreditava dominá-la, agora sabe que está fora de seu controle, que ela dissolve no insolúvel e no intolerável: um épico demente, cujo desenlace não implica uma noção de finalidade. Como atribuí-la um objetivo? Se tivesse um, a história só o alcançaria uma vez alcançado seu término. A vantagem única será desfrutada pela última raça, os sobreviventes, os que restarem; apenas eles serão agraciados, aproveitadores de um número incalculável de esforços e tormentos que o passado conheceu. Visão demasiado grotesca e injusta. Se insistirmos que a história precisa ter um significado, busquemos ele na maldição que pesa sobre ela e não noutro lugar. O indivíduo isolado pode ter significado apenas no grau em que ele participa desta maldição. Um gênio maligno preside sobre os destinos da história. É evidente que ela não tem nenhum objetivo, mas que ela é marcada por uma fatalidade que o substitui e que confere ao futuro um simulacro de necessidade. É esta fatalidade, e ela apenas, que nos permite falar de uma lógica da história sem soarmos ridículos — e até de uma providência, uma providência especial, é verdade, suspeita até certo grau, cujos desígnios são menos impenetráveis do que aqueles da outra, supostamente bons. Esta providência faz com que as civilizações cujo progresso ela governa sempre se desviem de sua direção originária de forma a obter o contrário de seus objetivos, de forma a declinarem com uma obstinação e um método que claramente demonstram as manobras de um poder sombrio e irônico. (CIORAN, 1990)
Cioran nos pede para considerarmos o menor dos eventos e argumenta que, se formos honestos, perceberemos que os elementos positivos e negativos que compõem tal evento serão, na melhor das hipóteses, iguais. Na maioria dos casos, contudo, os elementos negativos predominam. Ele conclui, daí, que seria preferível que a maioria dos eventos — todos, na verdade — nunca tivessem ocorrido. A conta simplesmente não fecha. Deveríamos todos ter tido a oportunidade de sermos dispensados dos eventos. Daí surge outro questionamento: tendo concluído que o menor do eventos possui, no máximo, um equilíbrio entre os elementos positivos e negativos, e que, na grande maioria dos eventos, os elementos negativos são os predominantes, Cioran então pergunta qual a necessidade — qual a razão ou motivo — de adicionarmos mais eventos? A história é uma Odisseia fútil, nas palavras de Cioran. Ela não tem desculpa para existir. Até mesmo a arte é culpada, pois produzir qualquer coisa nos torna cúmplices de eventos que são terríveis quando consideramos a predominância de elementos negativos em absolutamente tudo o que nos toca.

Não há salvação na história, ela não passa de uma apoteose de aparências, segundo Cioran. Ele imagina a possibilidade de haver um homem pós-histórico, completamente inócuo e sem tarefas, sem direção, sem ânsia por um destino qualquer. Ele menciona Gibbon, escritor célebre que narrou os eventos do declínio e queda do império romano, e pensa na possibilidade de um futuro escritor narrar o fim não de um ciclo histórico dentre outros, mas de todos os ciclos. Este futuro Gibbon estaria cercado — na realidade, faria parte — de uma humanidade inerte, liberta para sempre da loucura que a fez acreditar na sua nobreza e divindade. Para Cioran, o que nos arruinou foi nossa sede por um destino, o que nos joga na história, em busca de destinos possíveis, todos irrealizáveis, irônicos e trágicos.

O último ensaio desta primeira parte do livro chama-se “Urgência pelo pior”. Aqui, Cioran teoriza sobre uma ânsia pela catástrofe, que estaria latente em cada ser humano.¬ Esta ânsia pelo pior, pelo fim, estaria ainda mais presente na contemporaneidade, porque, ao contrário do que ocorria em eras passadas, onde a crença no fim do mundo também era presente — os cristãos esperam a Parousia desde a geração dos Apóstolos —, nós temos a plena capacidade de destruir a humanidade sem necessitarmos do auxílio divino. Não precisamos esperar por nada, só pela nossa vontade: “Por qual processo, depois de tantos séculos tranquilizadores, encontramo-nos no limiar de uma realidade que somente o sarcasmo torna tolerável?” (CIORAN, 1990) Respondendo à sua própria questão, Cioran escreve que, desde o Renascimento, a humanidade têm se esquivado do significado principal de seu progresso: há um princípio mortal que se manifesta dentro deste progresso, uma vontade de morte, de retorno ao inconsciente que os animais e as plantas conhecem tão bem.

Depois do Renascimento, o período do Iluminismo também contribuiu bastante com a obnubilação da humanidade. O século seguinte ao Iluminismo — o XIX — trouxe consigo a idolatria do futuro, confirmando, segundo Cioran, as ilusões do século anterior. Ele escreve que, mesmo na segunda metade do século XX, uma época vazia de promessas grandiosas, o futuro continuava a nos oferecer promessas ilusórias. Se os europeus daquela época estavam mais cautelosos com a idolatria do futuro, tal cautela se dava por causa do medo — afinal, naquela altura do século XX, eles estavam saturados de promessas grandiosas que trouxeram desgraças ainda maiores; basta lembrarmos das grandes guerras e dos regimes injustos, autoritários e totalitários que marcaram o século. Sobre a saturação dos ocidentais daquela época, ele escreve: “Isso é porque nós agora sabemos que o Futuro é compatível com o atroz, que inclusive nos leva até ele, ou, pelo menos, que é capaz de trazer prosperidade e horror com a mesma facilidade.” (CIORAN, 1990) Mas, ao mesmo tempo em que os homens transformam o futuro em um ídolo, eles também o temem — e, ao mesmo tempo em que têm pavor dele, perversamente o desejam. Em Cioran, encontramos uma reflexão da psicologia animalesca e sombria do humano. Ele escreve:
Já que em nós acordou o mal que estava adormecido no resto dos seres vivos, é nossa tarefa destruir-nos para que eles possam ser salvos. As virtualidades da dilaceração e do conflito que os outros contém tornaram-se reais e concentradas em nós, e é através de nossas custas que libertamos as plantas e animais dos elementos mortais que permanecem dormentes dentro deles. Um ato de generosidade, um sacrifício ao qual consentimos apenas para nos arrependermos dele e repreendermos a nós mesmos. Ciumentos da inconsciência deles, a base de sua salvação, nós seríamos como eles são, e furiosos por não conseguirmos nos tornar assim, meditamos a sua ruína, nos esforçamos em torná-los interessados em nossos infortúnios para que possamos nos vingar deles. É dos animais que nos ressentimos acima de tudo: o que nós não daríamos para arrancar deles o silêncio, convertê-los à linguagem, infligir neles a abjeção da fala! Estando proibido o encanto de uma existência como tal, não podemos tolerar que outros gozem dela. (CIORAN, 1990)
Tudo aquilo que existe sente o peso do tempo: átomos, pedras, animais e plantas. Mas só o homem — um tipo diferenciado de animal — é amaldiçoado com o peso da história, uma espécie de bastardização do tempo. O animal humano, para Cioran, é um desertor da inocência que habita nos outros animais. Por mais brutal que sejam as vidas deles na natureza, eles não possuem consciência disso. Eles não entendem, de uma maneira reflexiva e profunda, o inferno que habitam. Nós entendemos esse inferno e criamos outro ainda pior, particular à nossa espécie — a esse inferno chamamos de história. Invejamos os animais por conta de sua inocência, invejamos as plantas pela sua tranquilidade. Porém, temos uma inveja ainda maior dos deuses, por serem conscientes sem sofrerem por isso, enquanto que, para nós: “[...] consciência e naufrágio se confundem [...]” (CIORAN, 1990)

O resto do livro é composto por aforismos que tratam de diversos assuntos. Citarei aqui alguns deles, relevantes ao tema da história, do mito do progresso e da relação do humano com o tempo e o infortúnio de ter sido arrancado do nada e jogado no tempo, apenas para repetir o que já foi feito incontáveis vezes:

• Existir é um plágio.

• De acordo com a Cabala, do momento que um ser humano é concebido, ele carrega dentro do ventre de sua mãe um sinal luminoso que se extingue ao nascer...

• As indagações de Édipo, sua busca incansável pela verdade, sem considerações e sem escrúpulos, a obstinação que mostrou sua própria ruína, nos recordam o caminho e o mecanismo do Conhecimento, uma atividade eminentemente incompatível com o instinto de conservação.

• No zoológico, todos os animais se comportam decentemente salvo os macacos. Percebe-se que o homem não está longe deles.

• Segundo Orígenes, apenas as almas dadas ao mal, “por terem as asas quebradas”, habitam um corpo novamente. Em outras palavras, sem um apetite maligno, nenhuma encarnação, nenhuma história. Evidência terrível que se torna tolerável quando a rodeamos com alguma terminologia teológica.

• Todo ato de coragem é obra de homens desequilibrados. Animais, normais por definição, são sempre covardes, salvo quando eles sabem que são mais fortes, o que é a própria covardia em si.

• Se as coisas tendessem para o melhor, os velhos, furiosos por não poderem aproveitar-se desta situação, morreriam de aborrecimento. Felizmente para eles, o curso da história, desde seu começo, os tranquiliza — permite-lhes deixar este mundo sem o menor sinal de inveja.

• Qualquer um que fale a língua da utopia me é mais estranho do que um réptil de outra era geológica.

• A ilusão engendra e sustenta o mundo; nós não a destruímos sem destruí-lo. É o que faço todos os dias. Uma tarefa inútil, visto que preciso recomeçar tudo de novo no dia seguinte.

• O tempo está corroído por dentro, exatamente como um organismo, como tudo o que é contaminado pela vida. Falar do Tempo é falar de lesão, e que lesão!

• Ser é estar encurralado.

• Você ousou chamar o Tempo de “irmão”, tomar por aliado o pior dos torturadores. Sobre isto, nossas diferenças explodem: você anda em compasso com o Tempo, enquanto eu procedo ou me arrasto atrás dele, nunca adotando suas maneiras, incapaz de pensar nele sem experimentar algo como uma mágoa especulativa.

• Penso mais do que deveria nas emoções de um pagão depois da conversão de Constantino. Minha vida é um medo perpétuo dos dogmas, dos dogmas nascentes. Dogmas em declínio, por outro lado, deleitam-me, pois eles perderam sua agressividade. Porém, sabendo que eles estão ameaçados, não consigo me esquecer que é a sua deliquescência que está preparando o advento de um mundo que temo. E a simpatia que eles inspiram em mim acaba por alimentar o meu terror...

• Minha paixão pela história é derivada do meu bom olfato para o decrépito e do meu apetite pelo desperdiçado.

• Somos e permanecemos escravos enquanto não estamos curados da esperança.

• Quando vejo alguém lutar por uma ou outra causa, tento entender o que se passa em sua cabeça e qual pode ser a fonte desta óbvia falta de maturidade. A rejeição da resignação talvez seja um sinal de “vida”, mas nunca de perspicácia ou simplesmente de reflexão. O homem são nunca se rebaixa ao protesto. Ele raramente consente à indignação. Levar os assuntos humanos a sério atesta para uma falha secreta.

• Aqueles obcecados pelo pior, nós os ressentimos apesar de reconhecermos a precisão de suas apreensões e advertências. Somos muito mais complacentes com aqueles que estiveram errados, porque nós supomos que sua cegueira foi fruto do entusiasmo e da generosidade, enquanto que os outros, prisioneiros de sua lucidez, seriam apenas covardes, incapazes de assumirem o risco de uma ilusão.

• De acordo com o Talmude, os impulsos maus são inatos e os bons aparecem quando completamos treze anos... Esta especificidade, apesar do seu caráter cômico, possui uma certa verossimilhança, revelando a timidez incurável do Bem frente ao Mal, tão confortavelmente instalado em nossa substância que aproveita os privilégios conferidos à sua qualidade de primeiro ocupante.

• As únicas conversas rentáveis são aquelas com entusiastas que deixaram de sê-lo — com o ex-ingênuo... Finalmente tranquilos, eles deram, por bem ou por mal, o passo decisivo em direção ao Conhecimento — aquela versão impessoal do desapontamento.

• Não é o instinto de auto-preservação que nos move, é apenas a impossibilidade de vermos o futuro. Vê-lo? De o imaginarmos, apenas. Se nós soubéssemos o que nos espera, ninguém tentaria resistir. Mas já que todo desastre futuro permanece abstrato, é difícil assimila-lo. Aliás, nós nem sequer o assimilamos quando ele se abate sobre nós e nos substitui.

• Que loucura, prestar atenção na história! Mas, o que fazer quando você foi trespassado pelo Tempo?

• Aquele velho filósofo, quando queria despachar alguém, tachava-o de “pessimista”, como se estivesse dizendo “bastardo”. Para ele, um pessimista é qualquer um averso a utopia. É desta forma que ele qualificava todo inimigo de miragens.

• O Tempo não apenas corrói tudo aquilo que vive, mas também a si mesmo, como se, cansado de continuar e exasperado pelo Possível, sua melhor parte, aspirasse a extirpa-lo.


Por Fernando Olszewski