Cloroquina de Jesus: uma reflexão sobre as injustiças históricas no Brasil, parte II

Estamos caminhando para o final de maio e passando dos mil mortos por dia de Covid-19 no país, segundo os dados oficiais. Porém, sabemos que há mais pessoas morrendo do que os dados mostram, visto que ocorreu um aumento pavoroso no número de óbitos em decorrência de síndromes respiratórias sem causa identificada — e, como não testamos nem os vivos e nem os mortos em números suficientes, ficamos no escuro. O segundo ministro da saúde do governo Bolsonaro, Nelson Teich, deixou seu posto depois de 28 dias, provavelmente preocupado em ter seu registro cassado caso ele concordasse com o presidente da república e recomendasse o uso da hidroxicloroquina para pacientes com o novo coronavírus. No seu lugar, colocaram um general que já liberou a droga.

Feitor punindo um escravo, pintura de Jean-Baptiste Debret

Antes mesmo de Teich pedir para sair, o Ministério da Saúde já estava sendo aparelhado por membros das forças armadas sem preparo algum para lidar com esse tipo de situação. É sabido por todos que Teich nunca decidiu absolutamente nada durante os dias em que foi ministro da saúde. Ele entrou lá apenas para tapar o buraco de Mandetta.

A esta altura dos acontecimentos, é possível externar algumas coisas com precisão. Uma delas é que o presidente é inepto e tem tendências ditatoriais. Além disso, ele é cercado de obscurantistas que, por sua vez, são mal informados por pseudo-intelectuais propagadores do obscurantismo. Aqueles cidadãos que ainda apoiam a atual administração — total ou parcialmente —, o fazem por serem tão ineptos e obscurantistas quanto os membros do governo. Já aqueles que eram esperançosos de que os militares trariam alguma estabilidade ao governo, tutelando as loucuras do presidente, estavam completamente errados. Os generais e oficiais que o cercam aparentam ser tão ineptos e obscurantistas quanto figuras como Abraham Weintraub e Ernesto Araújo.

A grande questão é que os obscurantistas que acabam dando apoio a este governo, e a outros como ele ao redor do mundo, não são poucos. No caso do Brasil, ainda que diversos eleitores do atual presidente tenham se arrependido do seu voto e ainda que a maioria do eleitorado não tenha votado nele — quando somamos os votos do seu opositor com os votos em branco, nulos e as abstenções —, seria ingenuidade afirmar que não existem algumas dezenas de milhões de brasileiros que o apoiam e apoiariam qualquer outro personagem obscurantista e autoritário. Estes são os dados brutos da realidade planetária: estamos cercados por insensatos que, em meio a uma crise sanitária devastadora, preferem agarrar-se a convicções infundadas ao invés de seguir o que o consenso científico aconselha.

Muito pode ser dito sobre os erros da ciência contemporânea, mas essas críticas podem ser qualificadas ou até rebatidas, dependendo da maneira que são abordadas. A razão instrumental — que não é exatamente o mesmo que a razão científica, mas se uniu à ela na forma da tecnociência contemporânea — produziu armas nucleares e outros horrores inimagináveis, é verdade. Contudo, o método científico contemporâneo pode ser encarado como apenas isto: um método. O que fazemos com ele é do âmbito das humanidades, da ética. Quando os pesquisadores das áreas da medicina e da biologia afirmam que um vírus letal está circulando e que devemos tomar medidas de isolamento para que os sistemas de saúde do mundo não entrem em colapso, eles estão fazendo uma previsão fria da realidade. Não há valoração nesta afirmação.

É claro que a maior parte desses pesquisadores também faz a seguinte valoração: é ruim que vidas sejam perdidas em uma pandemia, especialmente quando podemos colocar em prática políticas públicas para que a perda de vidas seja minimizada. Poderíamos promover o isolamento social e auxílio do Estado para os mais vulneráveis, por exemplo. Mas essa não é toda a história, infelizmente. Há um outro lado, o lado do negacionismo científico e do obscurantismo. Temos uma minoria significativa de dezenas de milhões de pessoas que acreditam cegamente que o consenso científico está errado ou, pior, mentindo. Na cabeça delas, a pandemia e o isolamento seriam pretextos para quebrar a economia do país e do mundo. Segundo esses obscurantistas, o Estado, por algum motivo que eles não sabem explicar direito, seria incapaz de auxiliar os vulneráveis, muito embora esse mesmo Estado seja capaz de dar trilhões aos bancos para que eles tenham liquidez.

Há um quê de fantasia conspiratória e pensamento mágico nesse tipo de raciocínio, se é que podemos chamá-lo de raciocínio. Os que pensam dessa forma são adeptos de crenças sem fundamentos, crenças que afirmam a existência de agentes sinistros, que trabalham nas sombras, manipulando determinados acontecimentos importantes. De acordo com essa ideia mirabolante, tais agentes macabros seriam capazes de controlar tudo como um artista de circo controla suas marionetes. O objetivo deles seria lucrar com a desgraça do povo de bem.

O bizarro é que esse tipo de mentalidade é sempre acoplada à crença de que o sistema político defendido pelos tais "agentes sinistros" é naturalmente fadado ao fracasso ou, no mínimo, extremamente ineficiente. Muitos de nós já escutamos ou lemos teorias ridículas sobre como regimes de inspiração marxista são, ao mesmo tempo, extremamente ineficientes e capazes de orquestrar conspirações diabólicas infalíveis, o que é impossível: ou se é extremamente ineficiente ou se é capaz de orquestrar conspirações infalíveis. Isso também acontece do outro lado do espectro político. É possível encontrar pessoas que afirmam que os donos do grande capital são capazes de por fim a todas as revoluções populares, mas que tais posturas não adiantarão no final porque o sistema caminha inexoravelmente para o fracasso. Ou seja: os capitalistas são eficazes o suficiente para acabar com todas as revoluções, mas as forças do sujeito histórico proletário terminariam por destroçá-los.

O inimigo é sempre visto como uma besta destinada à ruína mas, ao mesmo tempo, um gênio maligno capaz de orquestrar as mais diabólicas conspirações contra a justa causa, seja ela qual for. Há que se analisar outra possibilidade, a de que a história humana seja só uma sucessão de momentos que apenas nos dão a impressão de estarmos indo para algum lugar. O que chamamos de progresso, sob essa perspectiva, é apenas um conjunto de novidades que nos dão a impressão de rumo. Contudo, essas novidades pouco mudam a essência do que somos e a natureza de nossas mais profundas aflições.

Mesmo assim, ainda que tomemos como correta a hipótese de um niilismo histórico, há aqueles indivíduos e grupos que tentam melhorar a nossa condição, baseando-se em determinados objetivos traçados por eles ou por outros. Existem pessoas que, mesmo dentro desta condição decadente e mortal a qual fomos todos jogados, trabalham visando a emancipação humana ou a melhora na qualidade de vida de todos. Alguém poderia negar que determinadas sociedades nos últimos cem anos ao menos tentaram? Ainda que certas tentativas tenham terminado em estrondosos fracassos, não podemos fingir que elas não foram feitas, nem fingir que há em muitos de nós uma ânsia por algo melhor do que a vida que vivemos. A civilização brasileira, porém, dificilmente poderia ser encaixada dentro do grupo de sociedades que tentaram seriamente mudar para melhor, ainda que em certos aspectos o Brasil tenha se desenvolvido bastante.

Geopoliticamente falando, o continente americano foi construído em cima dos corpos de milhões de mortos e escravizados. Os habitantes das Américas vivem no palco de um dos maiores genocídios da história humana, talvez o maior. Ele se estende do extremo norte até a ponta da América do Sul. Quando atentamos para o caso particular do nosso país, somados ao genocídio e escravidão, tivemos a ignorância, que foi política de Estado desde quando a coroa portuguesa proibiu universidades na sua colônia. De acordo com a política adotada por Portugal, estas terras não eram para serem habitadas, mas sim estupradas e roubadas. Foi na América espanhola que surgiram as primeiras universidades do continente, ainda no século XVI, apesar das colônias espanholas também terem sido violadas e saqueadas — e apesar delas terem acabado subdesenvolvidas e pobres como as colônias portuguesas. O Brasil só foi ter uma instituição universitária depois da chegada da família real e da corte portuguesa, no século XIX.

Ainda que ter tido universidade durante o período colonial não seja condição suficiente para que um país possa ser considerado desenvolvido hoje em dia, não ter havido nenhuma certamente não é um bom sinal. E isso é só um detalhe, um fator acessório, digamos. A grande marca da nossa formação nacional foi a escravidão e subjugação de povos não-europeus. Sobre esse ponto, a leitura da obra de Gilberto Freyre feita pelo sociólogo contemporâneo Jessé Souza nos apresenta alguns do mais importantes e perniciosos aspectos do nosso desenvolvimento como um povo. Temos uma inegável herança escravocrata, racista e patriarcal que perpassa toda a nossa sociedade, quer admitamos isso ou não. Ainda que nosso racismo e elitismo tenha se desenvolvido de forma distinta do racismo e elitismo que existem em um lugar como os Estados Unidos, nós somos um país de cultura extremamente racista e temos um enorme preconceito para com as classes baixas.

Como argumenta Jessé, quando deixamos de lado as valorações e romantizações da obra de Freyre, quando focamos apenas nos aspectos empíricos, podemos começar a construir a imagem de nossa formação sem a alusão a mitos de uma continuidade com a nação lusitana e "heranças malditas". Portugal hoje é um país capitalista desenvolvido, avançado, com alto padrão de vida e uma certa rede de proteção social para seus cidadãos. Isso tudo veio poucas décadas depois do fim do salazarismo e todo o atraso que ele promovia. A ideia de que o Brasil tem "heranças malditas" e que por isso o seu povo que nunca dará certo advém de mitos sem fundamentos que caracterizam um dos pilares de nossa civilização, o português, como intrinsecamente problemático, assim como também seriam o índio e o negro.

Mas não existem maldições nas formações das sociedades, assim como não existem maldições de verdade na vida de ninguém. Nossa sociedade violenta, patriarcal, racista e corrupta se explica, em grande parte, através da nossa formação concreta, uma formação que se deu através de determinados processos históricos peculiares. Todas as nações que existem passaram por longos processos históricos para se tornarem o que são, desde as mais desenvolvidas e com maior qualidade de vida até as menos desenvolvidas. Não há mágica e nem maldições atuando para tornar alguns países piores e outros melhores.

Vejamos uma narrativa de como se deram alguns desses processos no nosso país. Trabalhando em cima do pensamento do sociólogo alemão Norbert Elias, Jessé Souza afirma que o Brasil colonial se assemelhava — embora não fosse igual — a Europa do período anterior à baixa Idade Média:
A forma social anterior, no entanto, a sociedade guerreira medieval, como descrita por Elias, é em muitos aspectos semelhante à brasileira colonial como vista por Gilberto Freyre. Antes de tudo, pelo caráter autárquico do domínio senhorial condicionado pela ausência de instituições acima do senhor territorial imediato. (SOUZA, 2017)
A respeito das características de nossa sociedade colonial, Jessé continua:
No caso da sociedade colonial brasileira, o isolamento social era ainda maior pela ausência de relações de vassalagem, as quais, ao menos em tempo de guerra, exigiam prestação de serviços e, portanto, a manutenção de um mínimo de disciplina necessária à empresa militar. Estamos lidando, no caso do escravismo brasileiro, na verdade, com um conceito limite de sociedade, onde a ausência de instituições intermediárias faz com que o elemento familístico seja seu componente principal. Daí que o drama específico dessa forma societária possa ser descrito a partir de categorias sociopsicológicas cuja gênese aponta para as relações sociais ditas primárias.
    É precisamente como uma sociedade constitutiva e estruturalmente sadomasoquista – no sentido de uma patologia social específica, onde a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer transformam-se em objetivo máximo das relações interpessoais – que Gilberto Freyre interpreta a semente essencial da formação brasileira. Freyre percebe, claramente, que a direção dos impulsos agressivos e sexuais primários depende “em grande parte de oportunidade ou chance, isto é, de influências externas sociais. Mais do que predisposição ou de perversão inata”. (SOUZA, 2017)
Podemos extrair o seguinte: no Brasil colônia, havia um tipo de organização social pautada nos senhores das terras. Esses senhores, originalmente portugueses, muitas vezes vinham para cá sem família. Eles precisaram se utilizar de uma plasticidade cultural e moral que não existia nem mesmo na América espanhola. Até mesmo aqueles senhores que traziam mulheres europeias, ainda assim acabavam tendo relações com índias e escravas negras, relações das quais nasciam filhos mestiços ilegítimos. Tudo isso, que na Europa seria impensável, era lícito quando o que importava era popular a colônia com súditos leais da metrópole.

Diferentemente da América inglesa, onde o que importava era sempre a origem, portanto um senhor branco que tivesse filhos mestiços dificilmente seria capaz de dar uma vida melhor a eles, no caso do Brasil colônia, os senhores detinham um poder quase que absoluto de vida e morte dentro de suas terras. Ele era a lei e exercia seu poder sem estar preso a relações de vassalagem, como os senhores-guerreiros da alta Idade Média, e sem a necessidade de constante prestação de contas com um Estado próximo. O rei de Portugal e sua corte estavam muito longe para implicar com senhores poligâmicos que tinham dezenas de filhos fora do casamento com índias e escravas. Apesar disso, não havia nenhuma utopia de igualdade social ou racial por aqui, longe disso:
Sem dúvida, a sociedade cultural e racialmente híbrida de que nos fala Freyre não significa, de modo algum, igualdade entre as culturas e “raças”. Houve domínio e subordinação sistemática, melhor, ou pior no caso, houve perversão do domínio no conceito limite do sadismo. Nada mais longe de um conceito idílico ou róseo de sociedade. Foi sádica a relação do homem português com as mulheres índias e negras. Era sádica a relação do senhor com suas próprias mulheres brancas, as bonecas para reprodução e sexo unilateral de que nos fala Freyre. Era sádica, finalmente, a relação do senhor com os próprios filhos, os seres que mais sofriam e apanhavam depois dos escravos.
[...]
As consequências política e social dessas tiranias privadas, quando se transmitem da esfera da família e da atividade sexual para a esfera pública das relações políticas e sociais, tornam-se evidentes na dialética de mandonismo e autoritarismo de um lado, mais precisamente no lado das elites, e no abandono e no desprezo das massas por outro. Dialética essa que iria, mais tarde, assumir formas múltiplas e mais concretas nas oposições entre doutores e analfabetos, grupos e classes mais europeizadas e as massas ameríndia e africana, e assim por diante. (SOUZA, 2017)
A partir de reflexões como essas, Jessé Souza diz ser possível escrever toda uma genealogia de nossa sociedade, inclusive das classes médias. Através de um longo processo de transmissão e transformação cultural intergeracional, as classes médias dos séculos XIX, XX e XXI herdaram o papel do capataz mestiço e raivoso dos senhores, agora transformados na figura da elite sócio-econômica. Seus membros mais conservadores tentam a todo custo preservar uma distância dos setores mais pobres, identificando-se com a elite que os domina e explora ao invés de perceber que estão muito mais próximos das massas populares — em boa parte dos casos, estão próximos dos pobres até mesmo na aparência física, pois são mais ou menos mestiços, diferentemente da elite, que ainda é quase que totalmente branca.

Para concluir as citações do Jessé, vale a pena destacar uma das mais impactantes passagens de seu livro, A elite do atraso:
O grande pensador do processo civilizatório, Norbert Elias, analisou o processo europeu destacando, como ponto principal, não por acaso, o corte com a escravidão do mundo antigo. Na cabeça do grande sociólogo estava a crença de que o processo civilizador baseia-se na percepção e consideração da alteridade, de um “outro” que tem que ser respeitado. Elias interpreta a culpa freudianamente como o estopim da moralidade, como a base de um processo que leva ao Estado moderno e à democracia. E quando não se tem culpa no exercício da violência material e simbólica contra os mais frágeis, por que se considera que sejam sub-humanos, escravos e indignos de serem tratados e reconhecidos como humanos? Essa é a principal herança da escravidão para o Brasil moderno. Uma herança que foi tornada invisível e, portanto, nunca conscientizada.
    Como tamanha naturalização de um ódio tão mesquinho foi possível entre nós? Essa é a grande questão brasileira do momento. Nenhuma outra se compara a ela em magnitude e urgência. (SOUZA, 2017)
O leitor pode se perguntar: "mas o que isso pode ter a ver com a devastação que a Covid-19 está causando no Brasil e com a questão da cloroquina?" Tentarei explicar. A questão da cloroquina como um remédio milagroso é mais um engodo — imensamente cínico, diga-se de passagem — inventado pelos donos do poder para apaziguar a imensa massa de trabalhadores pobres e miseráveis que existem no Brasil. Os apoiadores do atual governo chegaram a inventar um jingle ridículo ao ritmo de Florentina do palhaço Tiririca: "Cloroquina, cloroquina, cloroquina lá do SUS, eu sei que ela me cura, em nome de Jesus". A insistência num remédio que não possui comprovação científica, pelo contrário, é mais uma mentira criada por aqueles cujo dogma afirma que "o povão tem que trabalhar e não ser sustentado".

Os fiéis dessa religião política acham moralmente justo que os pobres se exponham a todo e qualquer risco para produzir riquezas para as elites. Se tem uma coisa que ficou exposta na atual conjuntura é que elas não sobrevivem sem extrair sangue e suor dos trabalhadores. Mas, enquanto os pobres se expõem, os ricos podem se isolar, visto que pouco trabalham, vivem de renda, de heranças e, nos raríssimos casos em que ficaram ricos pelo "próprio esforço", tiveram a sorte de ter uma conjuntura que os favoreceram — e no final das contas esses ricos "merecedores" tornam-se iguais aos outros donos de meios de produção: vivem às custas do trabalho alheio. Mesmo um bilionário que administra seus investimentos não trabalha, ao contrário do que se acredita. Ele é dono. O fato dele acompanhar seus negócios e movimentar seu capital do conforto de um escritório ou da própria mansão não o torna um trabalhador.

Normalmente, a realidade já escancara a inferiorização das classes mais baixas. Agora, na pandemia de Covid-19, esta inferiorização está ainda mais evidente. Não se pode mais negar que uma minoria da população têm oportunidades que os descendentes da maioria pobre, mestiça, índia e negra jamais teve. A cloroquina é uma espécie de "solução qualquer" das elites e das classes médias (cães de guarda das elites) para que os pobres voltem a produzir riquezas para os donos dos meios de produção, enquanto ganham miséria e dão suas vidas em troca. É assombroso o uso da religião, ainda mais daquelas que pregam o Evangelho da Prosperidade, para embasar um medicamento que pode ser prejudicial aos pacientes de Covid-19. Há um uso nada sagrado da fé, um uso político, que visa o controle social e econômico da grande maioria de desafortunados.

Dizer que nada é sagrado no Brasil é um exagero da minha parte, uma hipérbole. Ainda há coisas sagradas por aqui. Mas essa hipérbole serve para enfatizar que uma parcela significativa dos brasileiros está cega de anti-ideais. Essa parcela de fanáticos boçais não se importa com o fato da hidroxicloroquina não ter nenhuma eficácia contra o novo coronavírus, não se importa que este medicamento tem sérias contraindicações. O que importa, para eles, é que obedeçamos aos donos do poder. Eles também não se importam com Ághata Felix, menina de 8 anos que morreu assassinada por policiais há menos de um ano, nem com João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, que morreu fuzilado na casa de familiares durante uma operação da polícia, numa favela do Rio de Janeiro.

E você não precisa ser bolsonarista para não se importar. Pessoas como Luciano Huck acham um absurdo a ideia de mudarmos os impostos regressivos que temos no Brasil, onde quem menos tem condições paga uma carga tributária maior do que os mais ricos. Esses multimilionários e bilionários brasileiros são contra impostos sobre grandes fortunas, mas não se importam que no Brasil tenhamos "impostos sobre grande pobreza", algo que não existe em nenhum outro país do mundo, mesmo outros muito desiguais. Enquanto nossos ricos esbravejam contra a ideia de pagarem mais impostos, fazem um silêncio ensurdecedor na hora de comentarem as mortes de crianças e adolescentes pobres, negras e mestiças.

Se Ághata ou João Pedro fossem loiros de olhos claros e morassem na zona sul do Rio ou em um bairro nobre de São Paulo, o país entraria em convulsão. Se a festa de rua de Paraisópolis fosse em um bairro nobre de São Paulo, a polícia jamais teria entrado e causado um grande pânico que permitiu a morte de 8 jovens pisoteados. O exército brasileiro nunca dispararia mais de 80 tiros em cima do carro de um bacana no Leblon ou em Ipanema, como fez com o carro do músico Evaldo Rosa, matando ele e o catador Luciano Macedo. Esse tipo de coisa só acontece com os pobres porque, no Brasil, passamos por um longo processo histórico que produziu uma sociedade na qual existe a crença de que as vidas dos pobres, dos negros, dos índios e dos mestiços é descartável.

Se todas essas vítimas fossem de classe média alta ou rica, os responsáveis responderiam na justiça, diferentemente de todos os casos que mencionei. Em alguns deles, os responsáveis foram promovidos. Os seres humanos que a nossa civilização brasileira enxerga como sendo descartáveis e indesejáveis o suficiente para tomar tiro das forças de segurança do Estado são os mesmos que ela acha que devem se expor mais ao coronavírus: os que estão na parte de baixo, sustentando o luxo dos que estão por cima.
Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo depois de nascido e criado, depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado do menino Brás Cubas na malvadez e no gosto de judiar com negros. Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo o menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata. (FREYRE, 2003)

Por Fernando Olszewski

Referências:
. SOUZA, Jessé José Freire de. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Recife: Global Editora, 2003.
. País tem história universitária tardia (Unicamp)
. Entenda como foi a morte da menina Ágatha no Complexo do Alemão (G1)
. 80 tiros: STM decide soltar militares presos por mortes de músico e catador (UOL)
. João Pedro, 14 anos, morre durante ação policial no Rio, e família fica horas sem saber seu paradeiro (El País)