Às vezes um louco é só um louco

Depois da vitória de Jair Bolsonaro em 2018, Silas Malafaia realizou um culto na sua igreja com a presença do presidente eleito. A cena tornou-se icônica dos tempos sombrios nos quais vivemos. Ao lado de Bolsonaro, o pastor disse, com sua voz inconfundível, que Deus enviou as coisas loucas para confundir as sábias. Ele também disse que Deus escolheu as coisas vis e desprezíveis para que nenhuma carne se glorie diante dele. Mas Bolsonaro não é o único asno capaz de grande estrago que foi alçado à posição de "mensageiro louco" de Deus. Antes dele ganhar a projeção que tem, veio uma espécie de João Batista da direita louca brasileira. Falo aqui de Olavo de Carvalho.

Alegoria do triunfo de Vênus (detalhe), pintura de Agnolo Bronzino


Não é segredo que já me considerei liberal, e da espécie mais rara da fauna brasileira: não era "liberal na economia e conservador nos costumes", como se diz tipicamente e burramente. Amigos próximos e os meus raríssimos leitores sabem disso. Contudo, mesmo os poucos que me acompanham há bastante tempo talvez fiquem espantados com esta informação: antes de cair para o lado do liberalismo, flertei por um tempo com a direita olavista — ou, melhor dizendo, direitas obscurantistas do mesmo estilo que a dele; é bom que se saiba que o tipo de pregação que Olavo faz é apenas uma cópia de muitas outras, tão toscas quanto, importadas dos Estados Unidos, principalmente.

Não deveria ser espanto algum um sujeito privilegiado e branco como eu ter comprado discursos ridículos que apelem aos preconceitos basais da sociedade brasileira. Vivemos em um mundo tão complexo e doido que até muitos dos humanos mais oprimidos aderem à ideia de que merecem a situação de submissão social e econômica na qual se encontram. O fenômeno do "pobre de direita" não é algo novo, apesar dele ter ficado em evidência no Brasil nos últimos anos. Tal coisa existe desde sempre e em todos os lugares. Exemplos recentes e contemporâneos não faltam, da Alemanha hitlerista até os Estados Unidos do século XX e XXI — especifico o período porque ainda existiam movimentos de trabalhadores com viés anticapitalista nos Estados Unidos até o final do século XIX e início do XX, mas eles foram quase que completamente extintos no começo do XX, algo que Noam Chomski costuma lembrar em várias de suas palestras e entrevistas.

Aliás, na própria Alemanha do começo do século passado existiam fortes correntes social-democratas, socialistas e comunistas, mas elas foram dizimadas violentamente com a ascensão ao poder do maior fracassado austríaco da primeira metade do século XX. Nunca devemos subestimar a questão do fracasso quando falamos de pessoas reacionárias e de extrema-direita, sejam elas travestidas do que for. O caso dos "jovens" influenciadores da direita brasileira que utilizam nomes fictícios — "Winter", "Coppola", "Morgenstern" — diz muito aos observadores atentos. Há uma necessidade de escape, principalmente para o reacionário oriundo de um país capitalista pobre e submisso, como é o caso do Brasil. No caso dos reacionários brasileiros brancos, então, a coisa piora ainda mais: é caso para anos de terapia ou um belo choque de realidade, e mesmo assim é difícil a pessoa acordar e perceber que defende um monte de asneiras.

Como bem argumenta Jessé Souza ao analisar obras clássicas da sociologia brasileira, como Casa grande e senzala, nascemos em uma sociedade que foi historicamente moldada pela escravidão e toda a crueldade e desumanização inerente à ela. Querendo ou não, estamos conectados a isso tudo através do tempo e das influências que nos cercam desde a infância, ainda que elas muitas vezes sejam sutis. É por essa razão que é tão difícil fazer com que pessoas brancas — digo, pessoas que na sociedade brasileira são tidas como brancas, mas que em muitos casos não seriam consideradas brancas em países da América do Norte ou Europa — de classe média (ou rica) entendam que elas não fazem a menor ideia do que é crescer negro no Brasil. Pior ainda, elas não têm a menor noção do que é crescer preto e pobre na nossa sociedade.

É preciso especificar "preto e pobre" e não utilizar apenas o "pobre", porque muitos brancos de classe média (ou rica) tiveram ou ainda têm parentes mais pobres, que "ralaram" — o que muitas vezes piora a situação, visto que brancos utilizam essas pessoas como exemplo, sem entender que, numa sociedade racista, é muito mais fácil um branco pobre ascender do que um negro. Agora, sobre a questão de saber ou não o que é crescer preto e pobre no Brasil, não tenho ideia de como seja. Ao menos, depois de passar muito tempo na ignorância e no achismo,  hoje sei que não tenho ideia. Em termos experienciais, ninguém que não tenha vivido a coisa na pele pode saber. A única coisa que é possível ter alguma noção, ainda que vaga e indireta, é que ser uma pessoa negra em uma sociedade como a nossa é uma experiência repleta de revezes. Basta pegar as fartas estatísticas sobre a violência no Brasil: é como se negros e não-negros — incluindo aqui descendentes de europeus, asiáticos e outros  vivessem em países diferentes, visto que os negros sofrem muito mais violência de todo tipo.

O que tentei passar nos últimos parágrafos é uma breve e incompleta imagem de como que é fácil para alguém privilegiado repetir as faltas históricas que uma sociedade como a nossa carrega. Nossa sociedade nunca lidou seriamente com legados difíceis. Não foi só com a ditadura militar que nós nunca acertamos a conta, mas com a escravidão dos africanos e seus descendentes, com o genocídio indígena, com a exploração dos trabalhadores. Nunca acertamos as contas com nenhuma dessas graves faltas, portanto é extremamente cômodo para alguém que possui um privilégio reproduzir discursos que justifiquem seu privilégio: é cômodo para o rico justificar o trabalhador ser explorado; é cômodo para a classe média justificar a pobreza extrema; é cômodo para o branco inferiorizar o negro; e é cômodo para o homem maltratar a mulher. Contudo, por mais que privilégios sejam coisas difíceis de serem percebidas e mudadas, por mais que eles estejam entranhado em nós, em mim, e sejam fáceis de serem reproduzidos, isso não nos desculpa.

É aqui que entra Olavo de Carvalho e tipos como ele. As loucuras anti-vacinas, geocentristas e terraplanistas, propagadas por reacionários anti-iluministas como Olavo de Carvalho, são apenas a calda em cima do bolo de esterco que eles vendem. O grosso da mensagem que eles passam é: "o mundo deve ser hierarquizado da forma como nós achamos correta." Todos, invariavelmente, defendem conceitos extremamente reacionários de hierarquia social e econômica, conceitos racistas, sejam eles explícitos ou não, e elitistas — e muitos desses conceitos hierárquicos defendidos por eles baseiam-se em ideias há muito desbancadas, como o direito divino dos reis.

Os argumentos usados para justificar o genocídio indígena, a escravidão dos africanos e a exploração absurda da classe trabalhadora já foram destrinchados e refutados à exaustão ao longo dos últimos duzentos anos, porém ainda se insiste em justificar tais coisas, por mais que isso seja impossível. É por isso que Olavo de Carvalho e tipos como ele sempre necessitam xingar e se mostrar como loucos, gritando e esperneando. Não se consegue defender a existência de uma conspiração mundial satânico-comunista financiada por bilionários fazendo cara séria e utilizando-se de um linguajar apropriado. A ideia que tentam passar é de que são loucos por conta de uma sabedoria tão profunda, que ela chega a abalar suas mentes sábias. Esse fenômeno existe na história da religião, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Há santos católicos que se comportavam como verdadeiros doentes mentais, e provavelmente eram, só não se sabia. Além desses, muito já foi escrito e documentado, até recentemente, sobre gurus orientais que fazem absurdos sob o manto de uma "sagrada loucura". Alguns desses gurus até cometem abusos, além de fraudes financeiras.

Por mais que romantizemos figuras passadas — figuras como Bodhidharma, que supostamente teria meditado por tanto tempo dentro de uma caverna que suas pernas necrosaram —, isso tudo é inaceitável em uma sociedade contemporânea. É inaceitável porque machuca e engana os outros. Há um efeito extremamente negativo que se repete em nome dessas loucuras. Especialmente quando as loucuras são de cunho doutrinário e político, como é o caso daquelas insanidades escritas e faladas pelo Olavo de Carvalho e derivados. Este homem causou — e continua causando — um mal que historiadores no futuro terão dificuldade de medir. Suas palavras e atitudes reverberam debaixo de uma áurea de "saber sagrado", áurea esta que seus cultistas defendem virulentamente. O problema é que eles não percebem que, às vezes, um louco é apenas um louco. Se eu quiser ser ainda mais fiel à realidade, devo escrever que isso ocorre na maioria das vezes, e que nas outras vezes o louco é apenas um charlatão que se finge de maluco. Isso quer dizer que, dado os absurdos defendidos pelo Olavo de Carvalho, só existem duas opções: ou ele é louco, ou é charlatão.


Por Fernando Olszewski