Carne humana

Se realmente quisermos desvelar o que há debaixo da superfície do real, precisamos nos aprofundar e notar coisas que parecem pouco relevantes dentro de uma conjuntura maior, por mais absurdas e grotescas que elas sejam. "São apenas sintomas", muitos dizem. Sintomas de problemas maiores, sintomas da conjuntura. Não estão totalmente errados. Mas acrescentaria que algumas dessas coisas são sintomas muito graves e dolorosos da nossa condição em geral, independentemente da conjuntura. Algumas vezes, queiramos ou não, esses aspectos grotescos da realidade são esfregados nas nossas caras. Porém, na maioria das vezes, eles permanecem escondidos sob o verniz de civilidade e de normalidade que criamos para nós mesmos ao longo de nossa história.

Estudo de pés e mãos, pintura de Théodore Géricault
Vivemos como se estivéssemos dentro de uma bolha que nos protege. Até mesmo os mais patéticos defensores do "politicamente incorreto" e da "dureza da vida" vivem dentro dessa bolha, por mais que finjam ser corajosos. Aqueles de nós que habitam os caóticos centros urbanos do mundo, volta e meia acabam tendo choques de realidade. São momentos nos quais a bolha da normalidade é rompida e cenas chocantes são captadas pelas nossas retinas. Às vezes, passamos por acidentes de trânsito com vítimas fatais. Outras vezes, vemos atropelamentos, seja na hora em que eles acontecem ou pouco depois. Assassinados. Suicidas. Enfim, caixão fechado. Certos acontecimentos são singulares, como os atentados do 11 de setembro de 2001. Os que morreram no impacto dos aviões tiveram seus corpos quase que desintegrados. Mas, além desses, estima-se que cerca de 200 pessoas caíram ou pularam das torres gêmeas naquele dia, por conta da fumaça e do fogo. O registro fotográfico e audiovisual do que aconteceu é aterrorizante, embora não mostre de perto o dano causado aos corpos daqueles que pularam.

No mundo hermético e estéril que criamos, independentemente de posicionamentos políticos, tais visões são tidas como grotescas e devem ser sempre censuradas. Funerais de corpos obliterados devem sempre ocorrer com caixões fechados. Há diversas razões para querer não mostrar ou até não descrever com palavras o quão horripilantes são as variadas formas de nossa destruição física. Respeito às vítimas e suas famílias é uma dessas razões. Também há quem diga que existe uma morbidez doentia naqueles que observam tais imagens e que tal comportamento não deve ser encorajado. Caso você não seja um dos profissionais que lida diretamente com corpos obliterados, o mundo julga ser inapropriado que os veja. Concordo que haja uma morbidez doentia naqueles que veem tais imagens e sentem algum tipo de prazer. Concordo, também, que devemos ter total respeito com as vítimas e com as pessoas próximas. Certos acontecimentos, entretanto, são registros importantes que podem nos ajudar a refletir sobre a nossa condição existencial. Por mais grotescos que sejam, não devem vistos ou descritos apenas para médicos, enfermeiros e socorristas.

Muitas vezes, a imaginação não é capaz de nos indignar o suficiente para que tomemos alguma atitude. É bem provável que a reação ao assassinato de George Floyd fosse bem menor caso ele não tivesse sido filmado, o que é uma pena. Muitos nem sequer acreditariam na barbaridade ocorrida. Inventariam desculpas nas suas cabeças, diriam para si mesmos que o relato do acontecimento foi exagerado. Sem dúvida, alguns tentariam justificar a atitude da polícia. Mesmo aqueles que acreditassem no relato oral ou escrito — aqueles que soubessem que ele foi lentamente asfixiado por um policial branco — mesmo esses talvez não se sentissem tão impactados sem o vídeo. Este parece ser um triste aspecto da vida humana: palavras, sejam elas faladas ou escritas, não causam o impacto que deveriam. Não é a primeira vez que filmagens como essas vieram à público, claro. Porém, depois de centenas de vídeos mostrando o racismo da polícia americana, o registro audiovisual de George Floyd  homem negro asfixiado pelo joelho de um policial branco  foi a gota d'água para que muitos protestassem contra o racismo e a brutalidade policial.

Relatos escritos ou imagens de policiais sendo extremamente violentos com negros e pobres, ao passo que são gentis com brancos e ricos, mostram sintomas de problemas maiores: o racismo sistêmico e a dominação de classes. Similarmente, relatos escritos ou imagens de atentados terroristas mostram sintomas de várias condições que nos afligem: fanatismo religioso e político; luta por hegemonia em determinada região do planeta; embates geopolíticos entre grupos poderosos e grupos mais fracos, onde os mais fracos se veem obrigados a usar táticas terroristas para conseguir combater o poderio daqueles que os dominam. Enfim, corpos torturados e obliterados são sintomas de acontecimentos maiores, especialmente quando esses corpos são deliberadamente torturados e obliterados por outros seres humanos. Acidentes e doenças também podem ser sintomas de problemas maiores, mas, ao contrário da ação humana deliberada, nem sempre acidentes e doenças se encaixam em narrativas grandiosas que visam mudanças políticas.

Narrativas que explicam conjunturas através de seus sintomas mais visíveis são abundantes. Elas também são perfeitamente válidas e muitas vezes estão corretas. No entanto, perde-se algo no meio do caminho, algo que quase ninguém parece querer admitir, porque vai contra a grande esperança que une reacionários e utópicos, conservadores e progressistas: a esperança de que o futuro pode ser consertado de alguma forma que faça os sofrimentos do passado e do presente valerem a pena. Sublimam-se as dores particulares para que tudo se encaixe dentro de um sentido maior, sentido esse que pode ser alterado, melhorado, para que o futuro justifique tudo de ruim que aconteceu.

A ideia que fica é a seguinte: por mais sanguinolentas que sejam todas as nossas desgraças, podemos fazer valer a pena no final. Não devemos duvidar da nossa capacidade de melhorarmos o mundo humano, claro. Mas a ideia de que um dia alcançaremos um estágio onde estaremos livres de toda e qualquer força capaz de torturar e obliterar nossos corpos é extremamente ingênua. Ainda que nos tornemos todos dóceis uns com os outros, acidentes e doenças continuarão a existir. Passaremos uma eternidade negando o alcance totalitário da dor? Até quando a dor dos corpos desfigurados pela vida será varrida para debaixo do tapete da história humana?

Quando juntamos registros escritos e imagéticos, é possível fazer uma análise ainda mais profunda da situação desgraçada na qual nos encontramos — e fica mais difícil sustentar a tese de que todas essas desgraças valerão a pena "no final". Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, mas "mil palavras" não são tantas palavras assim. Como evidências das dores do mundo, temos milhões de palavras escritas em livros de filosofia, história e medicina. Temos, também, dezenas de milhares de imagens. Tratemos agora de palavras e imagens que podem nos ajudar a perceber o quanto este universo que habitamos é extremamente hostil à nossa presença.

Duas notícias bizarras me fizeram parar para pensar na carne humana nos últimos dias. Uma delas é a de que o Guilherme de Pádua, o assassino de Daniela Perez, tornou-se pastor evangélico. Em 1992, Guilherme e sua esposa assassinaram a sangue frio Daniela Perez, atriz com a qual ele contracenava em uma novela da Globo. A arma usada foi um punhal. Os assassinos deixaram o corpo de Daniela em um terreno baldio, numa rua deserta da Barra da Tijuca. Apesar de ter 9 anos na época, lembro-me bem. Estava na casa dos meus avós, que naqueles tempos viviam em uma cidade satélite de Brasília.

A outra notícia que chamou minha atenção foi a de que o goleiro Bruno, principal pessoa envolvida no assassinato da mãe de seu filho, Eliza Samudio, tornou-se garoto propaganda de um canil. Isso é chocante porque, depois de sufocarem Eliza até a morte, o grupo liderado por Bruno desmembrou seu corpo e deu a carne para cachorros comerem. O corpo de Eliza nunca foi encontrado. As descrições de ambos os crimes já são terríveis por si só. Repito: muitas vezes, a imaginação, sozinha, não é capaz de nos horrorizar o suficiente para que tomemos uma atitude. Isso não é algo positivo. É triste. A descrição, por si, já deveria nos deixar horrorizados o suficiente para que vivêssemos o resto de nossas vidas em paz com todos os outros seres. Mas não é isso que fazemos.

Muito se fala da deep web e da dark web, mas os registros mais grotescos da dor e da crueldade da vida encontram-se na internet normal que utilizamos todos os dias. Estão no index do Google e do Yahoo, qualquer um pode procurar por eles e acessá-los. Não falo apenas de texto, mas de registros  fotográficos e, pior ainda, registros audiovisuais. Espero que ninguém cometa o erro de ir procurar tais coisas, embora não creio que devemos censurá-las por completo. Gostaria apenas que acreditassem quando escrevo: nós normalmente não temos a menor ideia do quão bizarras são as dimensões da dor. Há um inferno que habita a carne do qual a maioria de nós é ignorante. Geralmente, não sabemos o quão absurda podem chegar as dores do mundo. O posicionamento que tomo é de que tais registros, sejam eles orais, escritos, fotográficos ou audiovisuais, servem como prova incontestável e incontroversa da injustificabilidade do mundo.

Não deveria ser necessário testemunhar as dores mais grotescas para compreendermos isso. A ciência mais atualizada nos diz que a vida unicelular surgiu na Terra há cerca de 4 bilhões de anos atrás. A vida multicelular veio bem depois, há pouco mais de um bilhão e meio de anos. Os animais surgiram entre 600 e 500 milhões de anos atrás. Em algum momento durante o processo de desenvolvimento dos primeiros animais, a natureza foi capaz de produzir organismos com sistemas nervosos desenvolvidos o suficiente para que tais seres sentissem dor. Saber que existiram incontáveis seres capazes de sentir dores inimagináveis, e que suas existências não serviram a propósito algum, exceto a perpetuação de suas espécies, deveria ser suficiente para admitirmos a injustificabilidade do mundo. Infelizmente, porém, esse não é o caso.

Não tenho a menor pretensão de converter ninguém. A verdade é que nem mesmo imagens de matadouros são suficientes para tornar a maioria das pessoas vegetarianas. Então, o que esperar de descrições vagas sobre os incontáveis seres que serviram como meros propagadores de DNA muito antes do surgimento do primeiro primata? Ninguém sairá convencido de que a vida animal é um erro lendo isso, muito menos a vida do animal humano. O objetivo aqui não é a conversão de ninguém, mas a descrição de provas contra a existência senciente. A tese que tais provas visam sustentar é seguinte: nenhuma transformação futura justificará a tortura de nossas carnes e o sofrimento de nossas "almas" sem o nosso consentimento prévio, que jamais poderia ter sido obtido, visto que não existíamos antes de nascer. Ainda que a maioria de nós não passe pelas piores torturas das quais trato neste texto, uma vida considerada normal já tem dores suficientes para nos espantar e nos fazer pensar. Mas, se isso não for suficiente, talvez os próximos parágrafos ajudem na reflexão.

A história humana é repleta de casos em que pessoas foram esfoladas vivas. O esfolamento é um método de tortura e execução no qual a pele da pessoa é arrancada. Ele pode ser realizado de forma rápida ou de forma lenta, ambas extremamente dolorosas. Na mitologia grega, o sátiro Marsias foi esfolado vivo após desafiar o deus Apolo para um duelo musical e perder. Segundo a tradição cristã, São Bartolomeu, um dos doze apóstolos, foi esfolado vivo e decapitado — na capela sistina há uma pintura de Bartolomeu segurando sua própria pele. Na cidade de Bruges, na Bélgica, há uma pintura relativamente famosa de Gerard David, chamada "O julgamento de Cambises". Ela mostra o julgamento de um juiz corrupto pelo rei persa Cambises, e a execução do juiz através do esfolamento.

Até o início do século passado, uma das formas de execução praticadas na China era o lingchi, que é o esfolamento lento da pessoa em praça pública. O método teve início por volta do ano 900 e foi proibido na primeira década do século XX. Mas a prática não cessou ao redor do mundo. Independentemente da conjuntura ou do regime em que se vive, a dor continua sendo o grande estimulante da nossa espécie. É porque a dor é o grande estimulante da vida animal. Ela é fundamental para que busquemos sobreviver e passar a maldita molécula do DNA para as gerações futuras. Nós, humanos, apenas somos capazes de imaginar e infligir dores ainda mais grotescas que as do resto da natureza. Mais recentemente, já no século XXI, facções criminosas em diversos lugares do mundo, mas principalmente na América Latina, adotaram o esfolamento como tática de tortura e execução. O objetivo é amedrontar os rivais. Há vídeos na internet de diversas torturas e execuções onde pessoas, incluindo adolescentes, têm a pele arrancada enquanto ainda estão vivos. São cenas terríveis de uma dor inimaginável.

Argumento que nada nunca justificará nenhum desses sofrimentos. Nada no futuro jamais justificará tais dores, não importa o que façamos. "Mas a maioria dessas pessoas era envolvida com criminosos", algum ignorante pode afirmar, tentando, novamente, justificar o injustificável. Em  janeiro de 1941, ocorreu um massacre de judeus em Bucareste, na Romênia. Um dos resultados imediatos desse massacre foi testemunhado pelo embaixador americano Franklin Mott Gunther. Uma fábrica de processamento de carne estava cheia de corpos de judeus, alguns com placas escritas "carne kosher". Eram cerca de 60 corpos pendurados em ganchos de metal feitos para segurar carne bovina. Todos estavam sem a pele do corpo. Franklin Gunther escreveu que, pela quantidade de sangue que havia no local, elas foram todas esfoladas vivas. Seu maior choque foi encontrar entre as vítimas uma menina de 5 anos de idade. Segundo seu relato, jamais seria capaz de imaginar tamanha crueldade antes de testemunhar a cena por si próprio.

Um universo onde esse tipo de barbaridade acontece não deve ser exaltado ou consertado, mas abandonado.


Por Fernando Olszewski

Referências:
. https://www.nytimes.com/2004/09/10/nyregion/nyregionspecial2/falling-bodies-a-911-image-etched-in-pain.html
. https://usatoday30.usatoday.com/news/sept11/2002-09-02-jumper_x.htm
. https://istoe.com.br/ex-ator-guilherme-de-padua-e-ordenado-pastor-de-igreja/
. https://istoe.com.br/condenado-por-assassinato-goleiro-bruno-vira-garoto-propaganda-de-canil/
. https://www.independent.co.uk/news/world/americas/cartel-members-arrested-in-hunt-for-43-kidnapped-students-a6828741.html
. https://edition.cnn.com/2020/02/13/americas/ingrid-escamilla-mexico-murder-case-scli-intl/index.html
. https://www.factsninja.com/lingchi-the-centuries-old-cut-by-cut-or-slow-slicing-torture-tactic.html
. SIMPSON, Christopher. Blowback: America's Recruitment of Nazis and Its Destructive Impact on Our Domestic and Foreign Policy. Nova Iorque: Open Road Media, 2014.