Uma breve defesa do aborto
Nos últimos dias, assisti ao grotesco espetáculo proporcionado por cristãos que tentaram a todo custo impedir o aborto de um feto que crescia no útero de uma menina de apenas dez anos de idade. No Brasil, um país retrógrado, obscurantista e esquecido pelo mundo — mas que pensa ter algum tipo de protagonismo na história da humanidade, sabe-se lá o porquê — o aborto é um crime. Existem algumas exceções, como quando a gravidez torna-se um risco à vida da mãe e em caso de gravidez fruto de estupro. O caso da menina de dez anos encaixou-se nas duas situações. Mesmo assim, os cristãos entraram em convulsão por conta da autorização da justiça para a realização do procedimento.
Na mídia, até comentaristas conservadores mais sensatos defenderam o procedimento. Porém, mesmo estes criticaram uma suposta tentativa de progressistas de utilizar o caso específico da menina como trampolim para debater sobre a legalização geral do aborto. Não sei de onde tiraram isso. Não vi nenhum dito progressista defendendo o direito geral ao aborto para todas as mulheres. Sempre que o tema é discutido, mesmo pessoas consideradas progressistas no Brasil sentem a necessidade de colocar condicionantes. Muitos nem sequer usam o termo legalizar. Falam coisas como: “deveríamos descriminalizar o aborto” e “os conservadores que se opõem ao aborto vivem desrespeitando mulheres e crianças, a maioria não se importa com crianças de rua.”
Todos esses pontos são válidos, sim, mas eles são acessórios e acabam funcionando como condicionantes. A ideia que passam é de que deveríamos descriminalizar o aborto porque a sociedade é hipócrita e não se importa com o bem-estar dessas crianças depois que elas nascem — descriminalizar não é o mesmo que legalizar e tornar o procedimento acessível a todas as mulheres que não desejem continuar a gravidez. É verdade que a hipocrisia cristã e conservadora com relação ao feto e as crianças de rua acontece. Ela é terrível. Também é verdade que a hipocrisia dos cristãos moralistas contrários ao aborto pode ser usada como um ponto acessório importante no debate sobre a legalização geral da prática. Porém, por si só, a hipocrisia conservadora não serve para justificar a posição de quem defende o direito e acesso irrestrito ao procedimento.
É notório que praticamente todos os países de primeiro mundo garantem o direito ao aborto há algumas décadas. Em certos casos, o direito existe há quase um século, principalmente nos casos de estupro e risco de vida para a mãe — e não apenas em países desenvolvidos, quase todos os países, mesmo os pobres, garantem o direito em caso de risco à mãe ou estupro. Por exemplo, em 1931, o México foi uma das primeiras nações a permitir o aborto em casos de estupro e risco à saúde da mãe. Antes, em 1920, Lenin legalizou o aborto em qualquer caso para todas as mulheres na União Soviética. Após sua morte, a lei foi revertida por Stalin, que apoiou uma política pró-natalista. Seu objetivo era aumentar a população e impulsionar a economia socialista. Depois da morte de Stalin, na década de 1950, a lei soviética voltou a permitir o aborto em qualquer caso.
No mundo inteiro, grande parte do debate sobre o aborto gira em torno da concepção de vida, mas não apenas isso. O que se debate não é a vida em si, mas em que momento um determinado tipo específico de vida (a humana) passa a ter considerações morais. Espermatozoides e óvulos são células humanas vivas, mas não têm relevância moral alguma. Na maioria dos casos, quem é a favor do aborto defende que o procedimento possa ser feito até um determinado número de semanas x, geralmente por volta da vigésima ou vigésima quinta, antes do feto estar desenvolvido o suficiente para ser considerado um paciente moral relevante. Normalmente, utilizam como parâmetro o desenvolvimento do sistema nervoso, evidências de que o feto já possui uma consciência incipiente e a capacidade de sentir dor. Quem é contra, na maioria das vezes, defende a tese de que a vida humana é moralmente relevante desde o momento da fertilização do óvulo, uma concepção quase que inteiramente derivada de interpretações mágico-religiosas de mundo.
Foquemos na legislação brasileira. Ela permite fertilização in vitro há décadas. Grande parte dos óvulos fecundados nunca são usados e acabam descartados. A partir de interpretações derivadas do pensamento mágico-religioso cristão, tal coisa é (ou deveria ser) um absurdo. No entanto, pouco se fala sobre o assunto. Não há protestos moralistas escandalosos na porta de clínicas de fertilização. Pelo contrário, não faltam ignorantes que tratam a tecnologia da fertilização in vitro como um milagre de Deus que permite casais com dificuldade de conceber terem a chance de engravidar.
Da mesma forma, a pílula do dia seguinte é permitida pela legislação brasileira. Ela é vendida em qualquer farmácia. Essa droga impede que um óvulo fecundado se fixe na parede do útero, descartando-o. Neste caso, algumas pessoas contrárias ao aborto já começam a protestar, pois consideram a pílula como abortiva. A Igreja Católica adere à essa interpretação. E eles têm razão, a pílula do dia seguinte é abortiva: é um tipo de aborto que precisa ser feito até 72 horas depois da possível concepção, antes mesmo de ser possível detectar a gravidez. Discordo dos católicos e outros cristãos contrários ao aborto apenas na hora de julgar que isso seja algo ruim.
Ou seja: por um lado, a nossa legislação permite que óvulos fecundados sejam descartados e até abortados (no caso de estupro ou, no caso da pílula do dia seguinte, desde que o aborto ocorra antes de uma possível detecção da gravidez por exames), mas, por outro lado, a lei brasileira criminaliza o aborto por escolha da gestante em qualquer hipótese, até mesmo antes do terceiro trimestre de gravidez, algo que é comum nos Estados Unidos, Canadá, Europa, Japão, Austrália, Uruguai, etc.
Mais do que isso: há 80 anos a legislação brasileira permite que fetos fruto de estupro sejam abortados, mesmo depois do segundo trimestre, algo que até muitos defensores da legalização geral do aborto consideram problemático. Portanto, o que temos na lei brasileira é uma espécie de monstro de Frankenstein, construído a partir de posições totalmente distintas. Há a visão da sacralidade da vida, que supostamente começa na concepção, que baseia a proibição do aborto por escolha livre da mulher; mas temos também as exceções: óvulos fecundados in vitro podem ir para o lixo, a pílula do dia seguinte pode descartar um óvulo fecundado ao impedir que ele se fixe no útero, e, em casos de risco à vida da mãe ou em casos de estupro, fetos podem ser abortados mesmo depois do segundo trimestre, quando passam a ser viáveis.
Uma das coisas que já escutei discutindo sobre a questão é a ideia de que, se pudéssemos abortar um feto que ainda não possui uma consciência incipiente e que ainda é incapaz de perceber a dor (por não ter desenvolvido o sistema nervoso suficientemente), então isso significaria que uma pessoa em estado vegetativo poderia ser morta, visto que ela não teria consciência e não sentiria dor. Esse tipo de crítica tosca falha ao desconsiderar que uma pessoa em estado vegetativo, por mais que esteja inconsciente, possui um interesse implícito em continuar existindo — excetuando os casos onde tais pessoas deixaram claro seu desejo de sofrer eutanásia em caso de invalidez completa, algo que também defendo que seja um direito acessível a todos.
Esse interesse implícito é a razão pela qual é antiético matar pessoas enquanto elas dormem, ainda que de uma forma totalmente indolor: por mais que estejamos inconscientes durante o sono e por mais que não soubéssemos caso fôssemos mortos de maneira indolor, nós possuímos um interesse implícito de permanecermos vivos ao dormirmos. Nós esperamos acordar do sono uma hora. Um feto cujo sistema nervoso ainda não maturou o suficiente para ser considerado um humano consciente — ainda que sua consciência seja a de um bebê — não possui interesse algum.
O fato é que não existe nenhuma razão não-religiosa que justifique a proibição do aborto por livre vontade da gestante nos primeiros meses de gestação. Todas as justificativas utilizadas baseiam-se em leis patriarcais de propriedade do homem sobre o corpo da mulher e, mais importante, baseiam-se em pressuposições mágico-religiosas de como o universo funciona. Isso ocorre mesmo quando essas pressuposições mágico-religiosas são omitidas do argumento. O catolicismo é notório por considerar um óvulo fecundado dentro do útero como uma vida humana completamente diferente e digna de toda relevância moral, tal qual a vida de um humano adulto. Denominações protestantes diferem sobre o tema, mas muitos neopentecostais pensam de forma similar aos católicos nessa questão.
Mas nem todas as religiões pensam da mesma forma. Por exemplo, a religião islâmica, surgida no século VII, crê que a alma não é colocada no feto imediatamente no momento da fertilização do óvulo. Há diferentes interpretações da lei islâmica mas, no geral, muçulmanos concordam que aborto não pode ser realizado depois de 120 dias de gestação, sendo teologicamente permitido antes. No judaísmo ortodoxo, há um consenso de que abortos não podem ser realizados depois de 40 dias de gestação. Apesar dessas doutrinas também se basearem em interpretações mágico-religiosas de mundo, nota-se que são bastante diferentes das reações histéricas contemporâneas vindas de militantes cristãos contrários ao aborto.
Aliás, os militantes cristãos histéricos ficariam surpresos em saber que a história da sua religião foi muito mais ambígua com relação à prática do aborto do que é comumente divulgado nos seus cultos. De fato, dentro do cristianismo, sempre existiu uma tendência contrária ao aborto. Porém, a Igreja nunca conseguiu impedir totalmente a prática e nem sequer buscou fazê-lo até meados do segundo milênio. Existiram razões para isso. No livro Sacred Rights: The Case for Contraception and Abortion in World Religions (Direitos Sagrados: o caso pela contracepção e aborto nas religiões do mundo), a teóloga e professora Christine E. Gudorf escreve:
“Não há uma tradição cristã clara e contínua sobre o aborto começando nos primórdios da igreja e se estendendo até o tempo presente. John Connery coloca o início dessa tradição no século XIII; Dan Maguire, no século XV. Antes desse tempo, o registro é inconsistente em duas maneiras. Um tipo de inconsistência resulta do fato que até o final do século XIX a vida humana não era entendida como começando na concepção. Uma das razões pelas quais livros de penitências postulavam uma variedade de penas diferentes para o aborto era a ignorância que prevalecia em torno dos processos de geração. A posição teológica dominante, mas não única, foi adotada de Aristóteles e propagada por Tomás de Aquino, que contava a infusão da alma como ocorrendo 40-80 dias depois da concepção, dependendo do sexo do feto. A posição pastoral dominante — obviamente porque era a mais prática e óbvia — era de que a infusão ocorria no despertar, o momento quando se podia sentir o feto movendo-se no útero da mãe, geralmente por volta do quinto mês. Antes da infusão o feto não era entendido como sendo uma pessoa. [...] A descoberta do óvulo e do processo de fertilização no século XIX, junto com a rudimentar ciência da genética, foram quase que imediatamente tomadas pela Igreja Católica como evidência de que uma vida humana individualizada — uma pessoa — está presente no momento da fertilização do óvulo. [...] Isso produziu diferenças irreconciliáveis com descobertas científicas posteriores, especialmente a descoberta de que a fertilização, portanto a concepção, não é um momento, mas um processo estendido, e que a individuação não é necessariamente completa até depois de algumas semanas.”
Gudorf também fala sobre como o cristianismo nasceu do judaísmo, que reconhece a pessoa como existindo após o nascimento e não antes. De fato, o mundo antigo — do qual os israelitas fizeram parte, trocando experiências com diversas civilizações, inclusive o mundo helênico — não enxergava o feto da maneira sacralizada que cristãos militantes têm hoje em dia. Ervas, plantas e chás eram largamente utilizados para induzir o aborto na antiguidade. Abortar era comum. Até mesmo o infanticídio de recém nascidos era uma prática bastante comum, especialmente entre os helênicos. Em Roma, a prática do infanticídio tornou-se menos aceitável, sendo substituída pelo abandono.
Não vivemos mais no mundo antigo. Hoje temos um arcabouço teórico muito mais desenvolvido no campo da ética para analisarmos diversas situações práticas, inclusive as que envolvem a questão do aborto. Por mais que os ignorantes sejam aterrorizados com a tese de que o pensamento filosófico e científico contemporâneo priorize o ateísmo e, com ele, o relativismo moral, a verdade é que poucos filósofos e cientistas sérios aderem a visão de que não há certo e errado. Isto é, poucos pensadores sérios acreditam que a ética é uma mera ficção. E mesmo os poucos que defendem que a ética é puramente inventada e não corresponde a nenhuma faceta do real não querem viver em um mundo onde vale tudo.
É por isso que entendemos que o infanticídio é errado, ao passo de que boa parte de nós defendemos o aborto, pelo menos até um determinado momento da gestação, quando sabemos que o feto ainda não se desenvolveu o suficiente para ter consciência e sensação de dor. O filósofo David Benatar coloca isso da seguinte forma: é verdade que podemos considerar que uma pessoa nova passa a existir no momento da concepção, mas ela existe apenas no sentido ontológico, visto que um novo e único código genético é formado naquele momento; contudo, podemos considerar que o ser só passa a existir no sentido moral no momento que ele adquire uma consciência e pode ser afetado negativamente através de mecanismos como a produção de dor, sofrimento e outros estados negativos.
Antes do despertar da consciência, ainda que seja a consciência de um bebê ou de um animal (Benatar defende a relevância moral de todos os seres sencientes), um ser não tem relevância moral. Depois do despertar da consciência, ainda que o ser tenha problemas cognitivos, como um retardo mental, ou ainda que a pessoa se torne um vegetal, há um interesse implícito em continuar existindo, exceto nos casos de pessoas sadias que deixaram documentado seu desejo de eutanásia em caso de invalidez.
Esse posicionamento pode ser visto como sofisticado, mas ele também é intuitivo, especialmente quando pensamos nos óvulos fecundados in vitro e nos contraceptivos emergenciais. A verdade é que os cristãos contrários ao aborto estão pouco se lixando para embriões congelados, salvo na hora de espalhar teorias conspiratórias loucas, como a que afirma que a Pepsi utiliza "fetos abortados" como adoçante.
Infelizmente, a discussão em torno do aborto é muito passional, em grande parte, porque imagina-se que, no momento da concepção, o óvulo fecundado se torna uma pessoa em miniatura, possuidora de uma mente própria. Muitos dos que se opõem ao procedimento acreditam que a única função do útero é fazer com que essa pessoa minúscula cresça ao ponto que consiga sobreviver fora da barriga. Isso é totalmente errado do ponto de vista científico. O útero vai formando a pessoa aos poucos, não é algo imediato.
No entanto, dificilmente o grosso da sociedade brasileira, que é altamente influenciada por ideias arcaicas, mágicas e dogmáticas, consegue sequer escutar duas frases inteiras de algum argumentador em favor do direito ao aborto sem antes começar a espernear como verdadeiros bárbaros. É triste saber que argumentar seriamente o tema é o mesmo que falar com uma parede. Na verdade, é ainda pior.
Observação:
Depois de escrever o texto, lembrei-me de que, durante os anos em que vivi nos Estados Unidos, conheci e convivi com mulheres que fizeram aborto no passado. No caso de uma delas, foram três abortos. Uma das coisas que escuto muito entre “progressistas” brasileiros a favor da descriminalização (que não é o mesmo que legalização) do aborto é que, ainda que apoiem o procedimento, ele é traumático para as mulheres. Isso é falso. O procedimento só é traumático para mulheres que enfrentam problemas graves de saúde durante o procedimento — e elas só enfrentam problemas graves de saúde durante o procedimento em casos de abortos feitos em clínicas clandestinas. O fato é que, em lugares onde o acesso ao aborto é legalizado, o número de complicações devido ao procedimento é nulo.
Quanto à questão de um possível trauma psicológico, esses só ocorrem quando as mulheres são bombardeadas por informações contrárias ao aborto, como no caso de mulheres que cresceram em famílias muito religiosas e contrárias ao procedimento — porém, mesmo nesses casos, mulheres que não se importam com isso não desenvolvem trauma algum, como pude testemunhar pessoalmente ao conviver com mulheres que realizaram mais de um aborto. Pelo contrário, a pessoa que conheci que fez três abortos é bastante contente com sua própria vida.
Por Fernando Olszewski
Referências:
. GUDORF, Christine E.. Contraception and Abortion in Romam Catholicism. In: MAGUIRE, Daniel C.. Sacred Rights: the case for contraception and abortion in world religions. Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 56-78.
. BENATAR, David. Better Never to Have Been: the harm of coming into existence. Oxford: Oxford University Press, 2006.