Soldados de um Deus cruel

Para aqueles que sabem que a única inferência válida que podemos ter de um Deus onipotente e onisciente é a de que ele, se existe, não quer a felicidade ou sequer o bem-estar humano e animal, é fácil entender por que os porta-vozes dele são crápulas. Quando contrastamos o real com uma divindade criadora capaz de absolutamente tudo e que tudo sabe, só podemos chegar a uma conclusão honesta intelectualmente: Deus não está preocupado com a felicidade ou o conforto de nenhuma espécie animal capaz de sentir dor.

O massacre dos inocentes, de Nicolas Poussin


Ao contrastar a realidade brutal na qual sempre viveram os animais e os humanos com a presença de um Deus onipotente e onisciente, essa será sempre a conclusão daqueles que não se prendem a mistérios insondáveis acerca da natureza divina. Se tal Deus existe, ele nos deu a lógica, e nenhuma lógica consegue tirar a responsabilidade que um Deus todo-poderoso e onisciente têm pelo sofrimento de incontáveis criaturas ao longo de meio bilhão de anos — época em que surgiram os primeiros animais.

Se ele de fato criou o mundo — e tinha conhecimento e poder para fazer diferente — então ele é o responsável. Só se livra Deus da culpa quando acrescentamos mágica à argumentação. Mas, quando fazemos isso, abandonamos a lógica e partirmos para a especulação sobre mistérios indecifráveis, o que não é filosofia, nem ciência. Para fazermos essa análise, não importa a divindade a qual nos referimos, desde que ela seja onisciente e onipotente. Pode ser a divindade de qualquer religião. Escrevi sobre o tema mais a fundo no texto Misoteísmo.

Veja que, até agora, não falei de benevolência, um dos atributos comumente associados ao divino. É bem claro o porquê de ter deixado esse atributo de fora: ele colapsa a própria ideia da existência de Deus. Aliás, é por causa do suposto atributo da benevolência que os defensores da ideia tradicional de Deus precisam acrescentar os mistérios indecifráveis quando falam dele. Não disputo que o universo possa ser criado por uma divindade, a única coisa que nego é que tal divindade pode ser boa. Voltando ao que afirmei no primeiro parágrafo: um Deus onipotente e onisciente, se existe, não quer a felicidade ou sequer o bem-estar humano e animal. Ou seja, ele é mau ou, no mínimo, indiferente, o que dá no mesmo.

Portanto, o que afirmo é que é impossível conciliar a existência de um Deus onipotente, onisciente e benevolente com um mundo onde a vida tem que literalmente matar a si mesma trilhões de vezes todos os dias para sobreviver, em um processo que dura centenas de milhões de anos. Tendo deixado isso claro, é desconcertante ver a surpresa que muitos têm com a forma de agir dos auto-proclamados representantes de Deus. Não é de hoje que a crítica existe. Peguemos todas as religiões baseadas no Deus de Abraão: todas elas já foram exaustivamente criticadas ao longo dos séculos.

Vejamos o exemplo de Marcião, nascido no final do primeiro século e um dos primeiros a formular um Evangelho com ensinamentos de Cristo. Ele, assim como os gnósticos que vieram depois, diferenciava o Deus do Velho Testamento do Deus pregado por Jesus. Nos primeiros séculos, o cristianismo ainda estava nos seus primórdios, com várias correntes competindo entre si. A vencedora, claro, foi aquela que buscou conciliar — ao meu ver, sem sucesso — o Deus dos israelitas com o de Cristo e seus apóstolos. Fundiram-se as duas figuras. O resultado é que foi por água abaixo qualquer possibilidade de uma teologia que fizesse sentido, isto é: uma teologia que separasse a divindade criadora de um mundo cheio de sofrimento da divindade salvadora.

Sendo assim, o Deus que causou o dilúvio, matou os primogênitos no Egito e ordenou que Moisés e os israelitas massacrassem os midianitas — matando todos do sexo masculino, inclusive crianças, e todas as mulheres que já tinham perdido a virgindade, poupando apenas as meninas mais novas para virarem propriedade — fundiu-se com o Deus salvador que pregava desapego à matéria, amor e igualdade entre os homens. O resultado não poderia ter sido outro: em pouco tempo, a ortodoxia cristã vencedora da disputa de poder massacrou os gnósticos e os seguidores de Marcião e, mais tarde, impôs sua vontade sobre todo o mundo helenístico e seu panteão de deuses.

Precisamos entender de uma vez por todas que os cristãos aguerridos, intolerantes e violentos que vemos são fruto da fusão entre duas visões contrastantes sobre o mundo e sobre o divino. O Deus que ordenou o massacre de homens, mulheres e meninos, além da escravização de meninas pequenas — esse é o Deus de Edir Macedo, Silas Malafaia, Valdomiro Santiago, Padre Ricardo, Allan dos Santos, Olavo de Carvalho e Jair Bolsonaro. O pensamento desses homens é fruto da fusão de um Deus bom com um Deus cruel, além de ser um pensamento que trata o mundo material e cheio de sofrimentos que vivemos como uma criação boa de Deus, o que é inconsistente com a simples observação da natureza.

Nos últimos séculos, alguns pensadores creditaram parte da culpa da violência cristã na sua vontade de escapar o mundo material, o que seria uma herança platonista. Discordo dessa interpretação. Por exemplo: os cátaros, atuantes no sul da França entre os séculos XII e XIV, eram dualistas como Marcião e os gnósticos. Eles, assim como os marcionistas e gnósticos, queriam escapar do mundo da matéria, criado pelo Deus mau. Mas, ao contrário dos cristãos tradicionais (sejam católicos, ortodoxos ou protestantes — e protestantes nem existiam na época), os cátaros não eram violentos, hierarquizantes e misóginos — mulheres podiam praticar o sacramento, que entre eles era apenas um. Enfatizavam tanto a ideia de escapar do mundo material que aconselhavam seus seguidores mais preparados a se absterem da reprodução, visto que isso perpetuaria o aprisionamento de almas no mundo material.

Foram todos mortos na Cruzada Albigense, a primeira realizada especificamente contra cristãos heréticos. Antes, porém, a Igreja buscou revertê-los ao catolicismo. A Santa Sé chegou a enviar o frade Domingos de Gusmão para debater com os cátaros no sul da França e tentar convencê-los a abandonar sua heresia. Esse é o mesmo Domingos de Gusmão que fundou a Ordem Dominicana e tornou-se São Domingos. Contudo, ele não foi bem sucedido, assim como todos os outros que tentaram. O que sucedeu foram anos de massacres e torturas que puseram fim ao catarismo. Venceram os soldados de um Deus cruel.


Por Fernando Olszewski

Referências:
. BARNSTONE, Willis; MEYER, Marvin. The Gnostic Bible: gnostic texts of mystical wisdom from the ancient and medieval worlds. Boston & Londres: Shambhala, 2011.
. RUNCIMAN, Steven. The Medieval Manichee: a study of the christian dualist heresy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
. LÉGLU, Catherine; RIST, Rebecca; TAYLOR, Claire. The Cathars and the Albigensian Crusade. Londres & Nova Iorque: Routlege, 2014.
. CIORAN, Emil. Anathemas and Admirations. Nova York: Arcade Publishing, 2012. Tradução para o inglês: Richard Howard.
. ______. Exercícios de admiração. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Tradução de José Thomaz Brum.
. ______. The New Gods. Chicago: University of Chicago Press, 2013. Tradução para o inglês: Richard Howard.