Últimas palavras sobre aborto

O Brasil ainda se encontra na pré-história do debate sobre a legalização do aborto por escolha da mulher e, dadas as argumentações cercadas de misticismos usadas até mesmo por aqueles que se dizem a favor do direito de abortar, dificilmente sairemos deste atraso. Posso estar errado, claro, mas se tivesse que apostar, diria que é mais fácil restringirem ainda mais o acesso, proibindo aborto para vítimas de estupro, do que expandirem o direito.

Obscurantismo e Retrocesso

Por essa razão tenho desistido de falar e escrever sobre o tema. Não que tenha feito muito esforço, não fiz, mas quando vejo as muralhas culturais e religiosas que teriam que ser derrubadas para sequer começar a discutir a questão, percebo que a luta já está perdida e não será eu a pessoa que vai conseguir magicamente convencer os outros, ainda mais no cenário político imbecil e caótico em que vivemos, até mesmo dentro de movimentos progressistas.

Continuarei apoiando, só não devo mais perder tempo escrevendo sobre. Esta é a última vez, salvo algum fator extraordinário. Há anos escuto a mesma ladainha até de defensores da expansão do direito ao aborto: “aborto é um mal necessário”, “devemos descriminalizar o aborto”. Agora, com a nova portaria do Ministério da Saúde que obriga vítimas de estupro a escutarem os batimentos cardíacos do feto antes de abortar, li frases como: “mulheres já sofrem traumas psicológicos ao realizar aborto e não precisam ainda ouvir o batimento dos fetos”.

É desestimulante ler e ouvir essas opiniões, que são recheadas de mitos rasos, e ainda ver que elas são louvadas. Primeiro: quando feito antes do desenvolvimento das conexões talamocorticais, aborto só é um mal para quem é carola de igreja, quer a pessoa admita ou não. Segundo: aborto não deve ser descriminalizado, deve ser legalizado. Terceiro: a vasta maioria das mulheres não fica traumatizada e nem depressiva depois do procedimento, isso é um mito.

Muito dos mitos que cercam a questão do aborto no país giram em torno de uma ignorância total sobre o desenvolvimento do feto, uma ignorância que é, em boa parte, voluntária. As pessoas preferem ignorar o que a ciência vem descobrindo há muitas e muitas décadas.

A ideia de que, na fecundação, uma nova pessoa “completa” surge magicamente é uma crença hegemônica no nosso país, inclusive entre profissionais da medicina, o que é desolador. Muitas pessoas, inclusive muitos médicos, tratam o desenvolvimento fetal como um processo repleto de mistérios insondáveis. Mas isso está longe de ser verdade. A verdade é que a área no Brasil se recusa a absorver o conhecimento científico mais atualizado que, embora não seja absoluto, é vasto.

Não há um consenso definitivo sobre quando o feto passa a sentir dor e ter sensações claras. Porém, sabe-se que isso não ocorre no primeiro trimestre, ou seja, nas doze primeiras semanas. Algumas das pesquisas afirmam que a percepção ocorre apenas na 26ª semana, outras depois, e outras antes, por volta da 20ª. Se formos conservadores, então, podemos afirmar que há um consenso na ciência sobre o tema: antes da 20ª semana, o feto dificilmente percebe dor ou qualquer outra sensação.

É só depois deste período que um feto passa a ser considerado viável. Sim, há raríssimos casos de prematuros extremos que sobrevivem. O caso mais extremo e único é de um prematuro nascido com 21 semanas, 3 semanas antes do limite para aborto no Reino Unido, por exemplo. Contudo sequelas graves nesses casos são inevitáveis. A taxa de sobrevivência é considerada nula. Para se ter ideia, prematuros extremos de 24 semanas que conseguem sobreviver (o que já é bastante difícil) têm uma incidência altíssima de gravíssimos problemas físicos e/ou cognitivos.

O desenvolvimento das conexões talamocorticais começa na 17ª semana e se estende até por volta da 26-30ª semana. Essas conexões são fundamentais para a percepção da dor, regulação do sono e para manutenção da consciência. Ainda que sejamos cautelosos, o fato é que no 1º trimestre o feto nada sente e nada pensa, além de ser improvável que o feto sinta ou tenha algum tipo de consciência até meados do 2º trimestre (que é mais ou menos o período em que Estados Unidos, Europa, Austrália, Canadá, Japão, etc, permitem o aborto por vontade da mulher).

Ainda que parte considerável dos médicos brasileiros seja contra a legalização do aborto, isso não muda que essa rejeição é pautada em valores mágico-religiosos advindos de determinadas religiões. A Arábia Saudita até pouco tempo proibia mulheres de dirigir, e uma das justificativas dadas pelos clérigos era de que isso causaria infertilidade nas mulheres. Os médicos lá, em sua maioria, não questionavam isso, porque os valores que permeiam aquela sociedade advém do pensamento mágico-religioso da fé da maioria da sua população, o islã.

No Brasil, a maioria da população é cristã: sejam católicos ou protestantes. Embora as denominações protestantes tradicionais na Europa e nos EUA não sejam tão viscerais no que diz respeito o direito ao aborto, os neopentecostais são similares aos católicos. E são justamente as denominações neopentecostais que dominam o protestantismo no Brasil.

É interessante notar que a aversão contemporânea ao aborto por parte da Igreja Católica é um fenômeno historicamente recente. Por mais que desde Santo Agostinho a recomendação fosse contrária a prática, havia uma ignorância na posição da Igreja quanto ao momento em que a infusão da alma no feto ocorria. A posição pastoral durante a Idade Média era de que a infusão ocorria quando podíamos sentir o feto se mexer na barriga por volta do quinto mês. São Tomás de Aquino adotou a posição aristotélica de individuação, que variava pelo sexo do bebê — a infusão ocorreria em 40 dias se fosse masculino, 80 dias se fosse feminino. Por conta da ignorância, porém, a recomendação era contra o aborto.

Foi só no século XIX, com a descoberta do óvulo e do processo de fecundação — unido a um entendimento rudimentar de genética — que a Igreja tomou para si que a infusão ocorria no ato da fecundação, acreditando que era ali que a individuação acontecia. Hoje sabemos que isso está errado. A individuação não ocorre imediatamente. O óvulo fecundado não é uma pessoa formada que precisa do útero apenas para crescer o suficiente e depois nascer. A individuação só ocorre algumas semanas depois e, ainda assim, o feto só se torna viável e capaz de sensações no final do 2º trimestre. Além disso, os livros de penitências medievais mostram que as penas para o aborto feito no início da gravidez eram menores do que para abortos feitos ao final da gravidez. Portanto, a histeria sobre o tema é recente.

As religiões têm o direito de reprovar o que elas quiserem. Contudo, quando permitimos que o pensamento mágico-religioso influencie as leis, abrimos espaço para o obscurantismo. Mas é isso aí. A verdade é que até quem deveria saber sobre o assunto, progressistas, repetem asneiras ridículas e ainda recebem aplausos em cima de aplausos. Não será com defesas tímidas cercadas de falsidades que esse direito fundamental será conquistado, nem concordando com o movimento contrário à legalização e afirmando que o aborto “é um mal que deve ser descriminalizado apenas para evitar o mal maior dos abortos clandestinos”.


Por Fernando Olszewski

Referências:
As referências são as mesmas do texto Uma breve defesa do aborto. Também utilizei informações contidas no artigo “Dor fetal: mecanismos neurobiológicos e consequências”, dos autores Nuno Gonçalves, Sandra Rebelo e Isaura Tavares, publicado em 2010 na Acta Médica Portuguesa, disponível online (basta jogar no Google).