É sempre perigoso ser fã de algum tipo de autoridade, seja ela religiosa, moral, política ou científica, mas isso não impede ninguém de ter suas preferências. Tendo dito isso, há alguns anos acompanho certas divulgações do físico Roger Penrose, um dos três ganhadores do prêmio Nobel de física de 2020. Meu interesse maior é por um trabalho mais recente de Penrose, que está exposto no livro Cycles of Time (Ciclos do Tempo).
Insatisfeitos com determinados aspectos da cosmologia atual, Penrose e outros físicos começaram a buscar possíveis evidências empíricas que demonstrassem que o nosso universo é apenas um dentro de uma cadeia que se estende infinitamente no passado e futuro. Ele não ganhou o prêmio pelo trabalho do qual falarei neste texto, mas sim por suas enormes contribuições teóricas sobre a natureza dos buracos negros, que foram confirmadas. Fiquei bastante contente em vê-lo ganhar o prêmio algumas semanas depois de mandar para o meu pai palestras de Penrose.
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Radiação cósmica de fundo, imagem produzida pelo satélite Planck da Agência Espacial Europeia |
Cabe aqui uma observação:
Isso não tem nada a ver com a ideia de multiverso (HORGAN, 2014; SOKOL, 2017), nem com a famosa “interpretação de muitos mundos” de Hugh Everett, que nega o colapso da função de onda na mecânica quântica ao postular que a posição observada das partículas é real, e que todas as probabilidades existem em “mundos diferentes” (BALL, 2018). Na mecânica quântica, a interpretação mais difundida é a de Niels Bohr, conhecida como interpretação de Copenhague. Ela apenas afirma que a localização de determinadas partículas é probabilística e colapsa no seu estado definitivo quando é observada. Contudo, isso gera uma série de problemas que outras interpretações tentam solucionar — a de Everett foi uma delas.
Continuando:
A hipótese levantada por Penrose (2010) e seus colegas é chamada de Conformal Cyclical Cosmology (Cosmologia Cíclica Conforme), abreviada de CCC. A ideia da Cosmologia Cíclica Conforme, exposta por ele em seu livro, é resumidamente a seguinte:
1. As observações mais avançadas que fizemos do universo, através de satélites como o WMAP, além de outros instrumentos que medem a radiação de fundo deixada pelo Big Bang (observações essas que se encaixam em determinadas previsões teóricas bastante específicas), indicam que o universo continuará se expandindo eternamente e cada vez mais rápido. Cosmólogos e físicos em geral atribuem tal expansão à influência da energia escura, que aos poucos expande o próprio tecido espaço-temporal;
2. Essa expansão não se tornará rápida o suficiente para produzir o cenário conhecido como Big Rip, que é quando todas as partículas mais elementares e até o tecido espaço-temporal são destroçados devido à enorme aceleração da expansão. Porém, a aceleração da expansão produzirá outro final para o nosso universo: o cenário chamado de Heat Death, a morte do calor, que ocorrerá quando a entropia de todo o sistema chegar ao máximo e nenhum trabalho puder mais ser realizado (PENROSE, 2010; PIMBLETT, 2015; FALK, 2020). Outros cenários que poderiam ocorrer foram (pelo menos até agora) descartados pelas observações — cenários como o Big Crunch, no qual a massa do universo faria com que ele colapsasse novamente na singularidade do Big Bang (talvez produzindo um novo universo). O colapso do universo em uma nova singularidade ocorreria caso não existisse a força que produz a expansão cada vez mais acelerada do espaço-tempo — a já mencionada energia escura, que basicamente é a constante cosmológica proposta (e depois descartada) por Albert Einstein;
3. A morte do calor e a entropia máxima só ocorrerá depois que todas as estrelas se apagarem — tornando-se anãs brancas, buracos negros ou qualquer outra coisa, a depender de sua massa e composição. Físicos sabem que, mantendo-se a quantidade de energia escura e a aceleração do espaço-tempo que observamos atualmente, os últimos fenômenos ativos do universo serão os buracos negros. Mas até eles morrerão depois de uma quantidade extraordinária de tempo. Quando finalmente os buracos negros mais massivos evaporarem devido à radiação de Hawking, o universo entrará no que os cosmólogos atualmente consideram sua fase final e eterna. Apesar de não podermos observar o fenômeno da evaporação dos buracos negros, posto que isso leva muito tempo, Stephen Hawking mostrou, através de equações, que eles emitem radiação lentamente e perdem massa. A fase final do universo será composta de partículas fundamentais e fótons, todos movendo-se na velocidade da luz em um vazio completo e aleatório;
4. Penrose e seus colegas partem do princípio que, no futuro extremo, todas as partículas elementares decairão, inclusive o próton — isso, contudo, nunca foi observado, mas parte dos físicos acredita que aconteça no futuro extremo. Penrose também parte do princípio que buracos negros destroem toda informação que engolem, algo que seu colega, Stephen Hawking, concordava (Hawking, contudo, mudou de ideia alguns anos antes de morrer). Caso essas condições ocorram, as únicas coisas restantes no universo depois da evaporação dos últimos buracos negros massivos seriam fótons e outras partículas elementares sem massa — e aqui está a parte da conformidade geométrica da hipótese do CCC. Na física, o tempo necessita de objetos com massa para ter algum sentido. Um universo composto apenas de fótons e partículas sem massa, por maior que seja em espaço, torna-se invariante quanto ao seu tamanho. Ele deixa de ser infinitamente grande e torna-se imensamente pequeno, visto que sem uma medida de tempo, não há espaço: todas as partículas e fótons que restaram do universo passam a ocupar um espaço imensamente pequeno, assim como no Big Bang que produziu o nosso universo.
5. Penrose demonstra através de cálculos que, no futuro extremo, caso buracos negros destruam a informação que engolem e caso todas as partículas elementares percam massa, o infinitamente grande tornar-se-á o infinitamente pequeno. Essas são as mesmas condições do Big Bang que deu início ao nosso universo, o que produziria um ciclo infindável de universos que expandem infinitamente e passam pelo mesmo processo.
Ele aponta que, apesar da relatividade geral einsteiniana implicar que nosso universo tinha entropia mínima no começo, as observações mostram que, pelo menos em relação à matéria, havia entropia máxima, o contrário do que se espera (PENROSE, 2010). O que muda o cenário é a gravidade: ela é o que não estava em equilíbrio térmico com todo o resto — a gravidade existia de uma forma que possibilitou o começo de tudo, algo que não é explicado ou teorizado de forma satisfatória até hoje, argumenta Penrose. A presença da gravidade e ela estar em desequilíbrio térmico nos primórdios do universo é algo que ele tenta explicar no seu modelo de Cosmologia Cíclica Conforme: segundo sua hipótese, tal gravidade é carregada de uma era anterior, isto é, do universo anterior, que teve o mesmo fim do nosso, e assim por diante, sucessivamente e eternamente.
Penrose (2010) aqui tenta solucionar um grande problema na cosmologia: a ideia de que houve uma rápida expansão espaço-temporal imediatamente após o Big Bang, chamada pelos cosmólogos de “inflação”. A ideia de inflação surgiu para explicar inconsistências nos dados empíricos da radiação de fundo deixada pelo Big Bang — que foi melhor observada por satélites como o WMAP, mencionado anteriormente. Além disso, Penrose também admite ter vontade de conciliar a ideia do universo em estado estacionário, que ainda estava em voga na época em que ele ingressou na Universidade de Cambridge, com a bem-sucedida teoria da relatividade geral. Vale lembrar que o trabalho sobre buracos negros pelo qual Penrose ganhou o Nobel de física este ano é completamente baseado na relatividade geral.
A radiação de fundo que observamos através de satélites e instrumentos de alta precisão nada mais é do que a primeira imagem que temos do universo. Ela foi deixada quando ele tinha cerca de 300 mil anos — o universo agora tem cerca de 14 bilhões de anos (PENROSE, 2010). Quando comparamos esses primeiros resquícios com as imagens do universo que temos hoje — isto é, com a luz mais recente que chega até nós —, percebe-se que partes do céu observável são extremamente homogêneas em termos de temperatura com o lado oposto do céu, algo que hoje deveria ser impossível se usássemos somente o modelo padrão de evolução do cosmos.
A dispersão de energia e matéria no universo teria que ter sido mais rápida do que a luz no começo do universo para que isso fosse possível. Portanto, na década de 1980, o físico Alan Guth propôs a ideia de uma “inflação” espaço-temporal extrema, que teria ocorrido pouco tempo após o nascimento do universo no Big Bang (SOKOL, 2017). Contudo, a inflação também cessou rapidamente, sem deixar evidências de como ela ocorreu. Ela soluciona o problema da homogeneidade que observamos, mas também é fonte de enormes dúvidas e problemas.
Muitos físicos, inclusive alguns dos que avançaram a ideia inicialmente, como Paul Steinhardt, imaginam que o conceito de uma inflação primordial cósmica serviu apenas como um tapa buraco bem fundamentado, mas que pode e deve ser substituído por ideias melhores e testáveis (HORGAN, 2014; SOKOL, 2017). O modelo CCC de Roger Penrose ajuda a solucionar o problema, pois ele elimina a necessidade de uma inflação exótica pós-Big Bang. O Big Bang em si seria apenas um marco da passagem entre o universo anterior e o nosso.
***
O livro de Penrose, Cycles of Time, tem partes bastante palatáveis, mas, no geral, é tremendamente difícil de ler, já que ele insiste em utilizar fórmulas e exemplos matemáticos complexos. Entretanto, quando somamos ao conteúdo do livro às aulas e exposições de Penrose disponíveis na internet, a ideia por trás do modelo de Cosmologia Cíclica Conforme torna-se mais fácil de entender.
Tendo falado do modelo CCC e da sua implicação — um universo que se expande eternamente, mas que se recicla infinitas vezes depois de atingir a entropia máxima em um futuro inimaginavelmente distante — quero agora relacionar o modelo ao pensamento negativo de filósofos como Arthur Schopenhauer (2015) e Emil Cioran (1990).
Buscar entender como o universo físico se comporta — como ele é regido por determinadas regras — auxilia a compreensão humana e nos torna capazes de nos posicionar e de valorar positivamente ou negativamente nossa experiência como seres mortais. Para um animal cujo único propósito é se reproduzir e acumular bens, pode não fazer diferença alguma saber se o universo teve um início e terá um final ou se ele é reciclado ao longo da eternidade. Mas para um ser pensante, como o físico Roger Penrose, faz muita diferença. Também faz muita diferença para mim e todos aqueles que estudam filosofia, presumo.
Penso ser racionalmente elegante a forma como Penrose explica (e se entusiasma com) a possibilidade do modelo CCC estar correto. A ideia de um universo sem começo e nem fim, em contraposição à noção de um universo praticamente ex nihilo que começa no Big Bang e termina definitivamente na entropia máxima, apela bastante à razão. Contudo, à luz da filosofia negativa — ou do pessimismo filosófico — de figuras como Arthur Schopenhauer, Emil Cioran, Julio Cabrera e David Benatar, seria melhor que tal hipótese estivesse errada.
Dificilmente descobriremos exatamente o que ocorreu antes da emissão da radiação de fundo quando o universo tinha 300 mil anos, radiação que hoje observamos através de satélites tipo o WMAP. É provável que nunca tenhamos nenhuma maneira empírica de verificar o que de fato ocorreu antes dela, embora Penrose tenha proposto algumas ao longo dos últimos anos (CARTLIDGE, 2018). Apesar disso, a interpretação pessimista certamente implica em não preferir nenhum modelo cíclico ou eterno.
À luz do negativismo schopenhauriano e cioraniano, por exemplo, o melhor fim para o universo seriam os cenários da Heat Death (a morte do calor, a entropia máxima, o que tem sido confirmado por observações) ou o cenário do Big Rip (que destrói o tecido espaço-temporal através de uma expansão infinitamente acelerada, que aparentemente está descartado).
Qualquer cenário diferente — seja o modelo CCC ou um universo que se recicla após sucessivos e eternos colapsos em novas singularidades — abre a possibilidade de sempre existir um universo onde as leis da natureza permitam o surgimento da vida, a evolução de espécies e a produção da quantidade absurda de dor como a que existe no planeta Terra desde os primeiros organismos dotados de sensação e consciência rudimentar.
Pela perspectiva das filosofias pessimistas e antivitalistas, já seria um imenso infortúnio se cientistas descobrissem evidências concretas de que o nosso universo contém inúmeras formas de vida em outros planetas. Isso significaria que todo o processo repete-se constantemente em vários lugares. Se a vida não estiver concentrada somente neste planeta que habitamos, todas as dores serão multiplicadas ao infinito pelas estrelas. Ao menos, em um universo no qual há um começo e um fim mais ou menos definidos, ainda que o período em que a vida seja possível for de centenas de bilhões de anos, existe o alento do fim eterno no futuro, há a consolação de que chegará o silêncio da entropia máxima, que nunca acaba.
Pode-se argumentar que a preferência por um universo não-cíclico não é uma postura filosófica, mas sim psicológica, posto que a filosofia (supostamente) não lida com preferências e valorações. Mas, ainda que se argumente isso, é perfeitamente claro que todos os humanos passam os seus dias preferindo que determinadas coisas transcorram de uma ou outra maneira. É o modo como somos. Por exemplo: muitos preferem acreditar que o intramundo humano é na verdade parte de um mecanismo histórico de melhora constante do homem — e argumentam que tal crença é científica.
Mas, quando levamos em conta o conceito de ciência contemporânea, nem a preferência por um universo não-cíclico — preferência pautada em interpretações filosóficas pessimistas — nem a preferência de que o mundo humano se transforme em uma utopia são verdadeiramente científicas. Apesar disso, a preferência por um universo que atinja a entropia máxima daqui trilhões de anos e nunca se recicle fundamenta-se em um aspecto mais fundamental da realidade: a falta — e a subsequente necessidade de nutrição e reprodução — como condição basal de todos os organismos, sejam eles plantas, organismos unicelulares ou animais.
No caso dos seres sencientes, aqueles com consciências minimamente desenvolvidas para sentir dor, a falta basal que toda forma de vida têm faz do sofrimento e do tédio aspectos fundamentais da realidade. Tais aspectos podem tornar a realidade um pesadelo — isso quando o ser não é mergulhado em ilusões e fantasias, algo que é tendência nos humanos (CIORAN, 1990; CABRERA, 2018). Apesar de suas formulações metafísicas, Schopenhauer (2015) baseou-se na observação para argumentar que a falta é um mecanismo insidioso da natureza para que busquemos a sobrevivência. Concordo que seja.
Se os animais que vivem a brutalidade constante da savana africana ou da floresta amazônica fossem súbita e magicamente dotados com a nossa inteligência e capacidade reflexiva, acredito que todos concordariam que o mecanismo da vida é insidioso. Isso, no entanto, nunca acontecerá. Podemos especular que evolução das espécies seja capaz de produzir o fenômeno da inteligência e da reflexão profunda novamente em outros animais no futuro. Mas o processo é demasiado longo, e certamente esses possíveis seres racionais, assim como nós, desenvolveriam mecanismos de defesa contra a total banalidade da vida (CABRERA, 2018).
Eles, assim como nós, seriam programados para sobreviver e inventar todo tipo de desculpas para continuar procriando em uma casa em chamas, pois, como o Schopenhauer (2015) bem notou, quando o assunto é a reprodução, a humanidade não delibera apenas com a razão. Aqueles que têm uma visão negativa da vida e não procriam — ou até mesmo se suicidam antes de procriar — não passam seus genes, portanto, a tendência é sempre haver mais animais racionais abraçando a vida do que negando-a (BENATAR, 2017).
Por Fernando Olszewski
Referências:
BALL, Philip.
Why the Many-Worlds Interpretation Has Many Problems. 2018. Disponível em: https://www.quantamagazine.org/why-the-many-worlds-interpretation-of-quantum-mechanics-has-many-problems-20181018/. Acesso em: 14 out. 2020.
BENATAR, David.
The Human Predicament: a candid guide to life's biggest questions. Oxford: Oxford University Press, 2017.
CABRERA, Julio.
Mal-estar e moralidade: situação humana, ética e procriação responsável. Brasília: Editora Unb, 2018.
CARTLIDGE, Edwin.
New evidence for cyclic universe claimed by Roger Penrose and colleagues. 2018. Disponível em: https://physicsworld.com/a/new-evidence-for-cyclic-universe-claimed-by-roger-penrose-and-colleagues/. Acesso em: 14 out. 2020.
CIORAN, Emil.
De l’inconvénient d’être né. Paris: Gallimard, 1990.
FALK, Dan.
This Cosmologist Knows How It’s All Going to End: the astrophysicist and social media phenom Katie Mack is ready to tell you about the fate of the universe. The astrophysicist and social media phenom Katie Mack is ready to tell you about the fate of the universe. 2020. Disponível em: https://www.quantamagazine.org/how-will-the-universe-end-katie-mack-explains-20200622/. Acesso em: 14 out. 2020.
HORGAN, John.
Physicist Slams Cosmic Theory He Helped Conceive. 2014. Disponível em: https://blogs.scientificamerican.com/cross-check/physicist-slams-cosmic-theory-he-helped-conceive/. Acesso em: 14 out. 2020.
PENROSE, Roger.
Cycles of Time: an extraordinary new view of the universe. Londres: The Bodley Head, 2010.
PIMBBLET, Kevin.
The fate of the universe: heat death, big rip or cosmic consciousness? heat death, Big Rip or cosmic consciousness? 2015. Disponível em: https://theconversation.com/the-fate-of-the-universe-heat-death-big-rip-or-cosmic-consciousness-46157. Acesso em: 14 out. 2020.
SCHOPENHAUER, Arthur.
Parerga & Paralipomena: short philosophical essays, vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. Tradução para o inglês de Adrian del Caro e Christopher Janaway.
SOKOL, Joshua.
A Cold War Among Cosmologists Turns Hot: two camps of theorists are bickering in public, with one saying the others' ideas don't even qualify as science. Two camps of theorists are bickering in public—with one saying the others’ ideas don’t even qualify as science. 2017. Disponível em: https://www.theatlantic.com/science/archive/2017/05/a-cold-war-among-cosmologists-turns-hot/526329/. Acesso em: 14 out. 2020.
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