Rumo a lugar algum: niilismo, pessimismo e antinatalismo

Tenho falado muito de política ultimamente, mais ainda do que o normal, o que para alguém que diz não haver sentido na existência soa um tanto estranho. Admito que seja. Há uma aparente contradição entre o pessimismo cósmico, o niilismo existencial e o envolvimento nas coisas do mundo. O correto seria agir como monge, desapegado das questões materiais, como recomendado por filósofos pessimistas, sendo Arthur Schopenhauer (1788 - 1860) o mais ilustre deles, embora possamos voltar na história e chegar até Sidarta Gautama (563 a.C. - 483 a.C.). Além dessa crítica, há ainda aqueles que defendem que o pensamento negativo, quando se trata de política, se encaixa melhor no conservadorismo. Tenho defendido posições mais à esquerda dentro do espectro político contemporâneo nos últimos anos, portanto, dentro dessa perspectiva, isso seria uma heresia ainda maior.

Pintura de Zdzislaw Beksinski
Philipp Mainländer (1841-1876), filósofo alemão influenciado por Schopenhauer, postulou uma metafísica que muitos consideram ainda mais sombria e pessimista do que a dele. Sua metafísica diferia da de Schopenhauer no seguinte sentido: enquanto que Schopenhauer (2015) postulou uma Vontade de vida única que permeia todos os seres vivos (uma espécie de monismo ou não-dualismo metafísico), Vontade essa que não se importa com os sofrimentos dos viventes capazes de sentir dor (a dor sendo um mecanismo que impele os organismos a lutarem por sua sobrevivência e procriação), Mainländer (RAMOS, 2007; BEISER, 2016) descreveu um universo no qual, nos primórdios do tempo, a Unidade inicial do ser rompeu consigo mesma e se espalhou por toda a existência. Partes dessa Unidade primordial habitam os seres vivos, inclusive, com o expresso objetivo de se autodestruir.

Não há Vontade de vida em Mainländer, mas Vontade de morte, e essa Vontade não é uma essência metafísica única, mas está fragmentada em todos os seres. Mainländer fez a seguinte analogia: é como se Deus tivesse em algum momento decidido suicidar-se e, para realizar a tarefa, escolheu se fragmentar pelo universo e submeter-se à entropia. Tudo no universo, incluindo os seres vivos e sencientes seriam meros fragmentos que participam desse processo. Aos animais racionais, como os humanos, caberia identificar a Vontade de morte e assumir o papel de negarmos a nossa própria vida individual. Mainländer, fiel a sua filosofia, suicidou-se aos 34 anos. Contudo, apesar de todo seu pessimismo existencial, ele era um ferrenho socialista lassalliano, algo que contrastava com a posição apolítica e apática de Schopenhauer.

O pensador marxista húngaro, György Lukácz (1885 - 1971), considerava a filosofia pessimista de pessoas como Schopenhauer uma apologia indireta da burguesia (RAMOS, 2007), pois essas filosofias (supostamente) fomentavam a resignação em oposição ao desejo de mudança — o interessante é que pensadores como Lukácz consideram que a mudança é boa em si, porque, para eles, mudança é sinônimo de progresso, algo que pensadores pessimistas negam, mas voltarei a esse assunto daqui a pouco.

Mainländer, então, é um exemplo histórico de pessimista cósmico que militava politicamente — no caso dele, a militância era pela esquerda. Já Emil Cioran (1911 - 1995), ainda na sua juventude, simpatizou com a Guarda de ferro, movimento fascista romeno (DIENSTAG, 2009; ACQUISTO, 2015). Contudo, ainda no começo da década de 1940, desapegou-se do movimento e da política em geral (OLIVEIRA, 2016). Quando a Segunda Guerra Mundial eclodiu, ele estava em Paris fazendo doutorado e, depois da guerra, continuou vivendo na França, efetivamente tornando-se um exilado (PECORARO, 2004), visto que o governo comunista da Romênia pós-Segunda Guerra proibiu suas obras de circularem no país (BOSCH, 2020).

Nas décadas seguintes, Cioran (1994) escreveu estar satisfeito em viver no Ocidente dominado pelas democracias liberais, não por considerá-las o suprassumo do desenvolvimento  humano, mas justamente por poder escrever e falar o que bem entendesse, tendo plena consciência de que a humanidade da época vivia uma terrível escolha: adotar um sistema autoritário e truculento, que sufoca o indivíduo, mas que busca prover a igualdade, ou manter um sistema no qual todos são livres para pensarem e falarem o que quiser, mas no qual a maioria das pessoas vive trabalhando para enriquecer uma minoria, um sistema onde morremos de fome “ao nosso modo” (CIORAN, 1994). Ele, como outros pessimistas, não acreditava na ideia de progresso. Para eles, há avanço, sim, mas não progresso (DIENSTAG, 2009). Não estamos indo a lugar algum no final das contas, e sempre que acreditamos que estamos alcançando a utopia, diversas desgraças e opressões nos mostram que história é apenas irônica conosco.

Talvez possamos falar que Mainländer era diferente, uma vez que ele militava politicamente e nunca deixou de fazê-lo enquanto estava vivo. Mas a ideia de progresso em Mainländer, se é que ele acreditava mesmo nela, não seria a mesma do senso comum ou até de filósofos que enxergavam na história uma realização cada vez mais perfeita do homem. A instauração de uma sociedade mais igualitária e fraterna não serviria, para ele, como o fim da história ou o auge do desenvolvimento humano. Ele não acreditava que, depois do socialismo, viveríamos felizes para sempre. Não, para Mainländer, qualquer melhoria política serviria apenas como uma etapa antes da consolidação da Vontade de morte, que é o suicídio coletivo da espécie. Pode ser que isso coloque ele e outros que se identificam com o pessimismo filosófico em campos distintos daqueles que buscam um mundo melhor. Pode ser. Pessoalmente, porém, não acho que importe.

Posso apenas descrever as minhas razões para ter pendido mais à esquerda do espectro político nos últimos anos. As minhas razões não são baseadas na crença de que a história se movimenta de uma determinada maneira e que podemos observar o que é necessário ser feito. Não há mecânica alguma. Concordo com aqueles que afirmam que pensadores como Hegel (1770 - 1831) e seus seguidores, apesar de brilhantes, identificaram padrões falsos ao estudarem a história humana. Pareidolia é quando olhamos para um objeto, geralmente inanimado, e vemos uma feição humana, um animal, a Virgem Maria, Jesus Cristo ou qualquer outra figura reconhecível. Alguns exemplos de pareidolia são realmente incríveis, sendo possível até identificar proporções que fariam de uma torrada que parece ter o rosto de Jesus uma obra de arte pintada por um renascentista. Tendo a pensar que aqueles que identificaram na história humana alguma racionalidade ou propósito foram vítimas da necessidade humana de buscar padrões mesmo onde eles não existem.

Então, se não acredito em progresso, se não acho que o amanhã pode ser substancialmente melhor do que ontem, porque tenho defendido posicionamentos políticos mais à esquerda nos últimos anos? A resposta é bastante simples: eu me identifico nos outros seres sencientes e penso que poderíamos, até certo ponto, aliviar o sofrimento uns dos outros. Como escreveu Schopenhauer:  
A convicção de que o mundo e por conseguinte o homem são tais que não deveriam existir, é de molde que nos deve encher de indulgência uns pelos outros; que se pode esperar, de fato, de uma tal espécie de seres? — Penso às vezes que a maneira mais convincente dos homens se cumprimentarem em vez de ser Senhor, Sir etc, poderia ser: “companheiro de sofrimentos, sod malorum, companheiro de misérias, my fellow sufferer”. Por muito original que isto pareça, a expressão é contudo fundada, lança sobre o próximo a luz mais verdadeira, e lembra a necessidade da tolerância, da paciência, da indulgência, do amor do próximo, sem o que ninguém pode passar, e de que, portanto, todos são devedores. (SCHOPENHAUER, 2014)
Somos, ao mesmo tempo, um bando de coitados e de culpados. Só podemos falar em reputação ilibada porque não podemos saber cada detalhe da vida e do pensamento de todo mundo, caso contrário, a humanidade acabaria em poucas horas, destruindo a si mesma. Não defendo um mundo melhor, mas menos pior, porque não vejo necessidade alguma do mundo ser tão horroroso quanto ele é hoje — mas o melhor mesmo seria todos abandonarmos este barco o quanto antes. Fala-se muito de antinatalismo e da recusa da procriação com objetivo de não perpetuar o sofrimento, mas acho que os mais corajosos vão além disso. Os mais corajosos seguem o caminho de Mainländer.

Apesar disso, não penso que o caminho de Mainländer seja uma obrigatoriedade. Concordo com Cioran quando ele escreve que:
Nós deveríamos repetir para nós mesmos, todos os dias: eu sou um entre bilhões que se arrastam na superfície da terra. Um, e nada mais. Essa banalidade justifica qualquer conclusão, qualquer comportamento ou ação: devassidão, castidade, suicídio, trabalho, crime, preguiça, ou rebelião. . . . Daí se segue que todo homem está certo em fazer o que ele faz. (CIORAN, 1990)
Isso contrasta muito com as palavras do próprio Cioran, inclusive na mesma obra, intitulada Do inconveniente de ter nascido, posto que ele condena a procriação como um erro e um crime moral. Isso, aliás, é problemático para muitos leigos que abraçam o pessimismo e antinatalismo. Afinal, como pode um niilista existencial (e, pelo menos no aforismo citado, um niilista moral) ser capaz de condenar a existência e decretar que é melhor não nascer? Um niilista, segundo alguns, não deve nem condenar e nem afirmar a existência. Invariavelmente, muitos desses recusam o niilismo em favor de uma absolutização dos valores morais, transformando a moral em verdade natural ou quase matemática, enquanto outros rejeitam o pessimismo e colocam figuras como Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) em um pedestal.

Os que colocam Nietzsche em um pedestal são aqueles que acham que o niilismo não deve condenar a existência e nem comemorá-la. O problema é que Nietzsche, apesar de todo seu discurso sobre um pessimismo que afirma a vida, era um vitalista que afirmava que não podemos julgar a vida estando dentro dela, enquanto que todos os outros pensadores pessimistas falavam justamente o contrário: podemos e vamos julgar a vida, como julgamos qualquer outro tipo de processo, estando ou não inseridos dentro deles. O “além do bem e do mal” nietzschiano é extremamente otimista e celebrador da vida, por mais que, para alguns, ele se passe como uma simples aceitação não valorativa da vida.

Já os que absolutizam a moral para justificar a recusa da existência têm a minha simpatia, mas não porque concordo (pelo menos não sem uma boa dose de ceticismo) com a existência de uma moral a ser descoberta na natureza. Penso que a moral existe, sim, mas existe da mesma forma que um Boeing 747 existe. Um 747 é perfeitamente real e benéfico para ir de um continente a outro, mas ele só existe porque houve humanos que pensaram o 747 e tornaram ele real, além do que, ainda há humanos que pensam e trabalham na manutenção desses aviões. Da mesma forma, penso ser um erro achar que a  moral existe fora das mentes humanas, em algum lugar da natureza onde elas podem ser descobertas de forma pura e simples, mas defendo a posição meta-ética que isso não significa que a moral não seja real. Ela existe apenas nas mentes dos humanos, mas ela é real.

A moral existir apenas nas nossas mentes e não na natureza não invalida a sua realidade, nem significa que não possamos utilizar a moral e refiná-la para julgar determinados aspectos do mundo, inclusive as dores e os sofrimentos que milhões de anos de evolução natural das espécies submeteram os animais. É dessa forma que interpreto um julgamento como o de Cioran, citado há pouco, e de outros pessimistas que são claramente niilistas existenciais: eles afirmam não haver uma régua de valores na natureza a ser descoberta mas, mesmo assim, condenam a existência.

Em conversa com Sam Harris, o filósofo pessimista e antinatalista sul-africano, David Benatar (1966), afirma com todas as letras que ele é um niilista em um certo sentido: o sentido existencial. Na sua obra, The human predicament (BENATAR, 2016), ele também deixa claro que seu posicionamento quanto à eternidade cósmica é de que ela é totalmente vazia de sentido e que nada importa no grande esquema das coisas. Isso não o impede de propagar a tese de que criar um novo ser senciente para sofrer no mundo é um erro e que não devemos fazer isso. De onde viria a moral, portanto, segundo Benatar? Ele nunca deixa claro qual tese meta-ética adota, mas em uma outra entrevista disponível online, Benatar chega a dizer que há sim um gap, um vão entre a descrição da realidade e sentenças normativas — o velho problema da falácia naturalista, reconhecido por David Hume (1711 - 1776) e refinado por G.E. Moore (1873 - 1958).

Sua resposta é bem simples: sim, há um vão entre afirmações que descrevem a realidade e sentenças normativas. De sentenças como “seres humanos respiram oxigênio” e “seres humanos não respiram água” não podemos concluir logicamente que “não devemos colocar a cabeça de um ser humano debaixo d'água até ele parar de respirar”. Contudo, segundo Benatar, cabe ao filósofo diminuir ao máximo o vão entre descrição e normatividade, tornando-o o menor possível. Outro filósofo pessimista e antinatalista, Julio Cabrera (1944), também afirma que não podemos deduzir logicamente uma conclusão normativa de premissas descritivas. Para ele, a moral está sempre no campo da ação, das escolhas, e a argumentação ética não se dá (apenas) através da lógica (embora ela também seja utilizada). Como escreve Cabrera em sua obra Mal-estar e moralidade: “Não é uma passagem apenas lógica, mas também pática e experiencial”. Em outro momento, ele escreve:
Lembrando o que foi dito sobre a “falácia naturalista”, é claro que a interdição de matar como, mais adiante, o desaconselhamento moral da procriação, não são logicamente “deduzidos” da igualdade da situação estrutural. Essas normas devem ser decididas a partir dos dados fornecidos pela descrição dessa situação, mas não podem ser deduzidas dela diretamente. Isso, como foi apontado, acontece seja qual for a teoria ética que se considere. Entretanto, que não sejam logicamente deduzidas não significa que essas normas não tenham força moral, pois pode estar muito bem fundamentada a passagem (mesmo que não dedutiva) da situação estrutural para as normas. Isso é o máximo a que uma teoria ética pode almejar [...] (CABRERA, 2018)
Baseado nos dados de satélites como o WMAP, da NASA, e o Planck, da Agência Espacial Europeia, cosmólogos e astrofísicos contemporâneos têm apontado para o fim do universo, especificamente para a chamada heat death, ou morte do calor, que ocorrerá quando o universo inteiro atingir a entropia máxima. Isso acontecerá a depender dos valores da energia escura, que é a força que tem expandido o universo observável na era em que vivemos. A morte do calor só ocorrerá daqui uma quantidade de tempo quase que inimaginável, muito além de centenas de trilhões de anos no futuro. Porém, bem antes disso, em uma escala cósmica mais próxima de nós, o fenômeno da vida se tornará impossível, pelo menos da forma como temos definido “vida” na contemporaneidade.

Contudo, ainda que os valores da energia escura sejam diferentes, a física contemporânea entende que não haverá continuidade: o nosso universo acabará independentemente do valor que a energia escura tenha nas equações. A única coisa que mudará com esses valores será a forma de sua morte: ao invés da morte do calor, há diversos outros cenários. Em nenhum deles o universo se torna magicamente um lugar estático e eternamente convidativo à vida. A época em que a vida é possível no universo é agora, no seu relativo início, e pelos próximos centena de bilhões de anos, que são apenas um piscar de olhos na escala do futuro profundo. É como se retroativamente já não existíssemos (BRASSIER, 2007).

Em A queda no tempo, Cioran escreveu:
Eu acumulo passado, não cesso de fabricá-lo e de precipitar aí o presente, sem conceder-lhe a possibilidade de findar a sua própria duração. Viver significa padecer o fascínio do possível, mas quando se descobre no possível um passado por vir tudo se torna virtualmente passado, e não existe mais nem presente nem futuro. O que eu distingo em cada instante é o seu agonizar, o seu gemido e não a passagem rumo a outro instante. Eu elaboro tempo morto, me abandono à asfixia do devir. (CIORAN, 1990)
É verdade. Já estamos todos mortos.


Por Fernando Olszewski

Referências:
ACQUISTO, Joseph. The Fall Out of Redemption: writing and thinking beyond salvation with baudelaire, cioran, fondane, agamben, and nancy. Londres: Bloomsbury Academic, 2015.

BENATAR, David. The Human Predicament: a candid guide to life's biggest questions. Oxford: Oxford University Press, 2017.

BEISER, Frederick. Weltschmerz: pessimism in german philosophy, 1860-1900. Oxford: Oxford University Press, 2016.

BOSCH, Alfons C. Salellas. Vinte e cinco anos sem Cioran. 2020. Disponível em: http://www.anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-anpof/2713-vinte-e-cinco-anos-sem-cioran?fbclid=IwAR0jw-nVIqh11aVY0GLeBioLnJz1cVaX_2zU6cThmtevUAFnv_ehQdwB5Aw. Acesso em: 7 out. 2020.

BRASSIER, Ray. Nihil Unbound: enlightenment and extinction. Londres: Palgrave Macmillian, 2007.

CABRERA, Julio. Mal-estar e moralidade: situação humana, ética e procriação responsável. Brasília: Editora Unb, 2018.

CIORAN, Emil. História e utopia. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. Tradução de: José Thomaz Brum.

CIORAN, Emil. De l’inconvénient d’être né. Paris: Gallimard, 1990.

CIORAN, Emil. La Chute dans le temps. Paris: Gallimard, 1990.

DIENSTAG, Joshua Foa. Pessimism: philosophy, ethic, spirit. Princeton: Princeton University Press, 2009.

OLIVEIRA, Fernando Santarosa de. O pessimismo de Cioran e Céline: o desafio de pensar sem utopia. 2016. 120 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Letras, Universidade Federal de São João del Rei, São João del Rei, 2016.

PECORARO, Rossano. Cioran, a filosofia em chamas. 1. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

RAMOS, Flamarion. O pessimismo e a questão social em Philipp Mainländer. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, [S. l.], n. 10, p. 35-50, 2007.

SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014. Tradução de: José Souza de Oliveira.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora Unesp, 2015. Tradução de: Jair Barboza.