O apagar das luzes da civilização

Começarei este texto com uma constatação, que penso que todas as pessoas sensatas aceitam, sejam elas da vertente política que for. Porém, que fique claro: não incluo aqui a antipolítica travestida de opinião válida. Ou seja, seguidores ativos ou platônicos de tipos como Julius Evola, Aleksandr Dugin, Olavo de Carvalho, Ludwig von Mises e outros charlatões afins não são pessoas sensatas, nem políticas, mas propagadores da antipolítica. A constatação é a seguinte: o governo Bolsonaro é o pior governo da história do Brasil desde a proclamação da república. Se você discorda, então este texto talvez não seja para você, mas sobre você. Tendo deixado isso claro, agora vamos ao que interessa.
Queda do Império, de Thomas Cole
Qualquer um que ainda se dê o trabalho de frequentar o Facebook saberá do que falo, embora não seja apenas lá que isso ocorra: falo aqui da reação de escárnio sempre que uma matéria de jornal aponta alguma ação ruim de qualquer governo, entidade ou pessoa venerada pela direita do século XXI. O mesmo ocorre com artigos opinativos. No Facebook, isso fica evidente devido às diferentes reações possíveis que a plataforma disponibiliza, na forma de emojis. Alguma matéria negativa sobre Trump, Bolsonaro, Guedes, Olavo e outros heróis da direita contemporânea é postada no Facebook? Risos. Já no Twitter e em outras redes, quem não gosta de uma postagem só tem a opção de comentar para demonstrar seu escárnio.

Só há um tema que reacionários toscos e antipolíticos não conseguem reagir com escárnio, risadinha e ironia: aborto. Saiu uma notícia de que um país qualquer legalizou o aborto? A reação é de raiva, com o inconfundível emoji enfezado do Facebook. Pior ainda é quando alguém posta um texto opinativo em favor do aborto. Carinha com raiva e ameaças de morte são comuns nesses casos. Aborto representa o limite para os reacionários lerdos. Mas, ainda assim, a reação deles é puramente reflexiva, como um coice de gado. A matéria ou texto opinativo trata de redistribuição de renda para sanar desigualdades? Risos. A matéria trata de homofobia e misoginia? Risos. A matéria fala sobre aborto? Carinha irritada, comentários sobre o fim do mundo, julgamento divino e outras imbecilidades mais.

Esses dados são apenas exemplos cotidianos de algo indiscutível: vivemos a era da imbecilidade e corremos o risco de entrarmos na Idade das Trevas 2.0 nas próximas décadas, quem sabe antes. Na modernidade, os homens criaram a ciência. Pouco depois, ela se uniu à técnica e gerou o mundo tecnocientífico no qual vivemos hoje. Surpreendentemente, este mundo da tecnociência, onde praticamente todos têm acesso à informação, conseguiu tornar as massas ainda mais burras e erráticas do que elas eram antes. Há algumas décadas atrás, otimistas imaginavam que as novas tecnologias de comunicação permitiriam um avanço humano nunca antes visto. Coitados.

O que vemos hoje é o contrário. Centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo acreditam que vacinas causam autismo e que a Terra não só é o centro do universo, como é plana. Há também os que acreditam que existe uma cabal satânica de bilionários socialistas (!?) pedófilos que sacrificam crianças para o Diabo. Esses bilionários do mal seriam a tal “elite globalista” que quer dominar o mundo e acabar com as identidades nacionais, além de implementar o satanismo como religião oficial da humanidade. Parece brincadeira, mas é exatamente essa a crença da grande maioria dos seguidores de Trump que invadiram o Capitólio no dia 6 de janeiro deste ano — tal ideia conspiratória é conhecida pelo nome de QAnon. Pior: essa crença, assim como o terraplanismo e o movimento antivacina, já se espalhou para vários outros países do mundo, incluindo o Brasil.

Ao invés de discutirmos temas importantes como renda básica universal, ao invés de botarmos em prática alguma forma verdadeira de sustentabilidade planetária — isto é, ao invés de avançarmos — voltamos mais de meio século no debate político. Hoje, não só temos defensores do mais tosco liberalismo econômico possível, o que por si só já seria terrível, como também vemos orgulhosos simpatizantes do nazi-fascismo entre nós. No caso brasileiro, há simpatizantes do fascismo até mesmo entre pessoas que seriam consideradas sub-humanas por fascistas europeus da década de 1930. Em verdade, eles são vistos dessa maneira pelos neofascistas norte-americanos e europeus de hoje em dia, mesmo. Um exemplo é o YouTuber, Allan dos Santos, que várias vezes fez questão de usar o simbolismo de “nacionalistas brancos” norte-americanos e europeus em seus vídeos. Outro é o — agora preso — deputado Daniel Silveira.

E essas são apenas duas pessoas que estão na ponta do reacionarismo antipolítico brasileiro, reacionarismo este que forma a base do governo Bolsonaro. Além desses personagens mais conhecidos, temos também um oceano de anônimos vegetando seus cérebros “em nome de Jesus!” nas dezenas de milhares de igrejas de esquina do nosso país. O que era ruim antes com o catolicismo, piorou ainda mais com os neopentecostais que tomaram de assalto o país. A maioria das reações grosseiras e viscerais que vemos na internet e na vida real vem justamente dos fundamentalistas seguidores de crápulas endinheirados pelo dízimo.

O ponto é que Bolsonaro é só um cara. Tirá-lo é um passo crucial na luta contra as forças do obscurantismo, sim, mas esperar disso um milagre é fechar os olhos para o zeitgeist atual. Bolsonaro é apenas o boneco que representa os anseios de dezenas de milhões de brasileiros radicalizados pela imbecilidade de tipos como Olavo de Carvalho, Padre Ricardo, Silas Malafaia, Edir Macedo, Joice Hasselmann, Hélio Beltrão, Caio Miranda e Felipe Moura Brasil. Da mesma forma, Trump foi (e ainda é) apenas o boneco dos americanos radicalizados por Steve Bannon, Rush Limbaugh, Alex Jones, Glenn Beck, Sean Hannity, Bill O'Reilly e Ann Coulter. Tanto Bolsonaro quanto Trump são pessoas de carne e osso que podem ser substituídas por outras “lideranças conservadoras” caso não estejam mais disponíveis no futuro.

As raízes das quais brotam os Bolsonaros e Trumps da vida são profundas e antigas. Mais recentemente, elas foram regadas pela internet. De fato, elas foram potencializadas pela internet. Mas haverá um momento em que o coice dos reacionários lerdos deixará de ser majoritariamente virtual e passará a ser praticado nas ruas legalmente — isso ocorre hoje em dia, mas ainda é ilegal e ainda podemos nos opor através das instituições. Contudo, a truculência desse tipo de gente acontece mais e mais, basta vermos as mortes causadas por agentes de segurança privados e por policiais que espancam, atiram e matam pretos, pobres e favelados sem o menor pudor. Além disso, há anos vemos linchamentos e espancamentos de pessoas nas ruas, incitados até por repórteres de telejornais, alguns dos quais se mostraram arrependidos mais recentemente.

Muitos aplaudiam, dizendo: “que mal tem bater em vagabundo? Não gostou, leva pra casa!” Esquecem-se que até mesmo inocentes já foram mortos vítimas de boatos gerados por reacionários e religiosos histéricos. No Guarujá, há alguns anos atrás, uma mulher “reconhecida” como “bruxa que sumia com crianças para fazer rituais” foi linchada em plena luz do dia. Diversos transeuntes filmaram sua morte. Não faltaram heróis de Cristo e homens de bem para esmagarem o crânio da moça com enormes pedaços de pau. Graças às filmagens, alguns acabaram presos. No YouTube, podemos encontrar uma entrevista dada na época por um dos participantes. Algemado na delegacia, o homem se dizia arrependido de ter matado a pobre coitada, mas que acreditou nas “notícias” de WhatsApp.

É este o mundo que estamos moldando. Apesar das conquistas científicas, tecnológicas, políticas e sociais que alcançamos — conquistas que eram inimagináveis há décadas e séculos atrás — é um tanto triste estamos vivos agora, no apagar das luzes da civilização que fomentou todos esses avanços. É tarde demais, parece. Adentramos um mundo no qual não se discutem ideias com embasamento e perspectiva de melhora. Não. Agora, cada vez mais os humanos parecem se pautar no mais absoluto desprezo pela leitura e pelo exercício da intelectualidade livre. O que importa é o dogma. Fora dele, há apenas heresia a ser exterminada fisicamente, de preferência com requintes de crueldade, para que as almas dos pecadores possam ser “purificadas” no processo de destruição de seus corpos.


por Fernando Olszewski