O reflexo no espelho
Está ficando bem nauseante assistir ao infindável teatro do mundo humano. Rússia concentrando tropas na fronteira com a Ucrânia. China realizando exercícios militares perto de Taiwan. Estados Unidos tentando proteger seu império em decadência, buscando manter alinhados os países que caíram dentro de sua esfera de influência após o fim da Guerra Fria. Quando não é isso, temos a tensão entre Israel e Irã, Índia e Paquistão, Arábia Saudita e Iêmen, Síria e rebeldes, para citar apenas alguns dos conflitos. E, como não podia deixar de ser, meu país vem sendo tomado por fanáticos religiosos e imbecis que foram idiotizados pela internet.
Tudo é vaidade, de Charles Allan Gilbert |
Por conta de loucuras ideológicas e religiosas, por defendermos “tratamento precoce” com cloroquina e ivermectina, tornamo-nos párias internacionais, com toda a razão. Somos o país em que mais pessoas têm morrido de coronavírus no mundo e o governo federal, capitaneado por um imbecil lunático, faz de tudo para sabotar qualquer medida genuinamente científica de combate. O pior de tudo é que boa parte dos médicos defende as asneiras do presidente e contribuem para a morte de dezenas de milhares de pessoas. Era de se esperar, a maioria dos médicos votou entusiasmadamente nele e médicos não são cientistas, como costuma se imaginar, mas técnicos.
Pairando em cima de tudo isso está um mundo quase que inteiro dominado pela crença de que os pobres merecem ser pobres e que a civilização não deve nada a ninguém. “Que se virem!” É o que pensam. “Se estão a morrer de fome, problema deles, não se esforçaram o suficiente.” Um pobre, nascido na periferia, com acesso a poucas oportunidades, dificilmente vencerá na vida. As exceções que volta e meia vemos no noticiário apenas confirmam a regra. Salvo um milagre, alguém que mal tem o ensino médio completo e que trabalha ganhando salário mínimo (ou menos) não tem a menor condição de ascender, por mais que quebre suas costas trabalhando que nem um condenado.
Quem está um pouco acima, na classe média, vive o terror de cair na pobreza, embora repita para si mesmo que está mais próximo dos ricos, que os desprezam. Cumprem bem o seu papel, odiando e maltratando os favelados que são seus vizinhos, ao passo que morrem de amores pelos ricos, que não passam de um bando de herdeiros, embora se vendam como “empreendedores que vieram do nada”. A imensa maioria dos homens se digladia pela chance de serem lacaios de luxo dos donos do mundo. Quando não conseguem ser lacaios de luxo em profissões que pagam bem, são rebaixados a condição de servos, que é onde se encontra a maioria dos trabalhadores pobres. E há ainda quem diga que a vida é uma benção. Grande benção ser condenado a isso!
Por outro lado, alguns sonhadores acreditam que podemos forjar um mundo onde nascer seria, de fato, uma benção. “Você não odeia as segundas-feiras, odeia o capitalismo”, dizem eles. Não, tenho certeza de que odeio as segundas-feiras, além de também odiar o capitalismo. Dada a consciência que tenho de ser um amontoado de carne e ossos decadente, animado por um sistema nervoso que não pediu para existir, posso afirmar que odiaria todos os dias da semana mesmo que tivesse nascido antes do surgimento do sistema capitalista. O mesmo também ocorreria se tivesse nascido depois da superação do capitalismo.
Enquanto que não disputo que o mundo humano possa ser melhor do que a porcaria que é atualmente, nem mesmo a instauração da Utopia de Thomas Morus ou o advento da Nova Atlântida de Francis Bacon chegariam perto de sanar a injúria do ser. Nascer não valeria a pena nem na utopia e falta muito tempo até chegarmos lá — se é que um dia chegaremos. Mas deixemos as questões maiores de lado e foquemos agora no microcosmo dos horrores humanos.
Dentre as desgraças que estão em evidência na mídia, temos o caso do menino Henry, de 4 anos de idade, que morreu depois de ser espancado pelo namorado de sua mãe, um político conhecido como Doutor Jairinho. Jairinho é rico e ligado às milícias da zona oeste do Rio de Janeiro. Sua mãe, Monique, muito provavelmente é partícipe do crime, embora alguns forcem a barra e a vejam como inocente. Afinal, uma mãe jamais faria isso com um filho, não é verdade? Essas pessoas trabalham com a hipótese infundada de que ela tinha medo de Jairinho. Mas, ainda que Monique não tenha participado do assassinato em si, ela certamente participou da tentativa de livrar a cara do namorado. É isso o que todas as evidências e depoimentos obtidos mostram. Não, medo não a fez tentar esconder o crime. No fundo, mesmo os ingênuos que tentam ver alguma “inocência materna” na mãe de Henry sabem disso.
Esses ingênuos e a maneira como agem me lembram as inúmeras tentativas feitas por filósofos de justificar a espécie. Não são apenas filósofos que debatem o tema. É bastante comum ouvirmos tentativas de salvar a reputação moral da raça humana apontando para uma pessoa ou para um grupo como se fossem exemplos. A fórmula é mais ou menos a seguinte: “ao menos essa pessoa é boa” ou “ao menos essas pessoas são boas”. Claro, há uma enorme variedade quando se fala da culpa de cada indivíduo. É verdade que, embora nenhum de nós possa ser considerado santo, nem todos somos Ted Bundy ou Josef Mengele. Alguns seres humanos estão muito acima da média quando falamos de bondade.
Já quando falamos de agrupamentos humanos, nenhum escapa. Todos são culpados, embora alguns sejam muito mais culpados do que outros, é verdade — afinal, nem todas as nações tornaram-se potências coloniais e impérios genocidas. Mas isso não muda a realidade de que mesmo os povos que foram massacrados tinham suas contradições, violências e culpas, ainda que menores em escala. É tolice crer que a pacífica Shangri-La ou o paradisíaco El Dourado foram introduzidos ao mal por homens vindos de fora. A semente do horror está em nós e em todos os seres vivos. Mesmo algumas plantas são o calabouço de tortura e morte para determinadas espécies de animais. Até fungos são capazes de matar.
Contudo, apesar de partilharmos o horror com todos os viventes, o humano é único. Somos a única espécie que sabe que está causando sofrimento ao machucar outro ser dotado de consciência, ainda que essa consciência seja mínima, como no caso de animais selvagens caçados por povos antigos na savana ou no caso de animais sendo processados em massa nas fábricas da indústria alimentícia moderna. Essa constatação independe de ser ou não natural nos alimentarmos da carne alheia. Não estou aqui fazendo apologia desta ou daquela dieta, embora reconheça serem positivas quaisquer atitudes que busquem não contribuir com o sofrimento. Apenas aponto que, ainda que o consumo de carne seja natural, de maneira alguma isso justifica moralmente a dor causada, apenas torna a nossa existência ainda mais trágica.
Imagine uma espécie de extraterrestres inteligentes que precisa comer alguns de seus primos para se nutrir, tendo sido essa a maneira como evoluíram. Um determinado comportamento ser produto do desenvolvimento natural da espécie não o torna necessariamente correto. Da mesma maneira, caso nós humanos realmente tenhamos a necessidade natural de comer outros seres sencientes para sobreviver, isso não faz dessa necessidade algo correto ou bom. É apenas uma condição infeliz. Feliz é o leão que não entende o mecanismo insidioso do qual participa. Mas a questão alimentar aqui é um adendo. O importante é que nós somos os únicos animais que entendem a dor que causamos em outros seres sencientes. Ainda que excluamos o que fazemos com os outros animais para nos alimentar, sobra o que fazemos com a nossa própria espécie, o que fazemos uns com os outros.
Sobre como agimos mal com a nossa própria espécie, especialmente com aqueles que são indefesos, aqui vai mais um exemplo em evidência na mídia. Alguns meses antes do assassinato de Henry, três crianças — Fernando, Lucas e Alexandre, com idades entre 8 e 11 anos — desapareceram em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Por serem crianças pobres e pretas, as autoridades e boa parte de imprensa custaram a investigar o caso. Custaram? Ainda mal investigam. É de partir o coração. Nos países com altas taxas de elucidação de desaparecimentos e homicídios, a maioria dos casos é elucidado em poucos dias. Mesmo nesses países, quando essa janela de tempo passa, a taxa de elucidação cai drasticamente.
No Brasil, a taxa de solução de crimes é pífia, incluindo desaparecimentos e homicídios, não importa o tempo transcorrido. Portanto, se até nos países mais eficientes no combate ao crime esse tipo de caso é pouco solucionado depois de algumas semanas, imagina no Brasil. Dificilmente essas crianças serão encontradas. Dificilmente encontrarão os responsáveis. Mas a coisa não para por aí. Ainda que tudo seja solucionado e os culpados sejam punidos, sobrará a dor que Fernando, Lucas e Alexandre sofreram, além da dor daqueles que os três meninos deixaram para trás. No final, Henry, Fernando, Lucas e Alexandre vieram ao mundo para terminarem assim: agredidos, mortos e desaparecidos.
Poderia perder tempo fazendo aquelas perguntas vazias e supostamente inspiradoras, como, por exemplo: “como chegamos até aqui?” e “o que podemos fazer?” Chegamos até aqui porque esse foi o caminho. O que podemos fazer é tentar não piorar as coisas e deixar de pautar a civilização na exploração da maioria por uma minoria — mas, de preferência, devemos parar de produzir novos escravizadores e novos escravos, novos malfeitores e novos sofredores. A melhor coisa que podemos fazer é não trazer novos Jairinhos e Henrys ao mundo. O otimista dirá que nem todos nos tornamos malfeitores ou vítimas como Jairinho e Henry. É verdade, mas há outras formas de sermos malfeitores e vítimas. A própria natureza da nossa biologia nos torna vítimas, obrigando-nos a nos alimentar e nos mover para existir. Tudo isso para, mesmo assim, sofrer e morrer em algum determinado momento arbitrário, seja de doença, acidente, velhice ou qualquer outra coisa.
É um balde de água fria escutar que não, não podemos ter tudo, e que se quisermos mesmo ter descendentes, eles sofrerão e (muito provavelmente) também farão com que outros sofram em maior ou menor grau. É um balde de água fria, mas tem que ser dito. De preferência, todos devem ponderar sobre essas coisas. Faça isso e, quem sabe, você chegará à conclusão honesta de que a vida é sofrimento — embora ainda possa ter uma atitude contrária à recomendação que fiz no último parágrafo. Se quiser trazer novos Jairinhos e Henrys ao mundo, ao menos seja honesto sobre a realidade da existência. Não dá mais para alegar ignorância a posteriori. Sabemos que o resultado das melhores vidas é a morte, e mesmo as melhores vidas possuem muito mais sofrimento do que se acredita normalmente.
Faz um bom tempo que escuto falarem que a dor não deveria servir de escola, que não devemos romantizá-la. Sim, concordo. Esse tipo de discurso ficou ainda mais em evidência depois do começo da pandemia, quando muitos influenciadores e personalidades tentaram romantizar a situação, dizendo que sairíamos mais fortes desse momento doloroso, que a pandemia seria um aprendizado, entre outras besteiras. Tal besteirol é usado há muito tempo para normalizar a pobreza de milhões de seres humanos — e os que o utilizam fazem isso ao mesmo tempo em que culpam os pobres por serem pobres. É terrível. Por isso, concordo plenamente com aqueles que dizem que a dor não é pedagógica e que ela não deveria ser romantizada. Mas vou além. É horrível romantizar a senciência e, portanto, os últimos 500 milhões de anos no planeta Terra, pelo menos.
De resto, quando escolhemos quais sofrimentos devem ser naturalizados e quais não devem, estamos fazendo um julgamento de valor arbitrário baseado em absolutamente nada além dos nossos desejos de continuidade e de que tudo ficará bem. Ainda que muitos admitam os diversos horrores da vida humana, tratam como natural e aceitável o horror que não é causado diretamente pelo homem. Agem como se a utopia futura magicamente justificasse toda a maldade humana anterior — e as doenças, as tragédias, os acidentes e os sofrimentos que não são causados diretamente pela maldade humana não importarão, pois esses são “naturais”, “fazem parte” e devem ser aceitos por todos.
Discordo. Primeiro que não sabemos se alcançaremos um mundo onde a maldade humana deixará de existir — e mesmo que isso seja possível, por que deveríamos aceitar que essa futura utopia justificará todo o mal anterior? O mal feito não tem como ser desfeito por uma futura humanidade melhorada. Mais: por que deveríamos aceitar que essa futura harmonia universal entre homens justificará os sofrimentos “naturais”, aqueles que não são causados pela ação humana, como os acidentes, as doenças e os desastres naturais? Não basta dizer que o mundo natural é do jeito que é e esperar que isso resolva nossas angústias. Mesmo porque, aceitar um dado natural de forma consciente não é uma atitude neutra, mas uma aprovação disfarçada. Julgamos tudo, até fórmulas matemáticas, por que diabos não poderíamos julgar o mecanismo de morte e sofrimento do mundo natural?
O fato de estarmos inseridos dentro do mundo natural e não podermos sair da vida para julgá-la de fora não nos impede de olharmos com horror para a existência e rejeitarmos a nossa programação. Por mais que os otimistas possam negar, essa suposta aceitação neutra da vida é uma aprovação entusiasmada. E se alguns aprovam, outros têm todo o direito de reprovar. Ao olharmos nosso reflexo no espelho deveríamos ter em mente que, ainda que nós individualmente não participemos do horror, fazemos parte de uma cadeia de eventos que é intrinsecamente horrível, queiramos ou não. Podemos não ser Jairinhos nem Henrys, mas somos parte do mesmo chão de fábrica de sofrimentos que produzem seres como eles. Esse chão de fábrica de sofrimentos também produz incontáveis outros horrores, sejam eles causados pelo homem, pela natureza ou pelo acaso.