República Evangélico-Militar
Como chegamos aqui? Em grande parte, isso se deve a diversos movimentos de extrema-direita que, ao longo dos anos, demonizaram a política, que vive de acordos, em prol de uma antipolítica supostamente redentora, que viria para “restaurar” a nação. Podemos chamar a tal antipolítica redentora pelo seu nome mais famoso: fascismo. Basicamente, uma parcela considerável da população foi seduzida pelo fascismo ao longo das últimas duas décadas. Outra parcela, um pouco menor, não precisou ser seduzida. Ela já era autoritária, tosca, bronca e — sem o saber — fascista.
Não é a primeira vez na história do país que somos atacados pelo moralismo antipolítico — aquele mesmo, que adora gritar coisas como “todos os políticos são corruptos!” e “meu partido é o Brasil!”. Ocorreu também em 1964. Não demorou muito para o discurso moralista contra a corrupção — que demoniza a política — tornar-se anticomunismo e anti qualquer coisa que questionasse as hierarquias de uma sociedade brutalmente desigual. O mesmo vem ocorrendo agora. Mal parafraseando Marx novamente: enquanto que, em 1964, a história ocorreu como tragédia, agora ela se repete como farsa.
Incapazes, os generais pançudos e esclerosados do século XXI ameaçam o Estado democrático de direito através do Twitter. Burros, apostaram suas fichas num completo imbecil com traços de psicopatia. Como Leandro Demori bem observou recentemente, se por algum milagre de conjuntura o Brasil estivesse bombando, os militares e seus apoiadores na sociedade civil estariam celebrando a “eficiência militar”. Ao menos o governo Bolsonaro serviu para isto: caiu por terra o mito do militar eficiente. Ao que parece, nossas Forças Armadas servem apenas para ameaçar o Estado democrático de direito quando os ricos ficam incomodados com a possibilidade dos pobres subirem na vida.
A história se repete como farsa até no apoio da sociedade civil ao golpe: enquanto que, em 1964, a religião da maioria dos civis reacionários era o catolicismo, agora eles são evangélicos neopentecostais, com toda a sua estética horrível. Mas até nisso a ditadura militar é culpada. Depois do golpe, ainda no governo Castello Branco, começou um incentivo governamental para a vinda de pastores americanos ao Brasil. A proposta era clara. Esses grupos evangélicos tinham como uma de suas metas combater o ateísmo e a perda dos valores cristãos no mundo moderno — basicamente a mesma conversa mole de personagens atuais como Silas Malafaia, padre Ricardo e Olavo de Carvalho. Além disso, o puxa-saquismo dos militares com os norte-americanos certamente os fez pensar que o protestantismo ajudaria o nosso país.
Do incentivo dado na ditadura até o final do século passado, o número de evangélicos foi, aos poucos, aumentando. Quando eu era criança, protestantes ainda eram minoritários. Aqui e ali conhecíamos um batista. Um ou outro familiar distante virava metodista. Com o passar dos anos, essa impressão foi ficando para trás. Entre o ano 2000 e 2010, o censo demográfico registrou um aumento de 61% no número de evangélicos no Brasil. Alcançamos naquele ano a marca de 42 milhões de evangélicos, quase a população da Argentina. Para se ter ideia do crescimento no número de adeptos, observe: em 1980, somente 6,6% da população brasileira pertencia a alguma denominação protestante; em 1990, eram 9%; em 2000, chegou a 15,4% da população — pouco mais de 26 milhões de pessoas à época; em 2010, eram 42 milhões.
Sabemos que a maior parte desse crescimento não foi impulsionado por denominações protestantes tradicionais, mas por mega igrejas neopentecostais — aquelas que vendem curas falsas e milagres financeiros, justamente o tipo de protestantismo que a ditadura incentivou. Ainda não tivemos um novo censo, mas se a tendência de crescimento for igual a da década anterior, o protestantismo neopentecostal pode ser considerado a religião da maioria dos brasileiros. Vale lembrar que cerca de 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro nas eleições presidenciais. Em comparação, 51% dos católicos votaram nele. Não é fantasioso especular que Bolsonaro manterá o mesmo apoio entre evangélicos nas próximas eleições. Talvez receba um apoio ainda maior.
Isso se as eleições ocorrerem, claro. A maioria dos policiais militares são evangélicos e eles são ideologicamente ligados ao presidente. Eles não respondem mais aos governadores. Portanto, as polícias podem servir como tropa pretoriana para um possível golpe de Estado. O mesmo ocorre com as Forças Armadas, embora ainda se especule sobre rachas dentro do alto comando que impediriam um golpe para instaurar Bolsonaro, especificamente. Isso quer dizer o seguinte: os generais são conservadores e, para conter a “ameaça comunista”, certamente dariam um novo golpe militar — mas, segundo alguns analistas, eles não dariam um golpe para coroar o tosco do Jair Bolsonaro e seus filhos.
Notícias surreais — como a que evangélicos pressionaram a Lacta a mudar o nome do bombom “Feitiçaria” porque “feitiço não é de Deus” — revelam apenas uma pequena parcela do poder que eles detêm. A patética e ilegítima Associação de Juristas Evangélicos conseguiu fazer com que o ministro do STF indicado por Bolsonaro, Nunes Marques, liberasse cultos e missas presenciais em Belo Horizonte na véspera da Páscoa — isso em meio ao colapso no sistema de saúde e funerário causado pela pandemia. Os argumentos de Nunes Marques foram os mais loucos possíveis. Ele usou jurisprudência dos Estados Unidos para argumentar que a proibição de cultos presenciais neste momento é uma afronta à liberdade religiosa, um argumento que já está sendo destroçado por outros ministros do STF e por juristas Brasil afora.
Bolsonaro promete que o próximo ministro do STF será terrivelmente evangélico. André Mendonça, que foi Advogado Geral da União, depois Ministro da Justiça, e agora retornou à AGU, é um forte candidato. Evangélico, tosco e capacho do presidente, ele tem todas as qualidades para ser indicado pelo “mito”. Enquanto isso, o Ministro da Educação, um pastor evangélico fundamentalista, junto com a Ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, que também é evangélica fundamentalista, planejam implementar o homeschooling no Brasil. Nos Estados Unidos, homeschooling é uma fábrica de mentecaptos incapazes de serem absorvidos pelo mercado de trabalho normal, portanto vivem para a religião fundamentalista de seus pais.
Agora me digam, o Brasil não acabou? Claro que sim. Bolsonaro passará um dia. Mas as igrejas evangélicas permanecerão. Elas continuarão servindo como os maiores potencializadores do reacionarismo no país, assim como o catolicismo um dia foi. E se não forem as igrejas evangélicas, alguma outra sandice reacionária e irracional ocupará o mesmo espaço. Ainda que pastores ricos não acreditem em nada do que preguem para os fiéis, ainda que eles só façam isso para arrancar dinheiro de ignorantes, seus seguidores acreditam — e eles votam, matam e morrem “em nome de Jesus!!!”.
por Fernando Olszewski
Referências:
Número de evangélicos aumenta 61% em 10 anos segundo IBGE
O voto evangélico garantiu a eleição de Jair Bolsonaro
Como a ditadura militar impulsionou a teologia reacionária de igrejas americanas
Maioria dos policiais no país é evangélico, mas evita expor religião nas redes sociais
Após críticas, Lacta muda nome e embalagem do bombom "Feitiçaria"