República Evangélico-Militar

O Brasil acabou e não há nada que possamos fazer. Essa não é uma daquelas exclamações como “o rei está morto, viva o rei!” — não, o Brasil realmente acabou. Qualquer ideia ou projeto de nação que tenha existido anteriormente se desmanchou no ar, mal parafraseando Marx. Engana-se quem pensa que o problema se resume a Bolsonaro, seus ministros e seus generais. É claro que, se Bolsonaro caísse e seus generais fossem responsabilizados, talvez ainda existisse alguma chance. Talvez o país despertasse. Mas isso não acontecerá porque, para acontecer, o país teria que já ter despertado. Bolsonaro pode até cair e ser preso, mas todos sabemos que os militares, que há anos vêm se insinuando na política, não serão responsabilizados pelas desgraças que estão ocorrendo atualmente no país.


“Quais desgraças?”, você pode perguntar. Vejamos. Fora as fortíssimas evidências de crimes de corrupção que rondam todos os membros do governo Bolsonaro, incluindo os militares, ainda temos que sofrer com a péssima administração da coisa pública. A economia, cujo Ministério está nas mãos do incompetente Paulo Guedes, já não dava sinais de recuperação antes da pandemia, em 2019 — depois, então, nem se fala. O plano do governo para a educação e segurança pública se resume a privatizar todo o ensino, propor homeschooling e armar a população. E, para coroar a desgraça, não podemos nos esquecer da péssima resposta do governo federal à pandemia. O governo intencionalmente causa mortes ao desinformar a população sobre distanciamento, tratamento precoce e vacinação. Oficialmente, morreram mais de 330 mil brasileiros de covid-19. Contudo, sabemos que o número real é bem maior.

Como chegamos aqui? Em grande parte, isso se deve a diversos movimentos de extrema-direita que, ao longo dos anos, demonizaram a política, que vive de acordos, em prol de uma antipolítica supostamente redentora, que viria para “restaurar” a nação. Podemos chamar a tal antipolítica redentora pelo seu nome mais famoso: fascismo. Basicamente, uma parcela considerável da população foi seduzida pelo fascismo ao longo das últimas duas décadas. Outra parcela, um pouco menor, não precisou ser seduzida. Ela já era autoritária, tosca, bronca e — sem o saber — fascista.

Não é a primeira vez na história do país que somos atacados pelo moralismo antipolítico — aquele mesmo, que adora gritar coisas como “todos os políticos são corruptos!” e “meu partido é o Brasil!”. Ocorreu também em 1964. Não demorou muito para o discurso moralista contra a corrupção — que demoniza a política — tornar-se anticomunismo e anti qualquer coisa que questionasse as hierarquias de uma sociedade brutalmente desigual. O mesmo vem ocorrendo agora. Mal parafraseando Marx novamente: enquanto que, em 1964, a história ocorreu como tragédia, agora ela se repete como farsa.

Incapazes, os generais pançudos e esclerosados do século XXI ameaçam o Estado democrático de direito através do Twitter. Burros, apostaram suas fichas num completo imbecil com traços de psicopatia. Como Leandro Demori bem observou recentemente, se por algum milagre de conjuntura o Brasil estivesse bombando, os militares e seus apoiadores na sociedade civil estariam celebrando a “eficiência militar”. Ao menos o governo Bolsonaro serviu para isto: caiu por terra o mito do militar eficiente. Ao que parece, nossas Forças Armadas servem apenas para ameaçar o Estado democrático de direito quando os ricos ficam incomodados com a possibilidade dos pobres subirem na vida.

A história se repete como farsa até no apoio da sociedade civil ao golpe: enquanto que, em 1964, a religião da maioria dos civis reacionários era o catolicismo, agora eles são evangélicos neopentecostais, com toda a sua estética horrível. Mas até nisso a ditadura militar é culpada. Depois do golpe, ainda no governo Castello Branco, começou um incentivo governamental para a vinda de pastores americanos ao Brasil. A proposta era clara. Esses grupos evangélicos tinham como uma de suas metas combater o ateísmo e a perda dos valores cristãos no mundo moderno — basicamente a mesma conversa mole de personagens atuais como Silas Malafaia, padre Ricardo e Olavo de Carvalho. Além disso, o puxa-saquismo dos militares com os norte-americanos certamente os fez pensar que o protestantismo ajudaria o nosso país.

Do incentivo dado na ditadura até o final do século passado, o número de evangélicos foi, aos poucos, aumentando. Quando eu era criança, protestantes ainda eram minoritários. Aqui e ali conhecíamos um batista. Um ou outro familiar distante virava metodista. Com o passar dos anos, essa impressão foi ficando para trás. Entre o ano 2000 e 2010, o censo demográfico registrou um aumento de 61% no número de evangélicos no Brasil. Alcançamos naquele ano a marca de 42 milhões de evangélicos, quase a população da Argentina. Para se ter ideia do crescimento no número de adeptos, observe: em 1980, somente 6,6% da população brasileira pertencia a alguma denominação protestante; em 1990, eram 9%; em 2000, chegou a 15,4% da população — pouco mais de 26 milhões de pessoas à época; em 2010, eram 42 milhões.

Sabemos que a maior parte desse crescimento não foi impulsionado por denominações protestantes tradicionais, mas por mega igrejas neopentecostais — aquelas que vendem curas falsas e milagres financeiros, justamente o tipo de protestantismo que a ditadura incentivou. Ainda não tivemos um novo censo, mas se a tendência de crescimento for igual a da década anterior, o protestantismo neopentecostal pode ser considerado a religião da maioria dos brasileiros. Vale lembrar que cerca de 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro nas eleições presidenciais. Em comparação, 51% dos católicos votaram nele. Não é fantasioso especular que Bolsonaro manterá o mesmo apoio entre evangélicos nas próximas eleições. Talvez receba um apoio ainda maior.

Isso se as eleições ocorrerem, claro. A maioria dos policiais militares são evangélicos e eles são ideologicamente ligados ao presidente. Eles não respondem mais aos governadores. Portanto, as polícias podem servir como tropa pretoriana para um possível golpe de Estado. O mesmo ocorre com as Forças Armadas, embora ainda se especule sobre rachas dentro do alto comando que impediriam um golpe para instaurar Bolsonaro, especificamente. Isso quer dizer o seguinte: os generais são conservadores e, para conter a “ameaça comunista”, certamente dariam um novo golpe militar — mas, segundo alguns analistas, eles não dariam um golpe para coroar o tosco do Jair Bolsonaro e seus filhos.

Notícias surreais — como a que evangélicos pressionaram a Lacta a mudar o nome do bombom “Feitiçaria” porque “feitiço não é de Deus” — revelam apenas uma pequena parcela do poder que eles detêm. A patética e ilegítima Associação de Juristas Evangélicos conseguiu fazer com que o ministro do STF indicado por Bolsonaro, Nunes Marques, liberasse cultos e missas presenciais em Belo Horizonte na véspera da Páscoa — isso em meio ao colapso no sistema de saúde e funerário causado pela pandemia. Os argumentos de Nunes Marques foram os mais loucos possíveis. Ele usou jurisprudência dos Estados Unidos para argumentar que a proibição de cultos presenciais neste momento é uma afronta à liberdade religiosa, um argumento que já está sendo destroçado por outros ministros do STF e por juristas Brasil afora.

Bolsonaro promete que o próximo ministro do STF será terrivelmente evangélico. André Mendonça, que foi Advogado Geral da União, depois Ministro da Justiça, e agora retornou à AGU, é um forte candidato. Evangélico, tosco e capacho do presidente, ele tem todas as qualidades para ser indicado pelo “mito”. Enquanto isso, o Ministro da Educação, um pastor evangélico fundamentalista, junto com a Ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, que também é evangélica fundamentalista, planejam implementar o homeschooling no Brasil. Nos Estados Unidos, homeschooling é uma fábrica de mentecaptos incapazes de serem absorvidos pelo mercado de trabalho normal, portanto vivem para a religião fundamentalista de seus pais.

Agora me digam, o Brasil não acabou? Claro que sim. Bolsonaro passará um dia. Mas as igrejas evangélicas permanecerão. Elas continuarão servindo como os maiores potencializadores do reacionarismo no país, assim como o catolicismo um dia foi. E se não forem as igrejas evangélicas, alguma outra sandice reacionária e irracional ocupará o mesmo espaço. Ainda que pastores ricos não acreditem em nada do que preguem para os fiéis, ainda que eles só façam isso para arrancar dinheiro de ignorantes, seus seguidores acreditam — e eles votam, matam e morrem “em nome de Jesus!!!”.


por Fernando Olszewski

Referências:

Número de evangélicos aumenta 61% em 10 anos segundo IBGE

O voto evangélico garantiu a eleição de Jair Bolsonaro

Censo demográfico 2010

Como a ditadura militar impulsionou a teologia reacionária de igrejas americanas

Como a ditadura beneficiou a teologia reacionária de igrejas norte-americanas (original da Jacobin Brasil)

Maioria dos policiais no país é evangélico, mas evita expor religião nas redes sociais

Após críticas, Lacta muda nome e embalagem do bombom "Feitiçaria"

Ministro da Educação defende homeschooling em audiência e diz que socialização da criança pode ser na igreja