Copa América em nome de Jesus

Dizer que o que está acontecendo agora é um tapa na cara das pessoas é ser educado e subestimar a situação. É muito pior. Um tapa na cara seria algo bom perto dos acontecimentos recentes, se é que podemos comparar agressões metafóricas. Depois de várias tentativas civilizatórias, a mais recente encerrada há pouco menos de uma década, uma linha foi cruzada e jamais poderemos voltar atrás. O que finalmente nos fez cruzarmos a fronteira da decadência civilizacional não foi um único acontecimento, mas diversos, ao longo de muito tempo. Nunca tivemos uma civilização robusta nestas terras, mas agora fica claro que nunca teremos, nem no futuro. Isso é uma pena porque, em alguns outros lugares, ao menos o horror existencial é mitigado por uma capa ilusória criada pela cultura, pela pólis, pela vontade de alcançar as estrelas.

Desembarque dos puritanos na América, de Antonio Gisbert

Em menos de 24 horas, o atual presidente da República Federativa do Brasil, representante máximo da elite e classe média rastaquera que não lê e tem ódio da cultura e do conhecimento, aceitou receber a Copa América, evento que ocorreria na Colômbia e na Argentina. Embora tivessem se preparado para o evento, ambos os países desistiram. A Colômbia passa por um momento de instabilidade política severa, enquanto que a Argentina teve um aumento considerável nos casos de covid-19. Fizeram a coisa responsável ao desistirem. Logo após a desistência da Argentina, a Confederação Sul-Americana de Futebol, Conmebol, entrou em contato com o mais alucinado dos presidentes da região e conseguiu uma sede para seu torneio mequetrefe.

Alguns amigos e conhecidos apaixonados por futebol e outros esportes adoram enaltecer este ou aquele esportista por sua “consciência política”. O esporte supostamente teria um histórico de vanguarda na construção de um mundo mais fraterno desde as antigas olimpíadas gregas. Não subscrevo à tese. O esporte, incluindo o futebol, sempre foi palco da mais abjeta alienação política e existencial. E isso não teria problema, se ela servisse ao que me referi no primeiro parágrafo: a capa ilusória criada pela cultura e pela civilização humana, que nos permite viver sem entrar no desespero. Mas o fato é que, pelo menos aqui em Pindorama, todos os esportes estão longe de servirem a este propósito.

Aqui, esportes, principalmente o futebol, servem à versão mais grotesca dessa ilusão, que é a política do pão e circo — principalmente circo, já que pão costuma faltar. A diferença se traduz até no ethos dos campeonatos europeus e brasileiros. Os fanáticos pelo futebol adoram contrastar a civilidade e respeito às regras dos campeonatos gringos e a nossa barbárie de várzea brasileira. Estão certos. A causa é esta que estou colocando aqui. Porém, não sou fanático pelo futebol, portanto volto ao tema principal deste texto.

O Brasil de hoje é produto de séculos de sadismo, expropriação, mandonismo e escravidão. Não há como escapar. O caldo de mandonismo e de sadismo com aqueles considerados inferiores está presente em diversas situações cotidianas. Ele está presente quando vemos empresários intoxicados no Alphaville de São Paulo xingando e humilhando policiais militares, enquanto esses abaixam suas cabeças e aceitam. Ele está presente quando esses mesmos policiais humilhados no Alphaville pelo empresário rico vão na periferia e agridem jovens pretos e pobres. Ele está presente quando vemos uma mestiça carioca humilhar um fiscal da prefeitura, dizendo que seu marido é melhor do que o fiscal por ser engenheiro civil, apenas para depois, em entrevista, pedir desculpas e dizer que foi seu “sangue italiano” que ferveu.

Esse é o Brasil que votou em massa no atual presidente e que, em grande parte, ainda o apoia — ainda mais se for para impedir o “petê” ou qualquer outro representante da esquerda de voltar ao poder. Engenheiros, médicos, juízes, policiais, guardas da esquina, gente que só que ter o direito de poder ser preconceituosa, gente que muitas vezes nem branca é, mas quer poder humilhar e xingar índios e pretos, acreditando não ser descendentes deles. Sobre o último ponto, poderia mencionar como exemplo dois grandes jogadores de futebol, um considerado rei, o outro um eterno menino: ambos demoraram anos até perceberem que não eram brancos. São todos vítimas, mas ao mesmo tempo perpetradores de comportamentos que herdaram sem saber. A solução seria fazê-los acordar.

Sim, o algoz também é vítima de um comportamento herdado. Leia Jessé Souza: depois dos escravos, o ser que mais sofria física e mentalmente eram justamente os filhos do senhor. Eles sofriam, cresciam e herdavam não apenas as posses materiais do senhor, mas o comportamento e as crenças, reproduzindo-os num ciclo infernal interminável. Entender isso é fundamental para qualquer tentativa de mudança civilizacional. As pessoas precisam acordar antes de pararem de reproduzir um modo de ser sádico. Leia Paulo Freire: quando a educação não é libertadora, o oprimido se torna opressor quando tem oportunidade.

Mas eis que no caminho desse possível despertar surge um entrave colossal. Poucos conseguem enxergar o estrago abissal da pedra no caminho, embora muitos reconheçam o caráter histriônico da ignorância gritante que a pedra representa. Falo, é claro, do fundamentalismo religioso de vertente cristã protestante bastarda que vem há algumas décadas se aproveitando da ignorância dos brasileiros. Há quem diga que essa crítica tem um quê de preconceito contra pobres, visto que a maioria dos recém-convertidos às denominações neopentecostais são pobres. Mas aí é que está: a maior parte dos evangélicos idiotizados e escandalosos que conheci na vida não são pobres, mas de classe média e até ricos — em alguns casos, muito ricos. Engana-se quem acredita que evangélicos ignorantes e intolerantes são apenas pobres, enquanto que ricos seriam protestantes refinados. Não, os neopentecostais ricos são ainda mais ignorantes, intolerantes, toscos e escandalosos.

Os esperançosos falam que devemos acordar as pessoas, mas de qual pessoas estão falando? Se estivermos falando de fazendeiros do Mato Grosso e de Goiás que praticam grilagem, têm amantes, mas que viajam para atos pró-Bolsonaro em Brasília em caravanas de igrejas neopentecostais, pode tirar o cavalo da chuva, não vai acontecer. Também não acordarão os rebanhos de crentes que assistem palestras do empresário que nunca leu um livro na vida chamado Silas Malafaia. As raríssimas exceções — que, assim como fantasmas, ninguém nunca viu — talvez acordem. Mas o grosso da cristandade tupiniquim não irá mudar. Ainda que abram mão da figura do Bolsonaro, continuarão representando um risco civilizacional. Tenho boas razões para pensar assim.

Outro dia estava numa rede social e vi que a maioria das pessoas escrevia coisas como “o fim está chegando” e “Jesus está voltando” nos comentários sobre uma matéria falando do tal “fungo preto” que tem se espalhado em pacientes com covid-19 na Índia e agora no Brasil. Faziam as mais loucas previsões apocalípticas baseadas em associações bíblicas bastante vagabundas. Isso porque era uma matéria de um jornal tradicional brasileiro, que faz parte da vilipendiada mídia mainstream. Em outra rede social, não faltam cristãos progressistas que se acham melhores do que os pobres coitados que seguem os Malafaias da vida. Contudo, há um seríssimo problema com cristãos progressistas também, um problema talvez ainda mais insidioso, porque se traveste de progresso.

Os cristãos progressistas, na maior parte, rebatem os conservadores dizendo coisas como, por exemplo: “Jesus abraçaria os perseguidos, fossem eles gays, trans, pobres e até criminosos” e “a minha igreja e o meu Deus não compactuam com a opressão”. Até mesmo Lula já escreveu e falou coisas do tipo, inclusive recentemente. O problema é que ainda se está buscando uma justificativa religiosa para um problema que é secular, e isso não é bom. Em um texto que escrevi meses atrás, tratei brevemente da enorme influência de igrejas protestantes no movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, e como isso acabou influenciando a comunidade afro-americana a tal ponto que ela se tornou uma das que mais se opõem à causa LGBT naquele país. Antes, os negros norte-americanos costumavam aceitar gays muito mais do que os brancos. O preço da influência da igreja cristã, que de fato ajudou nas conquistas da década de 1960, foi uma maior intolerância com comportamentos considerados pecaminosos pela religião cristã.

A política num país que se pretende laico e fundado sob uma moderna Constituição republicana e democrática não deveria se fiar no que Jesus pensaria ou diria sobre este ou aquele tema. Por isso, não adianta dizer coisas como: “Os cristãos seguidores do Bozo seguem o Diabo enquanto nós, cristãos progressistas, seguimos o verdadeiro Evangelho que abraça os oprimidos”. Esperar que palavras como essas resolvam as coisas é tolice, além de ser perigoso. Você pode ter as crenças que você quiser na sua casa, mas a república é laica. Isso significa que, ao passo que podemos acreditar no que quisermos em casa, essas crenças não devem informar as leis e as regras, sob risco de deformarmos cada vez mais o Estado para que ele se curve à fé da maioria.

Mas do que estou falando? A deformação do Estado já aconteceu, e não foi só de 2018 para cá. Anos de pequenos avanços incrementais perpetrados pela loucura fundamentalista erodiram as nossas frágeis bases civilizatórias. A prova está aí para todos verem. Quando até mesmo as maiores forças da oposição progressista precisam falar de Deus e de Jesus para terem alguma chance política, é porque a linha do bom senso já foi cruzada. Nos Estados Unidos, desde a presidência republicana de Eisenhower, que instituiu o National Prayer Breakfast na agenda oficial dos presidentes, nenhum presidente americano se elege sem demonstrar (ou fingir descaradamente, como no caso de Trump) ser cristão, seja do tipo conservador ou do tipo progressista. Anos depois, na década de 1970, Jimmy Carter, um democrata, piorou ainda mais as coisas ao colocar a sinceridade da fé em Deus como tema de suma importância na disputa eleitoral.

Isso é uma lástima que está, aos poucos, ajudando a dilapidar a civilização norte-americana e seu império. Basta ver os estados americanos com as populações mais fundamentalistas e evangélicas: eles têm os piores índices de desenvolvimento humano, de pobreza, desigualdade, crime, gravidez na adolescência, etc. Costumam eleger representantes e governantes pautados na mais completa ignorância, pois são informados sobre temas importantes através de pastores analfabetos e lunáticos. Por mais que a civilização norte-americana tenha graves problemas e seja criticável, ela é uma civilização consolidada, enquanto que nós ainda caminhávamos para esse estágio. A imbecilidade fundamentalista cristã, aos poucos, tem contribuído muito para a desintegração do Estado e da civilização lá no norte. Aqui ocorre o mesmo, com a diferença de a civilização ainda estava sendo construída.


por Fernando Olszewski