Breve comentário sobre prisões de carne

Recentemente, postei um vídeo no YouTube falando sobre como, embora passar a existir seja sempre um mal, e não vir à existência nunca é ruim para a pessoa em potencial precisamente porque ela ou ele não existirão para perder todas as coisas boas da vida, as coisas não são iguais para todos aqueles que vêm à existência. Tomando emprestado o vocabulário dos antigos gnósticos, podemos dizer que todos nós nascemos em prisões de carne — exceto que, no nosso caso, não há crença em uma essência metafísica real sendo aprisionada por um malévolo Demiurgo, há apenas uma consciência biológica que não pediu para ser criada. Há, entretanto, diferentes prisões de carne.

Pintura de Xue Jiye

Algumas prisões de carne são bem menos terríveis do que outras, pelo menos por um tempo. E aqueles nas prisões menos terríveis tendem a pertencer a uma minoria específica: os privilegiados, os ricos, e aqueles que conseguiram uma quantidade significativa de poder político. No vídeo, parecia que eu estaria apontando para as mesmas coisas que tenho escrito já há algum tempo: a existência é dolorosa, nós não deveríamos impô-la a ninguém, mas tentemos mudar o sistema para aqueles que já estão aqui para que a maioria não seja explorada por poucos que detêm grande riqueza e poder político. E, apesar de ainda apoiar essa mensagem, não foi o caminho que tomei.

O que fiz foi explicar como o meu país atualmente está passando por um processo em que as instituições democráticas vêm sendo atacadas pelo atual presidente, por seus apoiadores e por uma parcela significativa das Forças Armadas, instituição historicamente reacionária e paranoica. E, no meio desse processo de erosão democrática, vi um casal de congressistas, ambos de um partido de oposição, tendo um filho. Eles postaram a notícia nas redes sociais, e ela foi seguida de comentários sobre esperança, sobre não desistir, e outras platitudes positivas. Para mim, era como se eles estivessem dizendo o seguinte:
Estou num campo de trabalhos forçados onde doenças são testadas em mim, onde posso ser aleatoriamente espancado, e um dia serei executado. Mas existe esperança e emoções, então estou fazendo mais um prisioneiro! Além do que, o futuro inexoravelmente trará uma versão melhor deste campo de trabalhos forçados.
Isso é uma visão causticamente sarcástica da situação, claro. Mas não está muito longe da realidade, especialmente se partirmos do princípio que o posicionamento correto é considerar a existência consciente e senciente como sendo sempre um mal, independentemente de quão boa acreditemos que ela seja. Então, se até mesmo nos melhores cenários, passar a existir é um mal, imagine nos cenários que estão abaixo da média. Imagine cenários horríveis. É isso que quero dizer quando falo que nem todas as prisões de carne são iguais.

De qualquer forma, faz algumas semanas desde que postei aquele vídeo, e as coisas não têm melhorado no meu país. Na verdade, as coisas têm piorado numa velocidade alarmante. Escrevi extensamente neste blog sobre a situação política do Brasil e no mundo em geral, portanto perdoe-me por presumir que você já esteja a par do fato de que a atual administração é apoiada por evangélicos ultraconservadores — nosso grupo demográfico que mais cresce — e por uma grande parcela dos militares.

Esta nação possui um histórico de suprimir até mesmo as mais modestas mudanças socioeconômicas que beneficiariam a classe trabalhadora e os pobres. Os poucos direitos trabalhistas adquiridos ao longo do século XX foram difíceis de serem conquistados e têm sido consistentemente tirados em nome da “eficiência econômica”. Supostamente, tirar direitos dos trabalhadores faria com que a economia crescesse aceleradamente, o que estimularia a contratação, o que aumentaria os salários. Nada disso ocorreu. Ao invés disso, temos uma uberização do trabalho. Dezenas de milhões agora fazem parte da gig economy, sem empregos estáveis, sem direitos, com pouco ou nenhum ganho diário. Mas tente dizer que você se opõe a isso, ou tente dizer que apoia um Estado do bem-estar social forte financiado pelos super ricos, e você será acusado de ser comunista.

Dentre as nações ocidentais ou ocidentalizadas, nós fomos os últimos a abolir a escravidão dos negros africanos, e os últimos a abolir a punição física dos escravos. Os espancamentos e açoites públicos de negros só foram considerados ilegais poucos anos antes da abolição da escravatura, em 1888, e, mesmo assim, isso só aconteceu depois de várias execuções públicas horrendas e chocantes. A lei que acabou com a escravidão foi recebida pelas elites econômicas com grande ressentimento, que pararam de apoiar o imperador e a família real, a última instituição importante herdada de Portugal pelo Brasil. Nossa realeza foi expulsa em 1889, depois da proclamação da primeira república. As elites então começaram a apoiar imigração em massa de europeus brancos e pobres. Esses novos imigrantes foram instigados pelas elites a odiarem negros e indígenas, que eram considerados inferiores e responsáveis pelos males da sociedade.

Gerações depois, e alguns golpes e ditaduras depois, nós finalmente fizemos uma Constituição decente, em 1988. A ratificação desse documento estabeleceu uma nova república. Desde então, pouco a pouco, as coisas vinham melhorando. Nossa economia cresceu a ponto de se tornar a sexta maior do mundo por pouco tempo, mesmo com todas as desigualdades e pobreza. Durante esse tempo, os pobres passaram a ganhar um pouco mais do que estavam acostumados. Mas o ressentimento de classe cresceu novamente em meados dos anos 2000, e em meados dos anos 2010 esse ressentimento atingiu níveis insanos entre os ricos e a classe média, sendo que esta é informada e doutrinada pelos ricos. Como em outros países, mesmo países desenvolvidos, uma parcela significativa da classe média toma o lado dos ricos, acreditando estar mais perto deles do que dos pobres.

Em 2016, a presidente de centro-esquerda sofreu um impeachment baseado em acusações fracas, e em 2018 a maioria elegeu Bolsonaro presidente. Por quase 30 anos, Bolsonaro foi um congressista obscuro, corrupto e teórico da conspiração de extrema-direita. Mas ele viu uma oportunidade na onda de ressentimento contra os “comunistas” (isto é, qualquer um que defende que os trabalhadores pobres têm direito a não serem servos ou escravos) e acabou apostando suas fichas políticas na eleição presidencial. Os militares, a maioria dos quais ressentia o fim da ditadura que durou de 1964 a 1985, agora dão suporte ao governo Bolsonaro. Alguns dos generais mais ilustres já disseram publicamente que eles não permitirão que as eleições de 2022 aconteçam a não ser que Bolsonaro ganhe — ou, no mínimo, eles não permitirão que nenhum candidato de esquerda vença, não importa o quão moderado ele seja, porque eles “temem o retorno do comunismo”.

Acontece que nós nunca tivemos uma revolução comunista no Brasil. A justificativa para o golpe de 1964 foi a mesma: comunistas iam (supostamente) tomar o poder, muito embora quase não havia comunistas de verdade no país, e muito embora o presidente na época, João Goulart, fosse um rico moderado de centro-esquerda. Enquanto isso, oficiais militares participam ativamente do governo Bolsonaro. Eles têm salários fabulosos, e uma das melhores aposentadorias do mundo. Só para dar um exemplo: quando nossos oficiais se aposentam, eles recebem o mesmo que recebiam na ativa pelo resto de suas vidas, e as filhas de oficiais de alta patente herdam esse privilégio, a não ser que elas se casem com alguém de papel passado — então elas apenas fazem cerimônias religiosas. Mesmo quando corrigimos os valores para euros, libras ou dólares, nossos generais aposentados ganham mais que generais americanos, franceses ou britânicos.

Mas por que estou falando sobre isso? O que isso tem a ver com as prisões de carne? Fico pensando em outras nações do mundo, especialmente na história recente, que tiveram longos períodos de estabilidade, crescimento, e relativo progresso. Imagine a Polônia no início dos anos 1920, antes da Segunda Guerra Mundial. Imagine o Irã antes do Xá — e, por pior que fosse o Xá, imagine o Irã antes da Revolução Islâmica. Pense no Brasil nos anos 1950. Claro, nenhum desses lugares era maravilhosamente estável durante os períodos que mencionei, mas havia vislumbres de melhora. As pessoas tinham esperança. E essas esperanças foram esmagadas por causa de contendas políticas, resultado de intervenções políticas imperialistas, sim, mas também porque sempre existem autocratas sanguinários e sedentos por poder em números suficientes em todas as nações, independentemente do quão estáveis elas são. E algumas nações são mais azaradas do que outras.

Notem que eu não considerei o fato de que cada um de nós nasce com um corpo distinto do qual nossas consciências não podem escapar. Alguns de nós nascem saudáveis, outros nascem doentes. A maioria de nós ficará gravemente doente, e todos nós perdemos nossa saúde em algum ponto de nossas vidas, não importa o quanto tentemos mantê-la. Os aspectos históricos, sociais e políticos de nossas existências pertencem a categorias como quando e onde. Quando ele servirá sua sentença existencial? Onde ela cumprirá sua sentença? Mas, independentemente da situação histórica, social ou política, que pode fazer a vida de um indivíduo ser melhor ou pior, nós estamos aqui por um tempo muito limitado, criados por outras pessoas que queriam filhos ou que apenas queriam se divertir, e cada um de nós habita um veículo de carne específico.

Porém, em nome da simplicidade, deixemos de lado doenças, envelhecimento e tragédias aleatórias, como acidentes e desastres naturais. Vamos fingir que todos os corpos são equivalentes em termos de saúde, pelo menos por enquanto. Ainda assim, existe um mundo de possibilidades horríveis para aqueles que passam a existir, porque nossa espécie, assim como o mundo natural que nos cerca, não é estável, mas vive num constante fluxo de violência. Nós podemos facilmente imaginar um casal na Europa oriental em 1926, vivendo numa sociedade relativamente estável, tendo um filho, esperando que ele herdasse o negócio da família — apenas para esse filho morrer assassinado por nazistas, numa vala ao lado de uma estrada congelada, em 1941.

Nós podemos imaginar outros exemplos. Um casal na América do Sul tendo crianças nos anos 50, antes da região passar por uma série de golpes militares estimulados pelos Estados Unidos, que tinha como objetivo perpetuar sua influência na região — esse casal não poderia imaginar que, em 1976, sua filha seria brutalmente torturada, morta e teria seu corpo incinerado pela polícia secreta, sem deixar rastros do que aconteceu. Até mesmo quando não levamos em conta desgraças naturais ou aleatórias, o fato é que nós nunca podemos saber os horrores que nos esperam ao dobrarmos a esquina. É aí que a citação sarcástica que inventei antes ajuda a iluminar a questão.

Nesta existência, somos forçados a realizar algum trabalho e, se não somos, temos alguém que trabalha por nós, o que é em si uma atividade que precisa ser realizada. Todos nós somos expostos a doenças, e até mesmo o mais saudável dos humanos eventualmente ficará doente. Todos nós morreremos, seja por doença, velhice, acidente, assassinato, ou outra coisa qualquer. Num universo que parece não ter propósito quanto mais aprendemos sobre ele — como escreveu certa vez Steven Weinberg, físico ganhador do Nobel — o que nos impede de percebermos nossa situação desgraçada são as nossas emoções e a nossa esperança de que algo no futuro justificará todo este sofrimento.

Muitos têm esperança de que há uma justificativa nos esperando após a morte. Mas há também aqueles que acreditam que o futuro inexoravelmente trará algum tipo de Utopia terrestre, ou algo próximo o suficiente de uma Utopia, e que esse algo justificará tudo, especialmente os sofrimentos derivados de contendas políticas pelos quais nós humanos passamos ao longo da história. Não. Não justificará.


por Fernando Olszewski