Repetição e decomposição
Mesmo estando ocupado demais para acompanhar a fundo as desgraças que são noticiadas em jornais e redes sociais, a gente sempre acaba vendo alguma coisa. E nada muda. É a mesma coisa, sempre. Um presidente atacou as instituições da república de novo. A violência e a intolerância continuam matando gente a rodo. Até o que muda de verdade já aconteceu antes. Por exemplo: o Talibã tomou conta do Afeganistão... de novo, depois de vinte anos.
Quem vive duas ou três gerações se sente como o espectador que, durante a feira, vê as performances de todos os tipos de malabaristas e, se ficar sentado na cabine, as vê repetidas duas ou três vezes. Como os truques se destinavam apenas a uma apresentação, eles não causam mais qualquer impressão depois do desaparecimento da ilusão e da novidade. ¹
As tragédias continuam, se renovam, são atualizadas. Curam-se algumas doenças e algumas mazelas, surgem doenças e mazelas novas, ou renovam-se as antigas. Mas, para o esperançoso, a luta vale a pena. Aliás, tudo vale a pena quando a alma não é pequena, não é verdade?
Se se conduzisse o mais obstinado otimista através dos hospitais, enfermarias, mesas cirúrgicas, prisões, câmaras de tortura e senzalas, pelos campos de batalha e praças de execução, e depois lhe abríssemos todas as moradas sombrias onde a miséria se esconde do olhar frio do curioso; se, ao fim, lhe fosse permitida uma mirada na torre da fome de Ungolino, ele certamente também veria de que tipo é este meilleur des mondes possibles. ²
Às vezes, nem assim abrem os olhos. Às vezes, a vontade de afirmar o mundo é tanta que, mesmo reconhecendo o show de horrores que nos cerca, o esperançoso busca fincar raízes num mundo onde nada dura, tudo derrete, tudo se decompõe. E, para piorar, ainda temos as desgraças proporcionadas pela humanidade, que preda a si mesma. Somos incapazes de impedir até as piores opressões e pobreza mesmo tendo plena capacidade de fazê-lo, o que revela traços de sadismo da nossa espécie.
“Como assim querem que todos tenham um teto e não morram de fome? Impossível! Isso é utopia!” dizem os sociopatas travestidos de tecnocratas, aqueles que acham normal pessoas passando fome e sem ter onde morar na época mais rica da história humana. Os que reconhecem ser possível tornar o mundo humano menos pior, porém, não são muito melhores. Reconhecem a dor e o sofrimento da pobreza, da opressão humana, mas não reconhecem que existe dor e opressão na própria existência, na própria natureza. Dor e opressão estão embutidas no tecido da realidade.
E mesmo quando reconhecem isso, a esperança é tamanha que acreditam que vale a pena fincarmos raízes e lutar pelo espaço da consciência. “Mesmo que não possamos acabar com os males naturais, somos capazes de construir um mundo melhor, ainda que a luta dure mil gerações!” dizem. Conseguem perceber que o mundo humano poderia ser menos pior, mas são incapazes entender que isso não significa que devamos sequer tentar se, para conseguir, for necessário criar novas consciências.
Gerar uma nova consciência nesta desgraça não é um ato de luta ou de coragem ou de esperança, é um ato de maldade mesmo. Talvez fosse necessário alcançarmos a utopia para que percebessem que a opressão causada por nós mesmos é apenas um exemplo dentre infinitas opressões, e mesmo assim é capaz de não compreenderem. Não adianta querer pintar a realidade como se ela fosse melhor do que é, embora as pessoas continuem fazendo isso incessantemente. É o que resta a elas fazer.
Decerto a vida humana, como qualquer mercadoria ruim, coberta no exterior com um falso verniz; já o sofrimento todavia é sempre ocultado. Em contrapartida, todos ostentam a pompa e o esplendor desfrutados; porém, quanto mais a satisfação interior lhes escapa tanto mais desejam apresentar-se como felizes na opinião dos outros. Tão longe vai o desvario. ³
Nada vale a pena, esse deveria ser o ditado. Mas de nada adianta falar ou escrever. Nada muda. As pessoas continuarão fazendo o que sempre fazem. Cabe apenas falar para o vazio.
por Fernando Olszewski
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¹ Schopenhauer, Parerga and Paralipomena.
² Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação.
³ Ibid.