Tenha muito medo

Ninguém tem a resposta. Sim, nós podemos ter descoberto como certos aspectos da realidade funcionam, das várias leis fundamentais da física até a complexidade dos vírus mas, embora seja louvável, isso tudo não responde outras questões muito importantes. Por que estamos aqui, qual o propósito disso tudo? Religiões e filosofias oferecem uma gama diversa de visões sobre o assunto, mas ninguém sabe com certeza.
 
Nós estamos na total escuridão quanto ao porquê de estarmos aqui. A falta de sentido até se tornou clichê. Mas, quando realmente paramos para pensar a respeito, percebemos o quão assustador é. Após não existir por uma eternidade, eu subitamente sou uma carcaça decadente que habita um lugar onde crianças desenvolvem câncer e morrem horrivelmente, um lugar onde bebês foram jogados gritando em fornalhas em sacrifício aos deuses, um lugar onde animais capazes de sentir imensa dor física são devorados vivos e desmembrados — e ninguém sabe por quê.
 
Pintura de Zdzislaw Beksinski

Esse foi um um tema central no trabalho de filósofos como Peter Zapffe, Emil Cioran e Julio Cabrera. Para Zapffe, a seleção natural cega produziu uma espécie com superabundância de consciência e inteligência. O que foi útil para a nossa sobrevivência no começo acabou se tornando contra nós quando começamos a fazer questionamentos a respeito do significado e propósito, especialmente quando ficamos face à face com os diversos sofrimentos da vida. É bastante claro que nós não apenas queremos saber se há ou não significado para nossas vidas — nós queremos que haja um significado e ponto final. É por isso que inventamos diferentes significados ao longo da nossa história.
 
Como Cioran argumenta, somos primatas que perderam seus pelos e os substituíram por ideais, o que, para ele, era o mesmo que ilusões. Para Cabrera, existir como uma criatura senciente é experimentar diferentes formas de atrito físico e mental que dilapidam constantemente o nosso ser e nos machucam, até que, um dia, o atrito nos mata. Diferentemente dos outros animais, humanos podem criar valores positivos para manter os aspectos negativos da existência em xeque, mas esses valores nunca são suficientes.

Não é surpreendente que cada um desses filósofos tenha sido a favor de alguma forma de ética antinatalista. Se há ou não alguma metaética fundamental para a qual podemos apontar e afirmar de forma inequívoca que ‘certo’ e ‘errado’ são aspectos reais do mundo, independentes de nossas mentes, o ponto é que esses filósofos defenderam a posição de que o melhor é não trazer novas consciências à existência, já que elas sempre experimentarão algum dano ou prejuízo, não importa o quão boas as suas vidas acabem sendo — e, enquanto isso, não existir nunca machucou ninguém.

Continuando nessa nota, quando se trata do aspecto metaético da condenação pessimista do nascimento, e como essa condenação é fundamentada, algumas questões são levantadas. Podemos argumentar que, sim, nós todos sofremos um prejuízo ao passarmos a existir, mas uma descrição da realidade não implica no dever moral de não procriar, a não ser que exista alguma moralidade objetiva. Cabrera responde isso escrevendo que o salto entre descrições factuais para prescrições morais não é feito através de uma lógica fria e dedutiva, mas através da combinação de elementos lógicos e emotivos (isto é, logopático): nós nunca observamos questões éticas relevantes de longe, nós mesmos também somos pacientes morais. Sempre fazemos parte do mundo e, de uma maneira ou de outra, também sofremos.

Além disso, Cabrera diz que toda teoria ética normativa apresenta escolhas ao agente moral, independentemente da metaética pressuposta. Quando nos apresentam uma série de opções, cabe a nós agirmos moralmente ou não, dentro de certa teoria ética normativa. Isto é, não importa se entendemos metaética como sendo dependente da mente ou independente da mente, objetiva ou subjetiva: nós, como agentes morais, temos que decidir se agimos moralmente ou não em determinadas situações concretas, baseados em alguma teoria ou noção normativa. Isso, claro, partindo do princípio que nós, como agentes, tenhamos alguma noção de normatividade, ainda que ela seja vaga — mas até algo simples como a regra áurea pode ser pensada como uma ética normativa.

Outro filósofo pessimista e antinatalista, David Benatar, argumentou numa entrevista que sempre existirá um vão entre descrições do mundo e declarações normativas, mas que cabe ao filósofo tornar esse vão o menor possível. Ele dá um exemplo. A ciência nos diz que nós não respiramos debaixo d'água, que é doloroso e mortal fazê-lo. Então, tudo mais constante, Benatar argumenta não ser muito difícil concluir que não devemos segurar a cabeça de uma pessoa debaixo d'água até que ela morra.

Esse exemplo pode nos fazer pensar que Benatar é um realista metaético, mas ele apenas seria um realista se descartássemos a noção de independência da mente como sendo uma característica importante do realismo moral — e nós não podemos fazer isso quanto a Benatar, porque ele admite que sempre haverá um vão entre declarações descritivas e normativas, o que significa que ele não (necessariamente) enxerga a moralidade como algo objetivo; isto é, independente das nossas mentes.

Mas eu estou divagando sobre metaética. Não é tão importante que fatos morais existam no mundo fora de nossas mentes, já que, existindo ou não fora de nossas mentes, sempre caberá a nós, como agentes, decidir como agir. Mas não cabe a nós decidirmos que o mundo — e aqui falo do kosmos, não apenas do planeta Terra — é um lugar assustador que devemos temer, e que nós, como espécie inteligente, criamos uma multitude de ilusões para nos manter vivos neste lugar assustador, geração após geração. Tais coisas são fatos.

O verdadeiro vão que nós devemos prestar atenção é o quão bem sucedida foi a separação que fizemos entre o mundo humano da cultura, religião e significado, do mundo cruel e decadente da realidade, da natureza. Que nós sempre tentamos esconder a morte e conhecimentos perturbadores das massas é reconhecido por todos que estudaram além de um certo nível. Tirando as pessoas que vivem em lugares muito violentos, poucos de nós entendem o quão frágil somos e o quão grotescos determinados eventos são.

Vejamos, por exemplo, quedas de grandes alturas ou atropelamentos por caminhões. Alguns de nós têm dificuldade de entender como uma pessoa viva, com aspirações, entes queridos, planos, pode se tornar tão diferente em questão de momentos. Fora programas sensacionalistas, mostrar (e assistir) cenas como essas é visto como mal gosto, um desrespeito às vítimas e suas famílias. Certamente. Mas essa não é a única razão pela qual coisas como essas são escondidas. Corpos destroçados causam medo, são perturbadores, e eles fazem alguns de nós questionar coisas que não deveriam ser questionadas.

Algumas profissões requerem ver cenas como essas regularmente. Profissionais de emergência, legistas, padres, rabinos, monges. E, apesar de legistas e médicos de emergência comumente dizerem que eles estão acostumados, que não é nada demais, nenhum dos profissionais que mencionei recomenda que todos devam ver coisas como essas regularmente. Cenas como essas nos dessensibilizam, o que é ruim em si mesmo de uma forma sociológica e até criminal. Mas, além de dessensibilização, olhar ou experimentar em primeira mão determinados horrores pode também nos fazer questionar a importância ou o significado de tudo. Afinal, “como podem falar sobre a santidade da vida humana quando nós ou alguém que amamos pode acabar daquele jeito?”

Esqueça acabar daquele jeito, e quanto à dor de ser estraçalhado e viver tempo suficiente para sentir o processo de estraçalhamento? E quanto à dor de ver entes queridos passar pelo inferno, seja na forma de acidente, violência, doença física ou mental? E quanto aos inúmeros tipos de dores físicas e mentais que nos aguardam? Nós nos esquecemos que coisas que nos machucam existem em muito mais abundância e são muito mais intensas do que os prazeres e os estados de consciência positivos que a vida tem a oferecer. Nada disso testemunha a favor de uma noção de santidade que possa ser atribuída à vida. Gostaria de propor então uma nova rota para a ética antinatalista: medo. O medo é uma resposta natural que animais têm quando são ameaçados de alguma forma. O medo ajudou a humanidade a sobreviver e prosperar por centenas de milhares de anos. Antes de termos a linguagem, tivemos o medo.

Agora que nós atravessamos todo esse percurso e percebemos que todos os mitos e grandes significados que atribuímos para nossas vidas são mentiras que desenvolvemos ao longo do tempo para que nós não tivéssemos tanto medo — pois o medo paralisante nos tornaria em presas fáceis —, talvez seja hora de entendermos que alguns grandes medos são perfeitamente justificáveis.

Ao invés de administrarmos nossos medos ou abraçá-los, deixemos quieta esta ilha de horrores no meio de um universo árido após partirmos, aproveitando cuidadosamente os anos que ainda nos restam. Caso contrário, nós continuaremos criando novos seres amedrontados que terão que render parte de sua capacidade cognitiva a uma ilusão que mascara o quão assustadora a realidade é, num esquema de pirâmide interminável — um esquema que, queiramos ou não, acabará um dia, provavelmente de maneira abrupta e violenta, já que nada dura para sempre, nem mesmo nossa brilhante e bem sucedida, porém perdida e ignorante espécie.

por Fernando Olszewski