A era da loucura total: por que nós deveríamos rechaçar teóricos da conspiração e alucinados
Certamente, cada momento da história pode ser considerado estranho, esquisito ou cheio de tolices. Não posso afirmar com total confiança que nosso tempo tem a maior quantidade de besteiras de todos os tempos, porque isso provavelmente não é verdade. Porém, para uma civilização global que acredita ser o auge das realizações científicas e tecnológicas humanas — e com razão, nenhuma época anterior à nossa avançou tanto em ciência e tecnologia — certamente temos muita estupidez perniciosa por aí. É preciso haver ênfase na palavra “perniciosa”, porque a estupidez da qual falo não são superstições inofensivas como bater na madeira. Na verdade, as pessoas estão morrendo às centenas de milhares. Democracias representativas históricas, que normalmente são estáveis, correm risco de se tornarem regimes autoritários baseados em teorias de conspiração absurdas. O vírus da estupidez se espalha por toda parte e é tudo menos inofensivo, infectando até mesmo indivíduos que são inteligentes e talentosos em suas vidas profissionais.
Fui repreendido recentemente por um antinatalista que falava espanhol por “aceitar a narrativa oficial” sobre o covid-19. Narrativa oficial, essas foram suas palavras. Ele afirmou que eu era “escória” por querer “criminalizar o negacionismo do covid”. Sim, ele usou a palavra escória. Francamente, não me lembro ter dito ou escrito que aqueles que negam que há uma pandemia deveriam ser considerados criminosos, mas, honestamente, isso não soa tão ruim no momento, dado o que vi a negação da covid-19 fazer ao mundo e especialmente ao meu país. É preciso que eu dê alguns exemplos. Eu tinha um amigo dos tempos em que me identificava com a direita política — conservadorismo, liberalismo, esse tipo de coisa. Fazia alguns anos que não falava com ele, o que era bom, já que nossos pontos de vista se tornaram bastante incompatíveis. Em meados de 2020, com cerca de três ou quatro meses de pandemia aqui no Brasil, recebi a notícia de que ele havia morrido de covid-19. Fui então ao seu perfil no Facebook e não fiquei surpreso ao ver que era um santuário dedicado ao Bolsonaro e às merdas que os brasileiros de extrema-direita defendem. Tinha muito conteúdo negacionista na página dele, também.
Criança sendo oferecida a Moloch, de Charles Foster |
Sendo bem sincero, não me senti muito mal, exceto por seus filhos. Ele havia se casado alguns anos antes e tinha dois filhos pequenos. Não sei se a esposa dele também morreu ou não, e nem me importei o suficiente para procurar saber. Meu sentimento era de raiva pela estupidez com a qual ele voluntariamente se infectou. Em dezembro de 2020, minha mãe e eu tivemos covid-19, diagnosticado pelo teste PCR. Tivemos todos os sintomas, mas os meus foram mais fortes. Febre, dor, dificuldade para respirar. Curiosamente, só notei uma perda profunda do olfato e do paladar depois que me recuperei da febre e das dores no corpo. Em algumas semanas, pude sentir o gosto da comida novamente. O olfato demorou mais para voltar. A pandemia assolaria o Brasil no primeiro semestre de 2021. Durante aqueles meses, as coisas pioraram muito, principalmente porque Bolsonaro e seus generais fizeram de tudo para impedir que as vacinas chegassem ao país ou fossem feitas aqui. O Brasil sempre teve um dos melhores programas de vacinação do mundo, e isso mostra o quão bizarra é toda essa situação — nunca fomos terreno fértil para movimentos antivacina.
Isso significa que Bolsonaro e o exército brasileiro — que historicamente sempre defendeu ideias de extrema-direita — abraçaram uma teoria da conspiração estrangeira apenas porque ela ressoa com a direita norte-americana. Felizmente, como temos uma longa história de programas de vacinação bem-sucedidos, a maioria da população aceitou as vacinas e não engoliu as mentiras genocidas espalhadas por movimentos antivacina e negadores da pandemia. E por causa dessa longa tradição de aceitar vacinas, até mesmo a maioria dos seguidores do Bolsonaro se vacinou, depois que a vacinação finalmente começou. Mas, embora eles tenham se vacinado, continuaram repetindo na internet o discurso antivacina de Bolsonaro. Há muitos casos de brasileiros ricos pregando contra a vacina que acabaram sendo expostos como tendo recebido até mesmo a dose de reforço. Isso deixa qualquer pessoa pensante com a impressão de que seu objetivo é matar o máximo de pessoas pobres e ignorantes que puderem, enquanto eles próprios se salvam da doença. Uma diminuição no número de trabalhadores pobres normalmente significa aumento de salários. Mas nossa classe rica não se preocupa em perder dinheiro, desde que o pobre sofra ou morra. É uma coisa sádica com eles. A maioria dos brasileiros ricos gosta de ver os necessitados sofrer. Esta não é uma opinião. Há muita literatura acadêmica que dá suporte a essa afirmação.
Depois de ser chamado de escória por apoiar a ciência e falar contra negacionistas da pandemia, fui abordado por outro antinatalista que disse que os antinatalistas são um grupo diversificado, com opiniões diferentes, e que eu não deveria ficar chateado por alguém não compartilhar das minhas opiniões quando se trata da pandemia de covid-19. Como exemplos, essa pessoa disse que existem alguns antinatalistas que são politicamente de esquerda, enquanto outros são conservadores, alguns são teístas, enquanto outros são ateus, e assim por diante. Ele até tentou comparar a situação pela qual passei — ser chamado de escória por defender a ciência — com discussões entre comedores de carne e veganos. De acordo com essa pessoa, que por acaso é vegana, era muito pior haver antinatalistas que comem carne do que antinatalistas antivacina e negadores da covid. Eu discordei completamente. Algumas coisas não são opiniões. Algumas coisas não são discutíveis. Pode-se sentir que, talvez, como o próprio antinatalismo é uma posição ética minoritária, podemos acreditar que já defendemos uma loucura total. O melhor, então, seria abrir as comportas e dar boas-vindas a todos os malucos que estão por aí, certo?
Errado. Primeiro, sobre o veganismo. O veganismo é algo que pode ser debatido racionalmente. Na verdade, embora eu não seja vegano, não tenho como não aceitar que eles têm posições intelectuais e morais elevadas. Basicamente, eles estão certos, ou pelo menos têm os melhores argumentos, ao meu ver. As razões pelas quais eu não sou vegano se devem principalmente a outros fatores que não me fazem me sentir nada bem. Agora vamos falar de Deus e de política. Quando se trata da existência de Deus ou de qual postura política é correta ou não, podem haver debates e discussões saudáveis — isso quando ambas as partes aceitam acatar as regras do jogo, como se costuma dizer. Esses debates podem ser bastante acalorados, até. Quando aceitamos que existem regras e que podemos acabar discordando sem ter que nos matar ou destruir um ao outro, ou mentir para subjugar o outro, então uma conversa é possível. Isso não é o que antivaxxers, negadores da covid, terraplanistas e seguidores do QAnon fazem, porque eles veem o próprio campo de debate como sendo manipulado por agentes ocultos, agindo em favor da “elite globalista” ou alguma outra merda. Eles não estão interessados em um debate real, pois já têm sua resposta, declarada como artigo de fé inquestionável — e os contrários não têm direito de não concordar; são inimigos e devem ser destruídos. E, para não dar a impressão de que bato apenas no campo da direita política: sim, isso também ocorre na esquerda. Tankies, devotos acríticos de Domenico Losurdo, fãs da filosofia de Estado norte-coreana, a Juche — muitos tendem a agir dessa forma.
Agora vamos tratar do antinatalismo. Considerar o nascimento um evento negativo, embora seja uma visão minoritária, não é uma ideia nova na filosofia, literatura, poesia e religião. A ideia de que seria melhor se nenhum ser consciente jamais tivesse nascido está presente na Bíblia, nas escrituras budistas, nas grandes tragédias gregas e nas filosofias de Arthur Schopenhauer e Emil Cioran. Ou seja: existe há muito tempo e, embora seja algo defendido por poucos, as pessoas discutem normalmente. Considere dois filósofos contemporâneos que defendem o antinatalismo: Julio Cabrera e David Benatar. Ambos são capazes de debater o antinatalismo, às vezes acaloradamente, mas na maioria das vezes calmamente e de maneira civilizada. Nenhum sente a necessidade de assassinar a pessoa com quem está debatendo, independentemente de quão tenso o debate fique. Na verdade, quando comentários violentos são feitos, são sempre as pessoas com visões mais convencionais com as quais eles debatem que acabam querendo encerrar violentamente a discussão. Cabrera e Benatar têm uma visão minoritária, mas seguem as regras de uma discussão saudável. Não é isso que os violentos teóricos da conspiração fazem, nem de longe. Especialmente aqueles que espalham desinformação e teorias da conspiração durante uma maldita pandemia mortal. Eles são como sociopatas que, durante um incêndio em um prédio, dizem aos moradores que está tudo bem, que eles devem ficar em seus apartamentos — enquanto isso, os bombeiros estão na rua com um megafone pedindo desesperadamente para que os moradores desçam as escadas com porta corta fogo.
Alguém pode dizer: “mas e se Cabrera ou Benatar se revelarem negacionistas da covid e antivaxxers? Isso destruiria seu argumento.” Não destruiria. Desde que eles não começassem a misturar suas teorias da conspiração incrivelmente extravagantes e malucas ao discutir a filosofia que atribui um valor negativo ao nascimento, nada mudaria. Se isso acontecer, azar, eles não serão mais levados a sério, e com toda a razão. Mas, honestamente, não acho que nenhum deles adote pontos de vista loucos como esses. E lembre-se: há muitos assuntos sobre os quais as pessoas podem discordar profundamente. Posso estar completamente errado, mas acho que Cabrera e Benatar provavelmente não estão na mesma página minha no que concerne à política, especialmente quando se trata de tópicos específicos. Mesmo quando tratamos de ética, um assunto da filosofia, sei que não concordo com certas posições de Cabrera — por exemplo, ele argumenta que o aborto não é ético em qualquer fase da gravidez, algo que discordo totalmente, pois aceito os dados científicos que mostram que nas primeiras quinze a vinte semanas não há nenhuma consciência incipiente no feto, devido à inexistência das conexões talamocorticais. Discordar em política, filosofia e religião pode levar a debates acalorados, com certeza. Mas isso é muito diferente de quando uma pessoa começa a pregar que a pandemia de covid-19 é parte da “agenda globalista” e que “vacinas têm nanochips satânicos-luciferianos-comunistas que roubam nosso livre arbítrio.”