Deus não é bom o tempo todo

Deus não é bom o tempo todo. Aliás, Deus não é bom quase hora nenhuma. É necessário deixar isso claro porque a frase “Deus é bom o tempo todo” tornou-se clichê nos últimos tempos. Ela está em toda parte: em adesivos, em vídeos curtos produzidos para redes sociais, em memes, em tatuagens. Mas nem mesmo quem a propaga acredita na sua mensagem de verdade. É que nenhum deles perde tempo refletindo sobre. E se perdesse, criaria uma série de artifícios para esconder de si o fato de que, quando observamos o mundo e as nossas próprias vidas, Deus quase nunca é bom; isso partindo do princípio que Ele existe e não é apenas uma ilusão, é claro. Eu não acredito no Deus do tosco senso comum, nem no senso de teologias afirmativas complexas, como as de Agostinho ou Aquino. Até mesmo a teologia apofática das igrejas ortodoxas e orientais, embora mais interessante, no final dá no mesmo para mim. Ao meu ver, na teologia apofática, depois de negarmos que exista uma equivalência ou analogia entre Deus e a última partícula da existência, só sobra o nada: Deus é um imenso vazio, um nada.
Sempre que penso na solidão austera, vejo sombras cinzas lançadas nos desertos pelos monastérios, e tento entender aqueles tristes intervalos de piedade, seu tédio triste. A paixão pela solidão, que engendra o “absoluto monástico” — aquela total vontade de se enterrar em Deus — cresce em proporção direta à desolação da paisagem. Vejo olhares quebrados pelas paredes, corações sem tentação, tristeza desprovida de música. O desespero nascido dos implacáveis desertos e céus trouxe um agravante à santidade. A “aridez da consciência”, sobre a qual os santos reclamam, é o equivalente psíquico do deserto exterior.  A revelação inicial de qualquer monastério: tudo é nada. Assim começam todos os misticismos. Há menos de um passo entre o nada e Deus, porque Deus é a expressão positiva do nada. ¹
Já escrevi antes sobre a minha controversa relação com o divino. Gosto das metáforas gnósticas e marcionistas, que tratam a existência material como a obra imperfeita e irredimível de um demiurgo bastardo. Para os gnósticos, o demiurgo é um monstro parido na imperfeição, gerado em segredo por um dos eons que habitam o pleroma, que é emanado (ou seria secretado?) pela divindade una, profunda, inatingível e insondável. No caso do marcionismo, não há tanta complexidade cosmológica, nem a redenção através do conhecimento místico. Há apenas a salvação pela fé, que ocorre através da aceitação de Cristo como mensageiro do Deus que está acima do demiurgo, que é identificado como o Deus do Velho Testamento — identificação essa que ocorre também nos diferentes tipos de gnosticismo, mas com todas as complexas cosmologias que diferentes grupos gnósticos criaram, com seu pleroma e seus eons. Agrada-me a ideia de que nossas essências — sejam elas almas, espíritos ou o que seja — estão aprisionadas em corpos materiais e que devemos — através da gnose ou da fé ou da meditação — escapar da existência material.
Deus criando o Sol e a Lua, de Michelangelo
Essa ideia está presente também nos diferentes tipos de budismo e nas diversas vertentes do hinduísmo — embora no caso do budismo não exista uma divindade criadora e, se existe, Sidarta Gautama fez questão de não falar dela. Para o Buda, tal força criadora, no final das contas, não importava tanto quanto escapar do samsara. Contudo, no final do dia, por mais que admire e fique tentado, não consigo me fazer acreditar em nada disso. São metáforas bonitas e só. Mas não é nada disso que as pessoas querem dizer quando evocam Deus e dizem que Ele é bom o tempo todo. No contexto do Brasil atual, esse Deus é quase que certamente uma imagem costurada por pastores de igrejas neopentecostais, que seguem o evangelho da prosperidade e curas milagrosas. Isto é: essa divindade encarnou em Jesus, mas quer muito que você, fiel, entenda que o verdadeiramente importante na Bíblia é o Velho Testamento. O Novo Testamento, para eles, acaba sendo apenas um apêndice onde Jesus aparece para confirmar tudo do Antigo, ao ponto de pastores se fantasiarem de rabinos contemporâneos, o que não deixa de ser hilariante, visto que na época de Jesus rabinos não se vestiam daquela forma, e poucos séculos antes de Jesus eles nem existiam.

Mas, apesar da minha descrença, isto está longe de ser uma daquelas inúmeras e exaustivas tentativas ateístas de argumentar contra a existência de uma divindade criadora benevolente e onipotente argumentando que tais atributos são incompatíveis uns com os outros. Não, é pior do que isso. Neste texto, entretenho a ideia de que Deus existe ou possa mesmo existir, apesar da minha total descrença, especialmente nesse Deus em particular. Sejamos honestos uma vez na vida: o Deus dos quais as pessoas estão falando ao dizerem ou escreverem “Deus é bom o tempo todo” é um meme, nada mais. Recentemente, um amigo — abraço, Luciano! — apontou uma passagem da Bíblia em que o Todo-Poderoso afirma com todas as letras o que estou dizendo: Ele está longe de ser bom o tempo todo. Em Isaías 45:5-7, encontramos o seguinte:
Eu sou o Senhor, sem rival, não existe outro Deus além de mim. Eu te cingi, quando ainda não me conhecias, a fim de que se saiba, do levante ao poente, que nada há fora de mim. Eu sou o Senhor sem rival; formei a luz e criei as trevas, busco a felicidade e suscito a infelicidade. Sou eu o Senhor, que faço todas essas coisas. ²
Essa é a tradução católica da Bíblia Ave Maria. A tradução protestante Almeida Corrigida Fiel é ainda mais contundente:
Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cingirei, ainda que tu não me conheças; Para que saiba desde o nascente do sol, e desde o poente, que fora de mim não há outro; eu sou o Senhor, e não há outro. Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas. ³
E como apenas um completo idiota — e escrevo isso com total respeito, pois falo aqui de pessoas com seríssimos problemas cognitivos que precisam de ajuda para manterem-se vivas — crê que vivemos em uma realidade na qual há muito mais luz do que trevas, felicidade do que infelicidade, e paz do que mal, fica patente que, se levarmos ao pé da letra o que o próprio Deus fala na Bíblia, não, Deus não é bom o tempo todo. Pelo contrário, ele é mau a maior parte do tempo. A coisa fica ainda pior quando pensamos que nós não julgamos o caráter de uma pessoa apenas averiguando a quantidade de ações boas e ruins que ela promove. Uma pessoa pode fazer caridade a vida toda, mas se descobrem que ela é assassina em série e matava mulheres e crianças de maneiras grotescas e absurdamente dolorosas, uma vida inteira de caridade não altera o julgamento que faremos dela: essa pessoa será vista como má, e com razão. Mas Deus nem sequer causa bem e mal em quantidades iguais, então a coisa piora muito. Além do que, todos nós nascemos para morrer. A maioria dos humanos morrem de doença, de velhice ou ambos — portanto nem daria para colocar na conta da violência que causamos uns aos outros.

Um fanático pode dizer: “Mas Ele é o criador e o senhor de tudo, logo pode se dispor de nós como bem entender!” Isso não serve de desculpa para pais e mães que maltratam, torturam e até matam seus filhos com requinte de crueldade. Essa desculpa também não serve para chefes de estado ou executivos de empresa bilionários. Imagine só um presidente ou monarca constitucional saindo na rua e matando indiscriminadamente. Mesmo monarquias absolutas e ditaduras brutais, embora sejam violentas e durem múltiplas gerações, um dia correm o risco de serem derrubadas devido ao cansaço do povo e até dos “amigos do líder”. Ingleses e franceses decapitaram reis há poucos séculos atrás. Há poucas décadas atrás, os romenos fuzilaram o sanguinário Ceausescu e sua maligna esposa sem piedade no meio de uma viela. Chega uma hora em que muitos povos cansam de seus déspotas. Não todos os povos, claro, mas muitos. Dizer que Deus nos criou, que Ele criou o universo, não justifica sua maldade. Sim, não há muito que possamos fazer, somos como formigas dependentes de uma criança sádica. Porém, se Ele nos permite formar um juízo sobre seu caráter sem interferir naquilo que pensamos, o juízo que qualquer ser pensante deve formar é este: Deus é mau.

Você pode acreditar n'Ele e adorá-Lo. Não tem problema. Inclusive a frase “sou temente a Deus” faz muito mais sentido quando pensamos em Deus como uma entidade lovecraftiana, como Cthulhu, Azathoth ou Yog-Sothoth. Agora, a ideia de uma divindade camarada que se importa tremendamente conosco é completamente fictícia quando utilizamos a definição que nos é dada por Ele na própria Bíblia. Não adianta chamar de mistério, como muitos cristãos fazem ao tratar da trindade divina. Não há mistério algum. Qualquer outro ser consciente de suas ações que nos tratasse da forma que Deus nos trata seria considerado um monstro, e isso só seria agravado no momento em que tal ser dissesse algo como: “te trato mal na maior parte do tempo, mas é para o seu bem, tente não compreender, é um mistério. No final das contas eu sou mais que benevolente, eu me confundo com a definição de bondade!” Não dá para aceitar uma coisa dessas. Teria que desligar até as partes mais fracas da minha cognição para confiar em alguém assim. Um dia, quando fui jovem, acreditei em Deus. Hoje, se Ele se manifestasse inequivocamente no meio da Baía da Guanabara, a única coisa que sentiria seria pavor e ressentimento, nada mais.

por Fernando Olszewski

Referências:
1. CIORAN, E. Tears and Saints. Tradução para o inglês de Ilinca Zarifopol-Johnston. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.