O papel do conflito (ou: a preferência pela não-existência)

A liberdade guiando o povo, de Eugène Delacroix

Recentemente, assisti pela primeira vez a um programa inteiro do Flow Podcast, onde os convidados eram Rogério Skylab, Supla e Rafael Bittencourt. Os três são músicos. Rogério Skylab é conhecido por suas letras transgressoras e hilárias, Rafael Bittencourt foi guitarrista da banda de metal progressivo Angra, e Supla dispensa introdução, visto que se tornou uma dessas figuras mitológicas a nível nacional. Skylab também já é uma figura mitológica a nível nacional, mas acredito que não seja tão conhecido. Bittencourt é conhecido, mas principalmente entre fãs de metal, e sua personalidade não o torna um desses personagens pitorescos.

Discutiu-se bastante política e história recente durante a transmissão e gravação. Tanto durante quanto depois do debate, através das redes sociais, Skylab bateu em cima das opiniões insossas, das frases de efeito e das ideias do senso comum de Bittencourt e Supla — principalmente as de Bittencourt. No caso Bittencourt, Skylab foi bastante enfático durante a gravação quanto a sua total palidez intelectual e falta de noção básica de filosofia política. Em muitos momentos, chegou a ser constrangedor ver o sujeito naquela situação, sem ter a mínima noção de onde pisar enquanto conversava com o Rogério.

Certa hora, Rafael tentou dizer que, para uma sociedade funcionar, deveria haver o respeito, e que o respeito deveria ser inculcado desde cedo nas crianças durante o aprendizado, dessa forma não haveria tanto bullying nos colégios e a sociedade adulta seria menos desgraçada. Skylab ficou ensandecido com essa proposta ingênua e típica de uma classe dominante que se acredita pensante mas que, no fundo, não passa de uma ideia mantenedora do status quo brutal em que vivemos. Ele retrucou, dizendo que Bittencourt não entendia o papel fundamental do conflito na vida humana, na política, na história. E eu acrescento: na existência. Concordo com Skylab na sua crítica a tipos como Rafael Bittencourt.

Para tipos como os de Bittencourt, basta que sejamos respeitosos que as coisas começam a mudar. Membro de uma classe historicamente dominante, ele não percebe que, há poucas gerações atrás, estaria defendendo o modo de produção escravagista baseado na raça. No máximo, caso fosse um pouco mais progressista, defenderia mudanças graduais. Mas é bem provável que nem isso fosse. É provável, aliás, que fosse mais um defensor violento e detestável da escravidão. Claro, tipos assim não se imaginam dessa forma, e caso voltassem no tempo, com os olhos de hoje, talvez não fossem entusiastas de opressões passadas. Talvez até acordassem e fossem enfaticamente contra. Porém não existe viagem no tempo. O que podemos fazer é lembrar o que tipos como ele, membros da classe e da etnia dominante, fizeram no passado em suas respectivas sociedades.

A escravidão no Brasil acabou sem conflito. Quer dizer, houve conflito, vários inclusive, mas eles não foram tão determinantes para o fim da escravidão. A escravidão acabou por pressões políticas internas e externas 1. O papel do conflito é realmente fundamental na vida política e na história dos homens. Mas é aqui que eu começo a me separar de Skylab — sem, contudo, ir para o lado de Bittencourt e sua ideia ingênua de respeito. É verdade que o grosso do progresso civilizatório humano veio através do conflito. Fosse na forma de debates enfáticos e protestos não-pacíficos, ou na forma de guerras e revoluções. Neste ponto, a Revolução Francesa serve de marco não só na França, mas para o mundo todo. Ali fica claro que o Velho Regime, ainda ligado ao feudalismo embora já estivéssemos na modernidade, estava acabado. Seus dias estavam contados não só na França, mas ao redor do mundo.

Foi uma revolução violentíssima. Através dela veio progresso. Mas tanto a revolução quanto as guerras que surgiram a partir dela produziram uma quantidade de mortos e feridos muito superior a qualquer guerra anterior. Isso significa que o medievo era melhor? Não. Só significa que o progresso traz consigo muito sangue. Não à toa Hegel disse que os tempos de paz são as páginas em branco da história 2. Porém os tempos de paz não são pacíficos, tranquilos, harmoniosos. Há tensões neles, reconhecidas e apontadas pelo mais famoso dos discípulos de Hegel, Marx 3. São esses tipos de tensões, tensões de classe, tensões entre dominantes e dominados, que pessoas como Bittencourt parecem desconhecer e desconsiderar como irrelevantes ao proporem que a resposta para todos os problemas da sociedade deve ser o respeito. Como respeitar enquanto se está sendo oprimido?

O que me separa de Skylab não é reconhecer essas coisas. Como escrevi anteriormente, reconheço que o conflito vai além: a própria existência é conflituosa, algo que Hegel 4 também reconhecia. Um grão, para se transformar em planta, nega a si próprio, deixa de ser um grão e se torna a planta. Animais se dilaceram o tempo todo. E nós humanos também nos dilaceramos, muitas vezes para nada, mas sempre avançamos na nossa história ao longo do tempo, e em muitos aspectos avançamos em termos de progresso civilizatório, científico e tecnológico. O custo é alto, mas os avanços ocorrem. Contudo, quais são suas garantias? Elas não parecem existir.

Nos Estados Unidos, a escravidão acabou com conflito, diferentemente do Brasil. Logo depois, o sul foi deixado relativamente livre para impor leis de segregação racial e opressão dos negros. Quase um século depois da Guerra Civil Americana, na década de 1950, foi necessário um movimento de direitos civis forte e nova legislação federal para a coisa mudar — mas a coisa não mudou completamente, ela tornou-se mais implícita. Ao invés da segregação explícita, há até hoje uma óbvia e mensurável segregação implícita, e não apenas no sul dos Estados Unidos, mas em todo o país 5, 6.

Ou seja: os norte-americanos tiveram uma brutal guerra civil, houve o progresso do fim da escravidão, porém, mesmo assim, eles continuam sendo um país extremamente racista. O Brasil não teve guerra civil, mas é um país extremamente racista. Podemos dizer que em ambos os países ainda há conflito a ser realizado — e ele está sendo feito, o combate contra o racismo e contra diversos outros tipos de dominações está acontecendo. Contudo, em muitos aspectos, estamos estagnados. Isso para não dizer que estamos retrocedendo. Alguém que não defenda a barbárie neomedievalista negaria que os últimos anos no Brasil, e também nos Estados Unidos, foram de retrocessos civilizatórios?

Sim, a vida toda é conflito, inclusive a humana, que é o conflito elevado à enésima potência. O que me separa de Skylab é o que separaria Schopenhauer dele, é o que separaria Cioran dele, é o que separaria qualquer pessimista que rejeita o devir de qualquer pensador que abraça o devir, seja explicitamente ou implicitamente. Ironicamente, Nietzsche não estaria separado dele. Apesar de toda a sua crítica ao hegelianismo e às filosofias da história 7, Nietzsche está junto de Hegel e todos os outros pensadores que abraçam o devir, que não rejeitam a existência. Nietzsche defende o devir, com toda a sua dor, de forma explícita e enfática. Ele afirma ser impossível julgarmos a vida estando dentro dela 8, um argumento pobre segundo Julio Cabrera, outro pessimista rejeitador da existência.

Já Hegel e seus descendentes intelectuais defendem o devir de forma mais implícita. Podem dizer que não é bem assim, que não fazem um julgamento de valor e que são neutros quanto ao devir, quanto à existência recheada de conflito. Mas isso é problemático e não convence nem a eles mesmos. Por exemplo: muito se fala sobre como estar neutro ou imparcial entre a civilização e a barbárie fascista é o mesmo que escolher o lado da barbárie fascista. Eu concordo que seja. E creio que boa parte dos hegelianos contemporâneos diriam o mesmo — ainda que, talvez, nem todo hegeliano concorde com essa definição dos lados; isto é, ainda que possam haver alguns hegelianos que sejam de direita e acreditem que a barbárie está do outro lado do espectro político.

Sustento aqui a tese de que ficar neutro entre civilização e barbárie é escolher a barbárie, ainda que de forma implícita, ainda que o sujeito neutro acredite estar com as mãos limpas. Da mesma forma, sustento que permanecer neutro com relação ao devir e sua brutalidade é o mesmo que apoiá-lo implicitamente, ainda que o sujeito neutro acredite estar com as mãos limpas.

Essa neutralidade equivale a um apoio implícito: está se dizendo que, sim, quando zebras são estraçalhadas vivas por leões na savana, isso é necessário, talvez até belo; e que quando humanos morrem, seja da causa que for e pelo motivo que for, isso é necessário, talvez até belo. As dores e desgraças do devir, do qual a humanidade faz parte embora acredite ser diferenciada, são implicitamente aceitas como necessárias, parte de um processo que se desenrola através do conflito, da negação e da superação — supostamente até a perfeição, no caso da humanidade.

O que chamamos de injustiças, o que vemos como violência, genocídio, mortandade, são parte do processo que é existir. Perante esse diagnóstico, defendo que só existem duas alternativas: abraçá-lo ou rejeitá-lo. Essas duas alternativas se dão de duas maneiras: explícita e implicitamente. Não há neutralidade real perante a política, por que deveria haver perante a existência? Só se voltarmos a Nietzsche e à sua ideia de que é impossível julgar a vida ou existência estando dentro dela — e como só há vida ou existência, como não há nada do outro lado, não podemos realizar nenhum julgamento. Até mesmo hegelianos acabam tendo que concordar com esse pensamento nietzscheano (mas só o farão implicitamente, por razões óbvias). Contudo, Cabrera rebate o argumento nietzscheano:
[...] não se precisa postular um mundo ideal, eterno e imutável para avaliar “negativamente” esta vida, ética e sensivelmente. De fato, a vida humana pode ser vista como terrível sem precisar de qualquer comparação com “outra vida” melhor ou sublime, mas simplesmente em virtude de seu mero valor de impacto (ou de mal-estar), tal como se manifesta em humanos. Se estou sendo torturado, ou preso num campo de concentração, isso é muito ruim pelo seu valor de impacto, e não por comparação com uma situação ideal na qual isso não estaria acontecendo. O sofrimento é pontual e crava seus dentes na pele dos humanos. Este mundo não nos “decepciona” (por ter frustrado algum ideal sublime), mas, pura e simplesmente, nos fere e humilha. Auschwitz não é horrível por ser comparado com um passeio pelos Champs Elysés. É simplesmente horrível. Qualquer sofrimento está concentrado num ponto da minha existência que dispensa qualquer comparação com um “mundo melhor”. 9
Refutando a ideia de que a vida sempre retorna, que é impossível julgarmos a vida pois sempre estamos dentro dela, Cabrera continua:
Que a vida teime em voltar mesmo quando a tenhamos negado é uma constatação que mais confirma a visão ético-negativa do que a desqualifica. Precisamente, a vida pontualmente árdua e machucante, desanimadora e moralmente inabilitadora, não pode nunca ser totalmente negada uma vez instaurada, nem mesmo se abstendo de procriar, nem mesmo aceitando a própria morte. Mas disso não se infere o amor fati de Nietzsche, a aceitação vital e bárbara da vida com todas suas agruras (isso, como dito, é apenas uma possibilidade). Também poderia inferir-se daí o horror fati, o espanto diante de uma força destruidora da qual não podemos nos livrar. É claro que a vida “volta pela porta dos fundos”, mas é isso precisamente o que fecha o círculo: além dos atritos que o ser-terminal constantemente nos inflige, é impossível escapar deles. A única coisa a que podemos almejar é termos conseguido salvar alguém, pela abstenção, de ficar submetido a esses atritos. 10
Como podemos ver, podemos sim julgar a existência e a vida. É o que fazemos o tempo inteiro, seja de uma forma aberta ou de uma forma silenciosa. Não há neutralidade. Sim, se for para nos perpetuarmos indefinidamente no devir, que entendamos o papel do conflito, que é fundamental. Aliás, mesmo se não quisermos individualmente perpetuar o devir, é bom aprendermos o papel do conflito, justamente para que não sejamos ingênuos de acreditar em soluções mágicas para tensões reais. Mas não é necessário que nos perpetuemos para sempre, e é perfeitamente válido que rejeitemos a existência.

Por Fernando Olszewski


Notas:
1. LEAO, D. A abolição da escravatura brasileira. Politize!, 2021. Disponível em: https://www.politize.com.br/abolicao-da-escravatura-brasileira/
2. HEGEL, F. A Razão na História. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2001. p. 73.
3. MARX, K. ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de Luis Claudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 28-29, pp. 48-52.
4. HEGEL, F. op. cit., p. 129.
5. GATES JR, H. How Reconstruction Still Shapes American Racism. Time, 2019. Disponível em: https://time.com/5562869/reconstruction-history/
6. CIVIL War to Civil Rights. NPS, 2020. Disponível em: https://www.nps.gov/civilwar/civil-war-to-civil-rights.htm
7. NIETZSCHE, F. Segunda consideração intempestiva. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. E-book. p. 54.
8. NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. Tradução de Paulo César de Souza. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. E-book. pp. 52-53.
9. CABRERA, J. Mal-estar e moralidade: situação humana, ética e procriação responsável. Brasília: Editora UnB, 2018. p. 651.
10. Ibid., p. 652.