Bolsonaro e Liberdade!
O que escrevo aqui já foi dito e escrito por mim em conversas com amigos e em postagens nas redes sociais. Falo do fenômeno Bolsonaro e sua capacidade de fazer frente a Lula, um dos políticos mais astutos e populares da história contemporânea. Como Bolsonaro consegue atrair tanta gente? A resposta a qual cheguei foi a de que Bolsonaro de fato representa o máximo de liberdade que espírito humano pode almejar — isso no Brasil, é claro, se fosse nos Estados Unidos, essa antropomorfização da liberdade individual sem limites se encontraria na figura de Trump.
Você pode perguntar qual exatamente é a relação de Bolsonaro com a liberdade, e como seria possível que um presidente que fala abertamente em acabar com a independência do judiciário e do legislativo — além de ser contra a liberdade de qualquer um que não afirme a visão teocrática neopentecostal de mundo — possa representar a liberdade. A resposta não é tão difícil. Ela está escancarada para qualquer um ver.
Bolsonaro é aquele cara que milhões de pessoas se identificam não exatamente pelos valores conservadores e tradicionais observados à risca, mas por causa dessa hipocrisia entre o que se fala e se faz. O bolsonarista é antivacina, mas toma escondido. Defende a família tradicional cristã, mas é adúltero reincidente e pratica zoofilia. Diz ser contra a pedofilia, mas confessa que pintou clima com supostas prostitutas de 14 anos. O barato de ser bolsonarista é justamente esse: o bolsonarismo nos dá a liberdade de sermos violentos na defesa de valores que violamos quase que abertamente todos os dias. Essa liberdade de mentir e ser escroto é o atrativo da coisa.
Entenda: a liberdade total não existe. Não podemos sair de nossos próprios corpos, voar como super-heróis, voltar no tempo ou escolher se queremos ou não viver para sempre. Não temos poderes divinos. Nem mesmo Deus pode tudo. Se existisse, ele não poderia atentar contra a lógica criando um círculo quadrado. Mas, dentro das liberdades possíveis para um homem de carne e osso, o bolsonarismo representa o máximo alcançável. A tirania dá liberdade total para o tirano. E o Bolsonaro promete essa liberdade total de ser hipócrita, mentiroso, violento e opressor até para o homem mais insignificante. O guardinha da esquina torna-se ditador ao abraçar o bolsonarismo.
Bolsonaro é o líder de um tipo bem específico de homem. Esse homem tem boa condição financeira, seja por herança ou por sorte nos negócios e finanças, ou acha que deveria ter tido sorte nos negócios e finanças, mas foi sabotado por alguma conspiração envolvendo grupos que considera “indesejáveis”, como judeus, progressistas, gays, globalistas, entre outros. Esse homem se acredita europeu, independente de ter ou não uma ascendência europeia pura — não é a toa que vemos um número crescente dos chamados “nazipardos” no Brasil.
E não para por aí. Esse homem, embora acredite pertencer a uma casta superior e sofisticada, não passa de um tosco. Ele arrota e peida na frente da esposa. Ele caga de porta aberta com a mulher ao lado. É sujo. Em muitos casos, ele tem vergonha de ensaboar a bunda sozinho no chuveiro, porque acredita que Deus talvez esteja vendo e possa condená-lo por pederastia — o que é irônico, pois ele vive desrespeitando as leis desse Deus monstruoso, até para os padrões de um conservador hipócrita.
É grotesco ter que falar disso, mas quando tratamos de bolsonaristas convictos em pleno mês de outubro do ano de 2022, é importantíssimo frisarmos a questão do arroto, peido e defecação na frente da esposa, além do medo de punição sobrenatural ao limpar o ânus sozinho no banho, embora faça coisa muito pior no sigilo. Esse é o ponto ao qual descemos: o nosso futuro como civilização está em jogo por conta de um sujeito grotesco com o qual milhões de homens se identificam.
A liberdade de ser grosseiro, violento, hipócrita e mentiroso. A defesa aberta e descarada do “faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”. Isso é o bolsonarismo. Isso é Bolsonaro. Isso é, em grande medida, o que também é proporcionado por Trump, pela alt-right e pelo próprio fascismo clássico da primeira metade do século XX. O bolsonarismo, versão nacional de um movimento mundial anti-modernidade, também é a liberdade para aplaudir a barbárie. Não importa o que o líder faça, será aplaudido e justificado.
Bolsonaro poderia canibalizar um bebê ao vivo dentro do Templo de Salomão que bolsonaristas diriam que há precedentes bíblicos que tornam isso correto. Se ele mandar seus seguidores matarem parentes gays, esquerdistas, etc, em rede nacional, parte considerável deles fará isso sem questionar. Estamos neste nível do absurdo, mesmo que alguns analistas incautos finjam que ainda vivemos em tempos normais.
Os líderes das seitas políticas anti-modernidade podem fazer o que bem entendem e, mesmo assim, seus seguidores se ajoelharão perante suas imagens e tentarão justificar suas ações como santas ou divinas. Os seguidores são perfeitamente capazes de matar qualquer um caso isso seja requisitado por seus líderes. Muitos já o fazem sem um comando explícito.
Basta lembrarmos de casos como o assassinato de um petista que comemorava seu aniversário por um bolsonarista que, por não admitir que a celebração tivesse como tema o Partido dos Trabalhadores, invadiu a festa e efetuou disparos [1][2]. Nos Estados Unidos, lembremos de Charlottesville, cidade no estado americano da Virgínia, em que neonazistas pró-Trump se reuniram num grande evento que durou dias, tempo em que cometeram barbaridades pela cidade, incluindo o assassinato de uma mulher que ousou protestar contra a presença deles [3][4].
O que eles desejam é a total liberdade sem consequências que tipos como Bolsonaro e Trump projetam. Esse caos do cada um por si representa o sonho molhado de muita gente que se acredita defensora da liberdade individual. Daí a facilidade natural com que ditos neoliberais e anarcocapitalistas se aliam a teocratas cristãos e neonazistas. O que para alguns parecem ser ideais políticos conflitantes, na realidade são ideologias totalmente compatíveis. Não é a toa que um dos ídolos vivos do anarcocapitalismo, Hans-Hermann Hoppe, é afeito a nazistas como Jared Taylor, Richard Spencer e Chase Rachels [5][6].
Para Hoppe, libertários anarcocapitalistas arianos deveriam ter o direito de se unir em comunidades privadas e “deportar” (i.e. exterminar) qualquer um que considerem ser inferior e indigno de vida. Aliás, ele deixa claro que não considera humanos aqueles contrários às suas ideias, e propõe usá-los como animais ou eliminá-los [7]. Não é necessário, contudo, falarmos de alguém que está vivo e atuante. O nazifascismo clássico teve amplo apoio de ideólogos do capitalismo e dos ricos. Mussolini e Hitler foram vistos como salvadores da ordem capitalista tanto por ideólogos como pelas elites econômicas de seus países [8].
Portanto, é perfeitamente clara a ligação entre o desejo de uma liberdade individual sem limites e essa praga maldita que se alastrou nos últimos anos ao redor do mundo e que, infelizmente, atingiu o Brasil em cheio. Nossa versão da praga, o bolsonarismo, é a expressão máxima desse desejo de liberdade individual extrema e inconsequente em terras brasileiras.
por Fernando Olszewski
Notas:
7. HOPPE, Hans-Hermann. Democracy: The God that Failed: The Economics and Politics of Monarchy, Democracy, and Natural Order. Nova Brunswick: Transaction Publishers, 2007. p. 173.