Enchentes, Madonnas e Demônios

Crucificação e Juízo Final (detalhe), de Jan van Eyck

As condições materiais não interessam absolutamente nada quando o ideal, aquilo que está na mente das pessoas, é capaz de transformá-las em marionetes. É assustador, mas há milhões que preferem passar fome desde que vejam quem acreditam ser os representantes dos seus ideais no poder. O sujeito passa fome, vê toda a sua vida destruída, mas segue os seus algozes, que ele chama de líderes, até o final. Prefere morrer a aceitar a possibilidade de que seus ideais o levaram à ruína.

Para ele, não foi a falta de política pública e estado que o arruinou. Foi a Madonna. A rede Globo satânica e os “bilionários comunistas” como o George Soros, que causam desastres naturais através do HAARP. Se isso soa ridículo para você, é porque é. Pablo Marçal, um coach evangélico, disse com todas as letras em vídeo que o show da Madonna foi um ritual satânico feito com os corpos das vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Outra influenciadora cristã afirmou que a tragédia ocorreu devido ao grande número de terreiros de umbanda e candomblé no estado. O mesmo foi dito por um padre católico gaúcho durante a missa. E por mais maluco que isso soe, há milhares que acreditam, se não dezenas de milhares ou até mais.

Para os que não conseguem levantar da cama sem a ajuda do pensamento mágico, essas boçalidades conspiratórias são atrativas. Elas unem cruzadas morais com desastres e morte. É como o Datena, anos atrás, afirmando que ateus cometem mais crimes, algo que muita gente acredita. Mas isso é demonstravelmente falso. A maioria esmagadora dos criminosos no Brasil são cristãos. Não faltam exemplos de favelas dominadas pelo crime organizado onde praticantes de religiões afro-brasileiras são obrigados a se converter ao cristianismo protestante ou sofrerem violência. Da mesma forma, há aqueles que tocam os seus dias certos de que um show de música pop está metafisicamente conectado à uma tragédia ocorrida à milhares de quilômetros de distância. 

Unindo-se a isso, há o comentário dos inteligentes que ingenuamente creem que o poder econômico é antagonista do estado ou, pior ainda, que o poder econômico é capaz de existir sem o poder do estado e sem a garantia da violência física — falo aqui dos liberais, claro. Os governos municipais e estaduais do Rio de Janeiro seriam culpados por utilizarem recursos no show da Madonna ao invés de utilizarem tais recursos no Rio Grande do Sul. Pouco importa se sucessivos governos estaduais e municipais no Rio Grande do Sul desmontaram o estado e impediram a manutenção da infraestrutura capaz de lidar com as enchentes ou pelo menos mitigar o seu impacto.

Também pouco importa que a prefeitura do Rio de Janeiro tenha financiado a menor parte do show da Madonna, tendo sido a iniciativa privada que arcou com a maior parte do custo — e mais: que o retorno para a cidade em termos econômicos tenha sido estrondoso para o mês de maio. Os economicamente inteligentes fazem cara feia quando o governo federal, agora de centro-esquerda, disponibiliza 50 bilhões de reais ao Rio Grande do Sul e perdoa a dívida do estado por 3 anos. Para eles, bom mesmo é o Elon Musk ter doado algumas antenas de internet. Bom mesmo são as imagens pateticamente malfeitas por Inteligência Artificial de helicópteros da Havan resgatando vítimas.

O real, aquilo que está escancarado para qualquer um ver, pouco importa. Lembrar dos fatos é considerado por idiotas como “politização da tragédia”. Quem politiza a tragédia do Rio Grande do Sul são os fanáticos religiosos e tarados do livre mercado ao negarem o óbvio ululante: o show da Madonna e os terreiros de religiões africanas não têm nada a ver com o que aconteceu com o Rio Grande do Sul e os governos liberais do estado do Rio Grande do Sul e de diversos municípios gaúchos são sim responsáveis em grande parte pelo o que aconteceu.