A raiz de todo o mal

“Behold! The Wizard”, por MysticLinear

Certa vez eu escrevi que o Brasil morreu e que o fato de ainda haverem pessoas vivendo aqui não altera isso, já que até cadáveres abrigam vida — vermes, fungos, etc. Falava de política. Mas eu estava errado, peço desculpas. Não é só o Brasil. Não é nem só a humanidade. Só há morte com vida. Os problemas todos se iniciam na abiogênese. Antes da abiogênese, embora “moléculas orgânicas” estivessem presentes, não havia a vida. Qualquer problema que qualquer ser vivo tem ou teve pode ter sua origem traçada àquele evento. Do Sauroposeidon sendo predado pelo Acrocantossauro no período Cretáceo, há 110 milhões de anos atrás, aos problemas políticos atuais.

Alguém pode dizer: “Bacana, mas esse seu papo existencial não resolve nada. O que fazer para resolver o real, a questão material e histórica?” Podemos fazer o que quiser, mas não virá um ponto final. Não virá uma apoteose. A única “apoteose” é o retorno ao inanimado. E isso não depende tanto de nós. O retorno ao inanimado virá, tanto do ponto de vista do indivíduo quanto do ponto de vista coletivo, queiramos ou não. A vasta maioria das espécies que existiram não existem mais e temos uma ótima ideia de que as que hoje existem um dia serão extintas.

Inclusive a nossa.

Há quem diga que o fenômeno da vida é uma negação da entropia e que isso seria prova de que é possível existir um sentido universal para as nossas existências. Sim, a vida, num sentido local e temporário, é negação da entropia. Um ser vivo organiza energia e matéria de tal forma que ela não se torna dispersa. Mas num sentido universal, não. Vermes e fungos aceleram a decomposição de um corpo, por exemplo. Ou seja, trabalham a favor da entropia, embora pareçam negá-la como indivíduos. Não me surpreenderia se a vida fosse apenas um mecanismo universal de aceleração da entropia, ao custo de temporariamente negá-la localmente.

Que tristeza! Todo esse espetáculo cheio de som e fúria, não apenas não significa nada, mas é fruto de um mecanismo insidioso, amoral, demoníaco. Não é a toa que, mesmo nas mitologias e nas religiões, volta e meia surgem aqueles hereges sensatos que descrevem o mundo não como obra de um Deus benevolente, mas do Diabo. Estes sensatos não agradeciam àquele que os aprisiona na matéria decadente, muito menos o cultuam. Sofriam, como alguns de nós sofrem hoje, de excesso de lucidez. Portanto, eram incapazes de prestar homenagem ao Criador.

Num mundo onde a visão científica é a dominante, não precisamos antropomorfizar um culpado. A natureza, isto é, a existência, é ela própria a culpada, mas como uma fatalidade é culpada. Sem um propósito e cega, a natureza sem querer forjou um mecanismo perfeito para enganar a matéria animada. Ela o faz através da falta. Nos animais, a falta se manifesta primariamente através da fome. E a medida que os animais se tornam mais complexos, novas faltas se estabelecem. No ser humano, temos a falta do sentido para as nossas existências, algo que foi quase que instantaneamente pervertido para o benefício de alguns através do charlatanismo religioso.

O charlatanismo sempre foi moda, pelo menos a partir do surgimento das primeiras sociedades. Desde que a nossa espécie desenvolveu a capacidade de refletir, ela passou a se sentir só, jogada na terra, como que órfã, desconectada de algo, mas ela não sabe o quê. Isso é um prato cheio para trambiqueiros. Mas não é só na promessa de um reino metafísico que encontramos o charlatanismo. Também o encontramos naqueles que prometem a Utopia no próprio devir, no universo físico. A política e a economia oferecem essas drogas, mesmo que muitas vezes aqueles que as traficam acreditem que estão vendendo verdades científicas e históricas.


Um alívio, um breve momento de descanso, a sensação de estar em casa. É só isso o que podemos esperar dessa vida, na melhor das hipóteses. Mas nunca estamos de verdade em casa, porque este lugar não é a nossa morada. Estamos de passagem aqui, por um tempo curto. Depois evaporamos, como se nunca tivéssemos existido. A maioria de nós — talvez a totalidade — não aparecerá no registro fóssil em alguns milhões de anos. E se, por algum milagre, consigamos sair daqui e alcançar as estrelas, desejaremos ter deixado de existir antes do primeiro foguete atingir a órbita terrestre.

Da mesma forma, há de se lamentar que os nossos ancestrais, tendo descoberto o fogo, não decidiram que era hora de parar ali e não alimentar mais a morte com vidas novas. Porém, não devemos ser tão duros com eles. Afinal, tinham acabado de despertar suas consciências e viviam quase que no automático, sem a capacidade de reflexão que viria a marcar a humanidade a partir do surgimento das primeiras grandes civilizações da antiguidade. E, ainda assim, raros são aqueles que deixam de viver no automático, até mesmo entre nós, na contemporaneidade tecnológica.

A raiz de todo o mal encontra-se no começo. Se consideramos a consciência profunda do homem como negativa, o começo foi o momento em que nos separamos dos outros animais. Mas se consideramos negativa qualquer sensação de dor existente no reino animal, o começo encontra-se no momento em que surgiram os primeiros animais, há centenas de milhões de anos, no período pré-Cambriano. Contudo, há razões para imaginarmos que a seleção natural acabe sempre descambando em seres capazes de sentir dor.

O começo está na abiogênese em si, no momento que o inorgânico ou o inanimado foi capaz, através de determinados processos aparentemente raros, produzir um ser capaz de consumir nutrientes para aquisição de energia e auto-replicação. É raro pois, ao que podemos observar nos outros planetas do nosso sistema solar e em exoplanetas até o momento, não encontramos sinais de vida — e mesmo se acabarmos encontrando, sabemos que será na minoria deles. A maioria do cosmos está desprovida de vida e livre das condições de possibilidade de haver problemas.

Se considerarmos o fenômeno da vida como sendo somente um mecanismo de aceleração da entropia universal, ao menos devemos agradecer ao acaso por ela não ser tão abundante no universo. Imagine só se em cada rocha flutuando pelo cosmos houvesse seres capazes de gemer e gritar ao serem triturados vivos tal como acontece no nosso planeta e como talvez aconteça em alguns poucos outros.

Imagine um cenário ainda mais triste: se todos os planetas contivessem espécies capazes de refletir como nós humanos refletimos, espécies capazes de se organizar da forma como nós nos organizamos através da nossa história sem sentido, fadadas a passar por todas as intermináveis, insolúveis e violentas contradições individuais e coletivas pelas quais todos nós passamos. Melhor que a raiz de todo mal seja mesmo rara.

por Fernando Olszewski