O Deus guloso

Saturno devorando seu filho, por Francisco de Goya

O Deus de Abraão exige sacrifícios humanos constantes, embora Ele, seus profetas e seus seguidores neguem. Nas Escrituras, ao impedir que Abraão sacrifique seu filho Isaque, esse Deus supostamente reprova a prática, diferentemente dos outros deuses, que na verdade seriam demônios. Contudo, a realidade é que, na prática, o Senhor do universo se alimenta da dor e do sofrimento de suas criaturas e mais: Ele demanda vítimas daqueles que o adoram.

Se não é assim, como explicar a história dos seus adoradores, pelo menos daqueles que fazem parte das facções majoritárias das grandes religiões monoteístas? A maioria, com o aval de seus sacerdotes, foi conivente com perseguição, opressão e assassinato, isso quando não participava diretamente desses crimes. Estaria a maioria deles errada, então? Somente alguns poucos santos tolerantes fugiram à regra, com suas vidas de renúncia material e doação aos mais necessitados.

Esses poucos são tão diferentes que parecem nem sequer servirem ao mesmo Deus dos facínoras. É esse outro Deus, seguido por alguns santos, que afirma ser tão difícil a salvação. É dele que vem o ensinamento contido no Evangelho de São Mateus:

Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição e numerosos são os que por aí entram. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho da vida e raros são os que o encontram.”

Se a grande maioria dos odiosos seguidores do Deus deste mundo forem salvos, então essa passagem é falsa, e vice-versa. Não dá para as duas coisas serem verdade. Salvos são somente aqueles poucos que não se curvam ao glutão, devorador de sofrimentos e vidas, bebedor de lágrimas. Não faltam exemplos atuais de como os adoradores do Deus deste mundo sacrificam vítimas em sua homenagem.

Há alguns dias atrás, um turista paquistanês chamado Mohammed Ismail visitava a cidade de Madyan, no noroeste do Paquistão, quando foi acusado de blasfêmia por supostamente profanar o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos. Após ser perseguido por uma multidão exaltada, a polícia o levou para dentro da delegacia para tentar protegê-lo e averiguar os fatos. Porém, os autofalantes da mesquita local incitaram a multidão a invadir a delegacia e matar o homem.

Ele foi espancado por centenas de pessoas e queimado vivo. Enquanto queimava, seu corpo continuava sendo pisoteado, apedrejado e atacado com pedaços de madeira e outros objetos. As imagens são chocantes. A multidão também ateou fogo na delegacia e em viaturas policiais. Isso não foi um fato isolado no Paquistão. Ocorre bastante, especialmente entre desafetos que acusam uns aos outros de blasfêmia para que as pessoas os linchem.

O Paquistão possui leis contra blasfêmia. Há inclusive pena de morte para alguns casos. Mas, embora existam pessoas cumprindo pena por blasfemar contra o islã, inclusive prisão perpétua e condenados no corredor da morte, o estado paquistanês em si ainda não executou ninguém por esse crime. Não que seja preciso. Boa parte dos acusados nem sequer chega a ser preso e julgado, já que os ânimos exaltados da população devota se asseguram de dar cabo deles.

E engana-se quem pensa que esse tipo de violência e opressão pelas mãos dos devotos de Deus está restrita a apenas um dos monoteísmos.

Apesar da maioria dos países historicamente cristãos ter abolido a pena de morte e a prisão como punição para blasfêmia e outros pecados relacionados aos costumes há um bom tempo, os ânimos insuflados pela religião cristã não deixam de alimentar a terra com sangue humano. Afinal, quase dois milênios de perseguições, torturas, conversões forçadas e execuções — incluindo as famigeradas fogueiras das várias inquisições católicas e protestantes — não são facilmente apagados dos corações das pessoas.

Toda hora vemos cristãos justificando barbaridades em nome de seu Deus, tentando a todo custo dominar a política, reverter trezentos anos de Iluminismo e pôr um fim à laicidade. Eles criticam países muçulmanos, mas lutam para ver seus padres e pastores com os mesmos poderes de vida e morte que os aiatolás iranianos e os teocratas sauditas. E se levantamos para falar alguma coisa, somos previamente repreendidos por apaziguadores moderados que dizem que esses monstros obscurantistas não são “cristãos de verdade”, como se ser cristão e ser bondoso e tolerante fossem sinônimos.

Embora menos prevalente, linchamentos motivados por fanatismo religioso também ocorrem entre cristãos atuais. Como esquecer do caso de Fabiane Maria de Jesus, que foi aleatoriamente acusada de ser uma bruxa que sacrificava crianças em rituais satânicos e linchada por populares em Balneário Camboriú. Isso não ocorreu há séculos atrás, mas há poucos anos, em São Paulo, o estado mais rico do Brasil. Além desse grotesco exemplo de delírio coletivo, todos os dias, praticantes de religiões afro são atacados por conta do crescente fanatismo cristão.

Podemos dispensar as análises históricas de como a figura de Yahweh se originou a partir de uma amálgama de deuses guerreiros e de tempestade cultuados por determinadas tribos do Levante na Idade do Bronze. Claro, isso explica em grande parte os massacres ordenados pelo Deus do Antigo Testamento, mas não é necessário. Sabemos por observação da natureza que o Criador do universo, se existe, ordenou um mundo sangrento e amoral, onde a busca por sobrevivência é o único imperativo.

No caso do homem, ser supostamente criado a sua imagem e semelhança, o derramamento de sangue pelas razões mais banais é a ordem do dia. Portanto segue-se que é o que o Deus deste mundo quer de nós. Até as guerras inter-religiosas que assolam o mundo entre católicos e protestantes, xiitas e sunitas, são travadas para a sua glória. Nada parece enaltecê-lo mais do que ver pessoas que professam praticamente a mesma fé se degolando por pequenas desavenças relacionadas à doutrina.

O sangue e carne queimada viva na fogueira alimentam um Deus glutão, ávido por nos engolir inteiros. Qualquer homem de carne e osso que demandasse de nós o que Deus demanda de seus seguidores — que convertam e imponham suas regras asininas goela abaixo de povos inteiros — seria considerado um monstro moral, um criminoso apto a ser encarcerado ou destruído. Porém, como é Deus, até os menos religiosos de nós temem desrespeitá-lo, pois temem chatear grande parte da raça humana.

O Criador, o suposto Senhor de todo o universo, se enaltece quando seus adoradores lincham um pobre coitado acusado de desrespeitar um livro. Ele não dá a mínima para centenas de milhares na Faixa de Gaza, nem para dezenas de milhões de esfomeados e afetados pela pobreza e pela violência mundo afora. Mas Ele se escandaliza com homossexuais, macumbeiros e ateus. Deus se importa com fetos que ainda não desenvolveram conexões talamocorticais e portanto não possuem consciência, mas não está nem aí para crianças de rua, esmigalhadas pela miséria.

Isso tudo aponta para um Deus fraco, incapaz de resolver problemas reais, mas ciumento e egoísta ao ponto de incentivar seus seguidores a lincharem em seu nome. Se Ele fosse de carne e osso, esse Deus seria um mero líder de uma seita patética, temida pela sua crueldade e loucura, nada mais. Entretanto, Ele é uma ideia que existe nas cabeças de bilhões ao redor deste planeta insignificante. Tristemente, ideias são quase imortais.

por Fernando Olszewski