Triturados; ou: A doce ilusão

Pintura de Eliran Kantor

Nos dias que se seguiram ao desastre com o avião da Voepass que caiu em Vinhedo matando todos a bordo, o Instituto Médico Legal julgou que as mortes ocorreram pelo impacto da aeronave com o solo, que foi forte o suficiente para causar traumas catastróficos em frações de segundo. Segundo o IML, a carbonização dos corpos ocorreu postumamente. Nunca é bom recebermos a notícia de uma tragédia, mas o conhecimento de que o sofrimento das vítimas acabou relativamente rápido traz um certo alívio, embora saibamos que o sofrimento mental possivelmente precedeu o fim delas durante a queda.

Assim que li essa notícia, tive a infelicidade de ver um comentário que só posso classificar como parte da doce ilusão que transborda em membros da nossa espécie. Um sujeito afirmou ter certeza absoluta de que ninguém na aeronave sofreu dor de espécie alguma, nem mesmo antes do impacto, já que, segundo ele, Deus não permitiria. Segundo ele, quando o sofrimento e a dor da morte são grandes demais, o universo conspira para anestesiar as vítimas espiritualmente.

Que coisa mais patética. Uma crença dessas faria com que Ivan Karamazov ficasse ainda mais indignado com Deus e com aqueles que acreditam nele. E com razão. Numa das partes mais emblemáticas do romance de Dostoiévski, Ivan diz para o seu irmão, Alyosha, que ele não pode aceitar nenhuma conciliação com Deus, visto o abismo de tormentos pelos quais as criaturas passam. O personagem menciona alguns exemplos pavorosos. Entre eles, soldados otomanos que, durante a supressão de uma revolta entre os eslavos, jogavam bebês para o alto e os empalavam com suas baionetas na frente das mães desesperadas. Ivan diz não poder perdoar Deus por coisas como essas, não importa o quão magnífico seja o além para os devotos.

Ivan diz isso para Alyosha, seu irmão mais novo e religioso, que não é um imbecil. Alyosha sabe muito bem que existem dores profundas no mundo. É uma conversa entre duas pessoas que, embora tenham conclusões diferentes sobre Deus e sobre a existência, admitem um ponto de partida comum: a realidade de que há no mundo dores absurdas e difíceis de serem mensuradas. Por isso são grandes personagens da literatura. Mas há uma multidão no mundo real que não admite a realidade da dor. Para piorar, uma quantidade considerável daqueles que compram essa ilusão patética convive com horrores brutais no seu dia a dia. Há pobres que vivem em áreas de conflitos urbanos que, por serem apaziguados pela fé, acreditam na doce ilusão.

Isso me lembra de quando era criança e, por alguma razão, volta e meia escutava em conversas de adultos a seguinte imbecilidade: pessoas que caem de grandes alturas, seja de um prédio ou de avião, morrem instantaneamente de ataque cardíaco. Quê? Como assim? Pessoas que enfartam sentem dores terríveis, mesmo quando a inconsciência não tarda em chegar. Lembro-me de pensar, ainda criança: “Mas e pessoas que pulam de paraquedas, por que elas não morrem automaticamente também?” Não fazia sentido nenhum. Aquela era mais uma versão da doce mentira que as pessoas contam umas para as outras — e para si próprias — de que existem bem menos horrores no mundo do que de fato existem.

Numa era onde a informação abunda, negar isso é ridículo. Basta um olhar ligeiro nas profundezas mais horripilantes da experiência humana para se encontrar exemplos óbvios de que, não, seres humanos, assim como os outros animais, não são anestesiados e reconfortados quando enfrentam um fim desesperador. O antropólogo, Ernest Becker, afirmou que civilizações são baseadas na negação da morte. Vou além: parte da nossa psique é calcada na negação da dor e do sofrimento extremos. Mas só precisamos dar uma rápida olhada no que cartéis mexicanos fazem, desmembrando e esfolando suas vítimas vivas com requintes de sadismo, para entendermos que, fora de um ambiente cirúrgico e humanizado, não há qualquer anestesia ou conforto.

Imagine agora as vítimas de campos de extermínio sendo levadas violentamente para o abate e trancadas dentro de câmaras de gás. Dezenas de homens, mulheres, crianças e velhos nus e desesperados, respirando um veneno que chegava a levar minutos para matar a todos, numa morte dolorosa e excruciante. Há quem acredite que o mundo espiritual faria com que aquelas vítimas se vissem todas reconfortadas, anestesiadas, sendo recebidas de braços abertos no além vida. Além de patética, a doce ilusão consegue desrespeitar o horror terminal enfrentado por milhões de seres sencientes desde que o mundo é mundo.

Enfrentar o mundo sem ilusões requer no mínimo aceitar que viemos para cá sem o nosso consentimento para sermos triturados vivos, de um jeito ou de outro, mais ou cedo ou mais tarde. Nós todos, na condição de seres sencientes e finitos, seremos moídos de uma maneira ou de outra antes do nosso fim. É claro que as dores e as mortes não são todas iguais. Morrer numa cama, sedado e cercado de familiares ou de profissionais médicos dedicados não é o mesmo que ser esfolado, desmembrado ou queimado vivo. Uns são mais azarados do que outros. Porém, seremos todo moídos no final. Nós todos estamos numa jornada rumo à execução: uns em assentos mais confortáveis, sim, mas todos com um destino. O que mudará será a forma e a hora de nossa morte.

Prazeres têm limites. Dores, não. Em ‘Lágrimas e Santos’, Cioran escreveu que o limite de toda dor é uma dor maior ainda. Nossos prazeres culinários e orgásticos têm limites, mesmo que alguns consigam estendê-los mais do que outros. Já as dores só acabam com a inconsciência — que em diversos casos demora muito a chegar — ou com o nada da morte. É somente através idiotia que somos capazes de negar isso. Não é nem uma questão de aceitar ou rejeitar certas realidades, mas sim de reconhecê-las.

Entre o pensador que rejeita e o que afirma a existência tal como ela é, recheada de dores, há uma divisão fundamental que é pautada nos afetos de cada um. Contudo, ambos reconhecem as dores inerentes ao ser. A questão é que muitos nem sequer reconhecem isso em primeiro lugar. É por essa razão que diversos leigos quando leem filosofia pensam que todos os filósofos sérios são pessimistas e avessos à existência. As pessoas leigas chegam à essa conclusão justamente porque até mesmo os filósofos que mais aceitam o mundo e não questionam se devemos deixá-lo para trás descrevem o devir como brutal ou hostil.

A doce ilusão não toma conta de quem realmente pensa, mesmo que o pensador ainda preste culto à vida. Pensadores que cultuam a vida apenas desenvolvem outros mecanismos para absolver a existência: criam outras ilusões, mais bem elaboradas, mais bem fundamentadas. É o caso de Alyosha, inclusive. É o caso do próprio Dostoiévski, já que o herói de ‘Os Irmãos Karamazov’ é justamente Alyosha, e não Ivan, seu irmão niilista. Muito embora Ivan seja o personagem mais interessante, ele representa as ideias que Dostoiévski quer combater, já que ele próprio era um defensor do cristianismo ortodoxo russo.

Mas desejar que pessoas tão afundadas na doce mentira tenham a sensibilidade um Dostoiévski é pedir demais, mesmo Dostoiévski estando longe de ser um niilista ou um pessimista. É ainda mais desconcertante querer que elas enxerguem o devir da mesma forma que um Schopenhauer ou um Mainländer.

por Fernando Olszewski