Positividade Tóxica

Autorretrato, Arnold Böcklin

Positividade tóxica é uma expressão que ganhou força nos últimos anos e serve para designar uma gama de visões, atitudes e cultura baseadas na ideia de que devemos estar — ou pelo menos tentar estar — sempre para cima, felizes, contentes e na luta, sem nos deixarmos abater por nada. A expressão tem sido atrelada a críticas sociais e políticas, especialmente quando se condena um certo tipo de motivação obviamente mercantil e exploratória. Um exemplo disso é a crescente enxurrada de críticas e piadas feitas sobre empresas que encorajam seus funcionários a sempre demonstrarem “garra” ou “gana” independentemente do quanto eles são precarizados. Porém, mesmo fora do ambiente empresarial, a ideia está ligada à questão da produtividade, ainda que pessoal. Até em nossas vidas privadas, existe a pressão de que devemos sempre buscar ver o lado bom das coisas e estarmos prontos para nos levantar quando a vida nos derruba.

Há um crescente mercado de auto-ajuda disfarçado de anti-auto-ajuda que tem batido na positividade tóxica. Penso que, em parte, isso se deve à ocupação de um nicho de pensamento que era antes pouco explorado, exceto por alguns criadores na literatura e na música: o nicho do reconhecimento dos momentos assombrosos. Mas, quando observamos a fundo, isso continua sendo positividade. Esses, claro, dirão que embora passem uma mensagem positiva, ela deixou de ser tóxica pois parou de negar o lado sombrio das coisas, incorporando-o ao humano. Sim, isso é menos pior do que tentar forçar contentamento sem reconhecer a existência dos estados negativos.

Mas, de certo modo, mesmo esse tipo de “positividade iluminada” continua promovendo a insidiosa pressão pela produtividade, criatividade e geração incessantes. Até em movimentos políticos que buscam instaurar uma sociedade sem senhores, a noção da desistência total do mundo é tida como anátema. Se na sociedade de mercado, aquele que desiste do mundo é visto como um vagabundo ou covarde que não teve “gana” para correr atrás do sucesso pessoal, na sociedade igualitária, o desistente é um inimigo de classe que defende, ainda que sem saber, uma posição reacionária.

O que me parece claro é que, como bem coloca o escritor de horror, Thomas Ligotti: “Se você não tem algo de positivo a dizer sobre a humanidade, então diga algo ambíguo.” Ligotti aqui se refere à humanidade não num sentido social ou político, mas num sentido existencial. Politicamente, Ligotti se declara socialista, mas acima disso, ele defende a tese sombria de que teria sido melhor se nenhum de nós tivesse existido em primeiro lugar e que a Terra fosse tão estéril quanto a superfície da Lua, parafraseando Schopenhauer. Podemos reformular a frase de Ligotti para se encaixar mais aos moldes dos arautos da positividade iluminada: se você não tem algo de positivo a dizer sobre a vida consciente, então diga algo ambíguo, mas jamais ouse condenar a vida como um fenômeno terrível.

Poder trazer nuances ao discurso e apontar o lado sombrio da vida é bom e faz a positividade iluminada, num primeiro momento, parecer ser menos perniciosa do que a positividade tóxica, mas no final das contas o resultado das duas é o mesmo. Continuamos girando a roda do samsara. Partindo do ponto de Ligotti e de Schopenhauer, então, qualquer positividade é tóxica, porque qualquer afirmação da vida, mesmo que reconheça o sofrimento inerente ao ser, nos mantém atrelados ao mundo. Não interessa se a positividade é tóxica ou iluminada, ela gera a afirmação da vida e nos induz a continuar produzindo cópias de nós mesmos que vão sofrer das maneiras mais criativas possíveis. Ligotti, comentando sobre o sucesso acadêmico e literário do filósofo Peter Wessel Zapffe e do escritor H.P. Lovecraft, além do sucesso de Schopenhauer no século XIX, escreve o seguinte:

Zapffe, Schopenhauer e Lovecraft se saíram bem o suficiente sem se renderem a histerias de afirmação da vida. Isso é algo arriscado para qualquer um fazer, mas é ainda mais arriscado para escritores, porque convicções antivitais rebaixarão seu trabalho a um arquivo inferior ao dos artesãos das palavras que capitulam ao pensamento positivo ou que pelo menos seguem a máxima de serem ambíguos ao falar de nossa espécie. Todos querem manter a porta aberta para a possibilidade de que nossas vidas não sejam MALIGNAMENTE INÚTEIS. Mesmo leitores altamente educados não querem ouvir que suas vidas são uma contingência evolucionária — e nada mais — e que o significado não é o que as pessoas pensam que significa.

Schopenhauer questiona, num determinado momento de sua obra, se a humanidade continuaria a existir caso a procriação fosse inteiramente baseada na deliberação racional e não nas emoções e sensações da carne. Sua conclusão é de que talvez tivéssemos pena suficiente das próximas gerações e nos absteríamos de gerá-las caso parássemos para ponderar. Inclusive, ao falar de forma mais poética a respeito do ato da procriação, Schopenhauer escreve que, após o ato sexual, é possível ouvirmos a risada do diabo, o deus do devir, onde tudo é instável, penoso e fugaz. Metaforicamente falando, o diabo ri depois de um ato sexual reprodutivo porque mais uma vítima foi gerada para continuar a cadeia temporal de sofrimento ao qual às criaturas estão submetidas.

Na filosofia schopenhauriana, tudo no mundo empírico é representação, inclusive nossos corpos. Por trás dessas representações, há uma Vontade única, atemporal. Por ela ser Vontade, é insaciável, e a forma com a qual ela se manifesta é através da falta. Por isso o filósofo afirma que aquilo que consideramos como ruim, negativo, é na realidade o aspecto positivo, isto é, o aspecto que impulsiona toda a existência. Citando Schopenhauer:

[...] não conheço nenhum absurdo maior do que o da maioria dos sistemas metafísicos que declaram o mal como algo negativo; enquanto é precisamente aquilo que é positivo e se faz sentir. Por outro lado, aquilo que é bom, em outras palavras, toda felicidade e satisfação, é negativo, isto é, a mera eliminação de um desejo e o fim de uma dor.

O sofrimento, portanto, permeia toda a realidade. O mal, seja ele natural ou humano, não é a ausência do bem, como pensavam os escolásticos, mas o aspecto propulsor de toda a realidade e toda a vida.  Citando novamente Schopenhauer:

Se o sofrimento não é o primeiro e imediato objeto de nossa vida, então nossa existência é a coisa mais inconveniente e inapropriada do mundo. Pois é absurdo supor que a dor infinita, que abunda em todo lugar no mundo e brota da carência e da miséria essenciais à vida, poderia ser sem propósito e puramente acidental.

A vida é engenhosa, sim, possui beleza, amor e prazer, sim, mas tudo isso tem um lado macabro. O exemplo mais fácil de se entender é o da fome. Se não sentíssemos fome, não comeríamos e morreríamos sem os nutrientes necessários para a manutenção da vida. Se não sentíssemos a dor de um ferimento, ele pode infeccionar e se agravar, causando a nossa morte. Se isso acontece antes de perpetuarmos a espécie, falhamos em afirmar a Vontade de vida num sentido mais amplo. O próprio desejo sexual é uma falta que impulsiona as espécies. Ironicamente, nenhum desejo nunca é satisfeito plenamente. Daí o pessimismo de Schopenhauer e sua receita ética tão detestada por todos: a negação da Vontade dentro de nós mesmos, a única vitória possível contra o monstro que é a existência. A compaixão ou sentimento de boa vontade para com os outros viria do reconhecimento da nossa dor nas outras criaturas e andaria de mãos dadas com a negação da Vontade dentro de si mesmo, visto que neste mundo insaciável, a nossa vontade individual sempre tenta sobrepujar a vontade dos outros. Negá-la é, portanto, amar o próximo renunciando o eu.

Sobre a engenhosidade macabra da vida, Machado de Assis — escritor que foi influenciado pela filosofia de Schopenhauer — coloca as seguintes palavras na boca de Brás Cubas:

[...] inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre.

Ora, a vida é esta miséria em que nunca estamos satisfeitos porque o fundamento de tudo aquilo que existe, inclusive o fundamento da própria vida, é insaciável. Não haverá um ponto final de realização no qual as coisas estarão calmas. Quanto mais se observa atrás da cortina do mundo, mais tristes e decepcionados ficamos, pois não há lá um maquinário admirável, nem um diretor brilhante. Há um vazio horripilante que obriga os atores a realizarem a mesma peça incessantemente, dia após dia, sem descanso, apenas para no final serem substituídos por novos atores. A positividade iluminada pode ser mais madura do que a chamada positividade tóxica, mas ela afirma a Vontade de qualquer forma. Ela apenas não o faz de forma tão ingênua e neurótica.

Durante 170 milhões de anos, a Vontade de vida se manifestou nas diversas espécies de dinossauros que surgiam e eram extintas através de processos evolutivos impulsionados pela seleção natural intra-planetários. Isso durou até que a Vontade, em algumas de suas manifestações mais puras, isto é, na forma das forças da física, fez colidir com a Terra um asteroide de cerca de 10 quilômetros de diâmetro, a uma velocidade de 20 quilômetros por segundo. O resultado catastrófico desse evento, ocorrido há cerca de 66 milhões de anos atrás, deixou diversas marcas, como a camada de irídio repentina nos registros geológicos que cobre todo o globo, além da cratera de Chicxulub, descoberta nos anos de 1970 no Golfo do México.

A extinção em massa que se seguiu possibilitou um grupo de animais prosperar e, através de processos evolutivos impulsionados pela mesma seleção natural, se tornar senhor da Terra. Nós, humanos, somos parte desse grupo, o grupo dos mamíferos, e só pudemos existir graças a um evento cósmico que acabou com o reinado de centenas de milhões de anos de répteis gigantescos. Nada garante que o mesmo não ocorrerá novamente. Dado o nosso conhecimento atual, temos certeza de que, salvo algum milagre tecnológico ou até mesmo sobrenatural, toda a vida cessará neste planeta, como talvez já tenha cessado em outros. Não somos especiais, de verdade, e tudo o que nos cerca é contingente, isto é, depende da boa vontade de um cosmos que não está nem aí para nós. Somos como pulgas que podem ser defenestradas da face da Terra a qualquer momento, mas que acreditam que seu sofrimento vale de alguma coisa e, portanto, deve ser aturado em prol dessa alguma coisa.

Manter-se infinitamente positivo frente a este quadro pode ser visto como um ato de coragem, de desafio em face da derrota que será certa. O problema é que esse ato de coragem engendra novos sofredores que possivelmente nem entenderão essa situação e que passarão pelos suplícios que só a consciência é capaz de produzir. Nem toda sobriedade na hora de sermos positivos pode alterar esse fato. A positividade, seja ela de qual tipo for, acaba sendo sempre tóxica, pois é através dela que continuamos a dançar enquanto caímos no abismo. Uns caem mais atentamente do que outros, notando os detalhes sórdidos da queda, mas enquanto dançam, toda essa atenção não muda muita coisa, pois eles participam ou, no mínimo, incentivam os outros a participarem cada vez mais da farra caótica da vida. Afirmar a vida é fazer o jogo pernicioso da Vontade, algo desnecessário e fonte de decepção infinita.

por Fernando Olszewski