O exílio metafísico
A Morte cansada, de Pavel Karlovich |
Um dia, sem mais nem porquê, nascemos. Chegamos ao mundo, criaturas sensíveis com instintos rudimentares. O nascimento não é o nosso primeiro despertar, mas apenas um de vários que temos ao longo de nossas vidas. O primeiro ocorre ainda no útero de nossas mães, quando as conexões talamocorticais se desenvolvem ao ponto de deixarmos de ser uma massa orgânica inconsciente para sermos algo que se movimenta e reage ao mundo, lá por volta da vigésima semana de gestação.
Com o passar dos anos, vamos despertando para mais coisas. Porém, nem todo mundo desperta para todas as coisas. Ainda bem, pois se todos despertassem para todas as coisas, entrariam em desespero profundo. Se todos nós despertássemos para tudo desde o princípio da nossa jornada como espécie, inclusive, teríamos sido extintos há muito tempo, quem sabe entre o domínio do fogo e a invenção da roda. Retiro o que disse: ainda bem não, é uma pena que não despertamos todos para todas as coisas. Teríamos sido poupados de muito sofrimento, pois nossos ancestrais não teriam deixado descendentes.
Depois de chegarmos ao mundo, somos paparicados até uma certa idade, isso se tivermos a sorte de vivermos num determinado tipo de sociedade, numa determinada época da história e pertencermos a uma família razoavelmente funcional e estável. Depois desse período, começamos a ser cobrados para desempenharmos bem na vida, sermos produtivos, o que quer que isso signifique, independentemente do tipo de sociedade ou sistema político-econômico. Somos cobrados, também, a sermos gratos por termos sido colocados neste mundo onde nada é de graça exceto sensações ruins e onde é impossível sermos verdadeiramente morais.
Afinal, há mendigos morando na esquina de nossos prédios e não fazemos nada. E mesmo quando fazemos algo, deixamos de ajudar tantos outros. Esmagamos seres sensíveis com a sola de nossos sapatos quase todos os dias e nem sequer nos damos conta disso. Não precisamos sermos monstros de uma maneira ativa para entendermos que não é possível existir sem prejudicar outros seres e a nós mesmos. Por mais que tentemos — e quase nenhum de nós tenta de verdade — não dá para sermos morais sem nos negarmos completamente. É por isso que a santidade é ainda mais rara do que se imagina.
Então, aqui estamos, neste lugar que não escolhemos, neste corpo que não escolhemos, nesta vida que, francamente, não escolhemos. Você pode achar que escolheu a sua vida, principalmente se for um adulto que tomou este ou aquele caminho e se saiu relativamente bem em termos materiais, por exemplo. Mas você não escolheu quase nada. Talvez você não goste de saber disso e se recuse a aceitar que teve muito menos controle do que pensa que teve sobre o que você é. Falam de liberdade, mas não existe liberdade quando entendemos que somos organismos decadentes, paridos sem o nosso consentimento.
Rejeitamos tanto a nossa condição deplorável que preferimos acreditar pertencer a outro lugar. Desde o começo da humanidade, olhamos para os outros animais, brutos, sem noção de certo e errado, sem compaixão, e pensamos: não é possível que estejamos no mesmo nível que eles, que viemos do mesmo lugar que as feras que se devoram sem piedade. Talvez nossos corpos venham do mesmo lugar, mas não as nossas essências, pensamos. Foi daí que surgiram as religiões, a vontade de nos religarmos com a nossa verdadeira morada. O quanto não sofremos desejando voltar para a casa! Fomos exilados no mundo do eterno tornar-se, cometemos alguma transgressão original para sermos aprisionados na matéria. Pelo menos é o que esperamos.
Mas essa casa não existe. O exílio metafísico é ao mesmo tempo uma metáfora e um anseio. Aquilo que nós ansiamos é retornar ao abençoado “nada” indiferenciado do qual viemos. Coloco a palavra nada entre aspas, porque somos todos feitos de coisas que existiam, sim — partículas, átomos, energia que já fizeram parte de tantas outras coisas, inanimadas e animadas, mortas e vivas —, mas nós, tal como somos agora enquanto indivíduos viventes, não existíamos. Há quem jure que se lembra de vidas passadas e há quem saiba que isso não passa de uma ficção. E se não é ficção lembrar-se de vidas que não a nossa, essa capacidade faz parte de algo ainda mais imperscrutável que a metempsicose.
Ao mesmo tempo em que o filósofo Emil Cioran escreve, em Do inconveniente de ter nascido, que ele se sente um exilado metafísico por ter vivido a sua vida inteira com o sentimento de ter sido afastado de seu verdadeiro lugar, ele pergunta, em Nos cumes do desespero, se nossas existências não fariam de nós exilados de nossa verdadeira pátria, o nada. Já Fernando Pessoa especulou, escrevendo o seguinte: “Viver parece-me um erro metafísico da matéria, um descuido da inação.” De certa forma, é algo misericordioso, penso, sermos fruto do acaso e retornarmos ao nada com a dissolução de nossos corpos após a morte. Imagine se realmente tivéssemos que habitar outros exílios ainda piores do que este.
Mesmo os que desejam alcançar o céu como recompensa por se submeterem a este ou aquele deus querem apenas voltar para um estado onde não há iniquidade e ranger de dentes, isto é, ao estado da inexistência anterior ao nascimento. Não é a morte que desejamos, nem o céu, nem o nirvana ou o moksha. Nosso exílio no devir começou quando a nossa gestação foi bem sucedida. É lá, no começo de nossas jornadas, que está a catástrofe. Por isso é impossível remediá-la. Não temos como voltar no tempo e abortar a nós mesmos. O estrago já foi feito. Só nos resta escolher gerar ou não um novo prisioneiro da matéria, um novo expatriado do nada.
Assim é constituída a nossa condição de exílio. Muitos não a percebem, claro. Afinal, alguns exílios são mais confortáveis do que outros. Mas boa parte das pessoas nem sequer tem conforto e afirma seu quinhão de bom grado mesmo assim, feliz da vida, apesar de toda a desgraça que nos cerca. Boa parte de nós não está desperta o suficiente, não é lúcida o suficiente. Para esses, a falta de lucidez é ótima, pois conseguem tocar suas vidas na ignorância, sendo gratos por terem a oportunidade de existir no vale de lágrimas. Para alguns de seus filhos e netos que inevitavelmente desenvolverão um excesso de lucidez, isso é terrível, pois eles entendem que talvez não teriam existido se seus ancestrais não fossem idiotas deslumbrados com o samsara.
Tirando alguns poucos idiotas, penso que quase todo mundo percebe algo de errado no mundo. Não apenas no mundo humano no sentido histórico, mas no universo mesmo, na existência, naquilo que vivo chamando de “mundo do devir”. Isso não é novo, é algo sobre o qual os filósofos pensam desde antes de Sócrates e em culturas que vão da Grécia antiga à Índia de Shakyamuni e à China de Laozi. Pensadores e gurus sempre tentaram encontrar o chão estável que sustenta o tornar-se. Não é à toa que a filosofia e a religião andaram juntas por tanto tempo. Para muitos, até hoje andam.
Porém, a filosofia busca a verdade e, num determinado momento, ela percebeu a verdade dolorosa de que provavelmente não há nada estável por trás do nosso universo físico; e se há uma base para a toda a existência, ela dificilmente pode ser igualada a alguma noção que nos traga conforto, como um deus benevolente. Pelo contrário: é somente através de acrobacias mentais sem lógica que é possível imaginar a existência como sendo fundamentada numa força benevolente. Não interessa muito se há ou não um aspecto metafísico para a realidade. Somos fruto das mesmas forças físicas — e quem sabe metafísicas — que produziram as baratas e toda crença contrária não passa de quimera. As baratas vivem uma vida violenta na sujeira, mas são menos desafortunadas do que nós, porque não são capazes de alcançar um entendimento profundo de si e do resto.
Parafraseando o escritor Thomas Ligotti: por trás das paredes do universo há algo de pernicioso que faz da existência um pesadelo sem sentido. Ligotti se refere a vários filósofos pessimistas, mas principalmente Arthur Schopenhauer, para quem o mundo do devir era apenas uma coleção de manifestações de uma força metafísica única que sustenta toda a realidade: uma Vontade universal cega, sem um rumo ou um propósito cósmico, que subsiste eternamente fora do tempo e do espaço. Isso, para Ligotti, torna o pessimismo filosófico uma ideia irmã do cosmicismo de H.P. Lovecraft, célebre escritor de terror cujas histórias mostram a humanidade como insignificante e descartável num universo indiferente, dominado por criaturas grotescas, antigas e poderosíssimas.
Não há ninguém olhando por nós e, para todos os efeitos, as nossas essências não vêm de lugar nenhum, pois elas não existem ou são incognoscíveis, não importa o quanto filósofos argumentem o contrário, mesmo Schopenhauer. Como metáfora para a realidade, sua metafísica da Vontade é excelente e aterrorizante. Como realidade de fato? Difícil aceitar sem questionamentos. Ao que parece, somos originalmente do devir, infelizmente, mas não precisamos de uma estabilidade para além da realidade física para condená-lo como horrendo e fútil — ou, mais uma vez nas palavras de Ligotti, “malignamente inútil”. A pátria para a qual queremos retornar é o vazio tranquilo do inorgânico pelo qual as nossas células anseiam secretamente. A vida é o nosso exílio.
por Fernando Olszewski