Trevas

A cripta dos frades capuchinhos, de Oscar Parviainen

Uma vez que o desencanto ocorreu, houve uma breve janela de oportunidade onde o universo poderia nos impressionar como espécie. O ápice dessa janela de oportunidade provavelmente ocorreu em torno da era de ouro da exploração espacial, entre Gagarin e Armstrong. Depois, percebemos cada vez mais que o universo é em si inútil. Não é de se admirar que praticamente imploremos para retornar à idade das trevas. Parece que estamos prontamente abertos a desistir de todos os confortos que a ciência e as instituições políticas modernas nos deram para ter o conforto espiritual ou existencial que os camponeses medievais tinham. Suas vidas eram brutais e curtas, mas eles tinham a certeza de que Deus estava cuidando deles e todas as suas lutas tinham um significado maior, além desta porcaria.

Dado o que descobrimos sobre o universo ser inútil, ansiamos pelas trevas de alguma forma. Muitos querem a escuridão epistemológica que apenas um mundo dominado pelo pensamento mágico-religioso pode fornecer. Eles querem ser encantados novamente, querem que o Iluminismo seja desfeito. Bom, no mínimo eles querem que as consequências niilistas do Iluminismo sejam desfeitas enquanto tentam preservar os benefícios técnicos trazidos pelas mesmas ciências que também nos deram esse niilismo existencial. Mas, como eu disse antes, se tivessem que escolher, provavelmente ficariam felizes em abrir mão de seus confortos modernos por um retorno à idiotice feliz sob a qual a maioria das pessoas vivia.

No entanto, alguns, percebendo que não há escapatória real da verdade da futilidade, anseiam pela escuridão ontológica trazida pela morte, que não é o que eles realmente querem. O que eles realmente querem é o nada anterior ao seu nascimento. A morte é apenas um substituto pobre para isso. Ao contrário de seus numerosos irmãos e irmãs, eles olham ao redor atordoados, como se estivessem saindo de um acidente. Eles são exilados metafísicos sem nenhuma transcendência para a qual retornar. Uma vez, milhares de anos atrás, os primeiros primatas humanoides capazes de falar e ter linguagem inventaram o primeiro conto para evitar que o grupo caísse em desespero, para que pudessem sobreviver. Agora que todas essas mentiras acabaram, os exilados não querem uma nova mentira, eles só querem sair.

Há, é claro, aqueles que dizem que não querem nenhum tipo de escuridão. Muitos deles são indivíduos altamente inteligentes e talentosos em diferentes campos, das finanças às artes e ciências de base. Mas inteligência e realizações à parte, esses indivíduos não têm ideia de quão fundo na merda a humanidade se encontra no momento presente. Eles são delirantes, forçam um olhar poético sobre o fato de que são o universo observando a si mesmo. Sim, somos mesmo. E daí? Isso não muda o fato de que ele é inútil, como o grande e falecido Steven Weinberg escreveu. E não é apenas inútil, mas maligno, já que produziu inúmeras criaturas sencientes por milhões de anos. Só há poesia sombria a ser encontrada nisso. Todo o resto é só ilusão.

Agora, H.P. Lovecraft é famoso por ter iniciado o mito de Cthulhu na literatura, com base em sua própria criatividade e suas leituras da ciência contemporânea. Ele viveu numa época em que a relatividade einsteiniana estava revolucionando a física e a astronomia estava fazendo descobertas que colocava nós todos, a humanidade, numa posição de irrelevância ainda maior diante do cosmos. Ele também foi fortemente influenciado pela literatura de terror e ficção estranha que o precedeu, com nomes como Edgar Allan Poe, Robert W. Chambers e Arthur Machen vindo à mente. Talvez a citação mais famosa de Lovecraft venha de sua história, O Chamado de Cthulhu:

A coisa mais misericordiosa do mundo, eu penso, é a incapacidade da mente humana de correlacionar todos os seus conteúdos. Vivemos numa ilha plácida de ignorância no meio de mares negros de infinito, e não deveríamos viajar para longe. As ciências, cada uma se esforçando em sua própria direção, até agora nos prejudicaram pouco; mas algum dia a junção de conhecimentos dissociados abrirá vistas tão aterrorizantes da realidade e de nossa posição assustadora nela, que ou enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz para a paz e a segurança de uma nova idade das trevas.

No entanto, há outra história dele que compartilha um sentimento similar. Ela começa com um parágrafo que se assemelha ao mais famoso, mas que acredito ser ainda mais apropriado e direto ao ponto quando se trata de descrever aquilo que quero dizer quando falo sobre o desespero da humanidade após o desencanto que se seguiu ao Iluminismo. É de uma história intitulada Fatos a respeito do falecido Arthur Jermyn e de sua família:

A vida é uma coisa hedionda e, por trás do que sabemos dela, espreitam indícios demoníacos de verdade que a tornam às vezes mil vezes mais hedionda. A ciência, já opressiva com suas revelações chocantes, talvez seja a exterminadora final de nossa espécie humana -- se é que somos uma espécie separada -- pois sua reserva de horrores inimagináveis ​​jamais seria suportada por cérebros mortais se fosse solta no mundo.

Pois não é só a questão da nossa insignificância diante do cosmos que está em evidência. O desencanto tornou mais evidentes os aspectos grotescos inerentes à vida. Todos aqueles que quisessem ver poderiam perceber que não há espaço para magia no mundo. Nem mesmo na concepção humana. A biologia e a ciência médica entendem muito bem o fenômeno da vida para saber que somos sacos de carne, ossos e fluidos, produtos de fenômenos naturais como todo o resto. Nossas lutas são em defesa de genes egoístas que querem se perpetuar sem nenhum objetivo real. Somos autômatos. Marionetes. Foi isso que conhecer o mundo como ele realmente é, sem mentiras e ilusões, nos ofereceu.

De certa forma, embora eu despreze as ideias retrógradas oferecidas pelos pseudo-intelectuais por trás do chamado Iluminismo Sombrio, não posso ignorar a inquietação existencial que catapulta esses tipos de ideias para o centro das discussões. Conhecer o mundo não nos libertou, mas deixou-nos assustados e com razão. Inventar um significado pessoal ou coletivo intramundano não tem o mesmo peso que saber que somos parte de algo maior do que a própria realidade física. Ao perder o estágio sobrenatural do qual acreditávamos fazer parte, perdemo-nos no processo.

Mas nos iludir novamente com uma nova idade das trevas não é a resposta, pelo menos na minha opinião. Isso só vai atrasar o inevitável. Digamos que voltemos a ser uma humanidade retrógrada e temente a Deus. Nós questionaríamos tudo e esse questionar nos levaria ao processo de desencanto novamente. O desespero retornaria. A única maneira de não nos sentirmos assim é retornar à animalidade. Mas os animais também sofrem, só que eles não sabem disso num nível mais profundo que os força a inventar mitos para lidar com a realidade sem enlouquecerem. O melhor curso de ação não é nos iludir, mas enfrentar as consequências de nossas descobertas.

Então, descobrimos que não somos nada, pior ainda, descobrimos ser marionetes de desejos biológicos e químicos, presos às leis da física? A melhor rebelião é desistir, não participar dessa corrida maluca. Deixar o mundo para trás, num sentido real, para sempre. Nossa recusa em participar da existência é a resposta mais direta quando essa existência é definida por atrito constante e a necessidade subsequente de significados inventados. Devemos poupar a próxima geração de pessoas em potencial dessa realidade, não inventar novas mentiras para justificar a sua criação. Novas gerações também sofrerão, não importa o que façamos, e seus sofrimentos não significarão nada assim como os nossos. Retornar a uma nova idade das trevas voluntariamente é adiar o fim, que virá independentemente do que fizermos.

Nietzsche diria que esse tipo pessimismo rejeitador da vida nasce do ressentimento. Outros pensadores com perspectivas diferentes também diriam. Minha resposta a essa acusação é: e daí? Se o nosso ressentimento é justificado e não baseado em invenções, não vejo onde está o problema. E nosso ressentimento não é baseado em mentiras, mas numa compreensão clara de nossa situação como seres físicos e finitos que existem sob uma condição de atrito contínuo. O que os filósofos que se opõem à nossa vida ressentida propõem? A criação de novos mitos como o übermensch ou a deificação da história humana. No entanto, trocar os deuses não fará diferença, assim como retornar aos tempos medievais ou antigos não fará diferença. Eventualmente, esses novos mitos também morrerão, porque alguns de nós são inteligentes o suficiente para ver através deles.

Novas mitologias teriam que se transformar para permanecer vivas por mais tempo, como o cristianismo fez no Ocidente, mas elas entrarão em colapso assim como as antigas mitologias. A própria adaptação é um sinal desse colapso. Chega um momento em que ninguém mais acredita nelas. Mesmo aqueles que afirmam professá-las apenas prestam homenagem vazia aos ideais que essas mitologias representavam. É exatamente o ponto em que estamos agora, então por que perder tempo e começar todo esse processo novamente quando sabemos o resultado final? É muito simples. Olhe para os dinossauros. Somos nós em alguns milhões de anos, extintos. Não desvie o olhar, não finja que os dinossauros não existiram ou que seus fósseis foram enterrados pelo diabo para confundir os crentes e fazê-los abandonar a verdadeira fé.

Quanto mais cedo chegarmos à conclusão de que o tipo preferível de trevas é aquela do qual todos nós fomos tirados ao sermos criados, melhor. Nós retornaremos a essa escuridão independentemente do que fizermos, então por que se preocupar em construir impérios e mitologias para manter nossa tribo mundial funcionando por um pouco mais de tempo? A fetichização da consciência que impulsiona filosofias contemporâneas como o longotermismo é baseada na crença infantil de que a consciência humana é algo a ser celebrado, em vez de lamentado. Isso é algo que só poderia ter saído de culturas que enfatizam uma certa linha de pensamento analítico em vez de uma análise honesta da realidade. Eles querem levar a consciência humana a planetas diferentes, atrasando o inevitável, como tenho enfatizado.

O que esses imbecis que querem que nos tornemos uma espécie multiplanetária não entendem é que a nossa extinção inevitável não será precedida principalmente por diversão e jogos inofensivos, mas por uma grande quantidade de sofrimento, que é inerente à vida sensível e consciente. O fato de que eles próprios não percebem isso os torna muito mais ignorantes de como tudo funciona do que até mesmo aqueles que anseiam por um retorno à Idade Média. Seu culto estéril à consciência pode ainda ser um milhão de vezes mais prejudicial do que qualquer coisa que já encontramos em nossa jornada louca como espécie.

Não deveríamos viajar muito longe pelo bem de mantermos o sofrimento o mais contido possível. Viemos, vimos e o que vimos nos deixou doentes até o âmago. Chegou a hora de crescermos e pararmos de fantasiar sobre os melhores mundos possíveis que nunca virão. Deveríamos abandonar a existência em protesto contra essa realidade, não fazer planos para redefinir a história e começar novamente com uma outra idade das trevas, ou pior ainda, deificar a consciência humana e tentar expandi-la para a escuridão que cerca as estrelas. Não há nada que preste nisso. Se devemos mesmo retornar a uma era das trevas, que sejamos todos monges e freiras, ou melhor ainda, cátaros ou bogomilos, para que não deixemos descendentes.


por Fernando Olszewski