A Queda no Tempo

Gravura de Gustave Doré

O mito da queda do homem, de sua expulsão do Jardim do Éden por conta de uma transgressão original, é tão antigo quanto é presente. Ele ressoa até mesmo entre aqueles que nem sequer sabem de sua existência e mesmo entre aqueles que não cresceram sob a sombra de uma cultura abraâmica. Você pode ser de uma região do mundo adepta do bramanismo ou do budismo que, mesmo assim, será influenciado pela ideia de que há algo de errado com a realidade e que estamos aqui expiando alguma desarmonia primordial. Isso não acontece porque a expulsão de Adão e Eva foi um acontecimento verdadeiro num sentido histórico, não foi, mas porque a ideia por trás do mito da queda é verdadeira. A ideia de que perdemos algo nos primórdios da espécie, uma inocência, e de que estamos aqui sofrendo e buscando alguma forma de libertação, essa ideia perpassa diversos povos, principalmente aqueles inclinados à filosofia.

E, utilizando aqui o linguajar de Schopenhauer, pouco importa se uma religião é otimista ou pessimista: a ideia da desarmonia primordial estará presente de alguma forma nas suas mitologias constitutivas. O importante para uma religião ser classificada como otimista ou pessimista na filosofia schopenhaueriana não são tanto os pormenores sobre a criação do mundo ou profecias específicas sobre o futuro do nosso mundo, mas a forma como ela interpreta as verdades essenciais por trás dos mitos. Para Schopenhauer, o que realmente diferencia as religiões umas das outras não são as suas histórias, seus textos sagrados, seus profetas ou a quantidade de deuses, mas se elas consideram o mundo como algo essencialmente bom e que vale a pena ser continuado e defendido, ou se o condenam totalmente e pregam a renúncia daquilo que é físico. No segundo volume de O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer escreve o seguinte:

Eu não posso, como geralmente é feito, estabelecer a diferença fundamental entre todas as religiões pelo fato de serem ou monoteístas, politeístas, panteístas ou ateístas; mas apenas pelo fato de serem otimistas ou pessimistas, isto é, se expõem a existência deste mundo como justificada por si mesma, portanto, a louvam e celebram, ou a consideram como algo que só pode ser concebido como a sequência da nossa culpa e, por conseguinte, em verdade não deveria ser, na medida em que reconhecem que dor e morte não podem jazer na ordem eterna, originária e imutável das coisas, não podem jazer naquilo que deve ser em todos os sentidos.

É por isso que ele coloca aquilo que considera como sendo o cristianismo mais original, na forma do marcionismo e dos diferentes tipos de gnosticismo, no mesmo campo das religiões dármicas da Índia, enquanto coloca num campo oposto o paganismo greco-romano, judaísmo, islã e o que considera ser o cristianismo corrompido — em especial o protestantismo, por conta de sua postura anti-monástica e anti-ascética, embora também critique ferozmente o catolicismo. Enquanto condena o catolicismo pela sua violência e seus abusos vergonhosos, Schopenhauer afirma que o protestantismo é um cristianismo degenerado. Para ele, o primeiro grupo, o das religiões dármicas e do cristianismo primitivo, é pessimista, já o segundo é otimista. É importante deixar claro que uma religião ou uma filosofia pessimista, para Schopenhauer, é aquela que se aproxima mais da verdade, enquanto que religiões e filosofias otimistas estão longe da verdade. Ainda no segundo volume de O mundo como vontade e como representação, ele escreve:

[...] otimismo é nas religiões, como na filosofia, um erro fundamental, que interdita todo o caminho para a verdade.

Todas as religiões pessimistas praticam o ascetismo, isto é, todas elas possuem monges que fazem votos de pobreza e castidade, algo que, na visão de Schopenhauer, evidencia a rejeição pessoal que esses indivíduos fazem da brutal e cega Vontade metafísica que anima toda a realidade empírica e está por trás dos nossos sofrimentos. Na mesma obra, ele escreve:

[...] aquele tudo é muito bom (παντα καλα λιαν) do Antigo Testamento é realmente estranho ao cristianismo propriamente dito: pois do mundo é sempre dito no Novo Testamento que ele é algo ao qual não se pertence, que não se ama, cujo governante é o diabo. Isso concorda com o espírito ascético da abnegação do próprio si mesmo e do ultrapassamento do mundo, algo que é comum ao cristianismo, brahmanismo e buddhismo, e que evidencia o seu parentesco.

Ao criticar os textos polêmicos de Clemente de Alexandria contra os gnósticos, marcionistas, brâmanes e budistas, Schopenhauer mostra apreciação pela posição ascética e antinatalista dessas religiões. Clemente de Alexandria, vale lembrar, viveu entre os séculos II e III, sendo considerado um dos Pais da Igreja junto a figuras como Santo Irineu de Lion, Orígenes de Alexandria, Tertuliano, Santo Hipólito de Roma e Santo Agostinho. Citando parte da crítica de Schopenhauer a Clemente:

[...] ele permanece em seu princípio, de que através da sua abstinência sexual todos aqueles pecam contra o demiurgo, na medida em que ensinam que não se deve casar, não se deve gerar crianças, não se deve colocar novos infelizes no mundo, não se deve oferecer uma nova presa à morte.

O fato é que, e privilegiando aqui a tradição cristã, Schopenhauer separa a religião do Antigo e do Novo Testamento, separa seus deuses e suas mensagens, assim como fez Marcião de Sinope e diversos outros grupos dualistas do começo do cristianismo, dos barbeloítas aos valentinianos. Ele contrapõe a figura de Adão à figura de Cristo, não os considerando como personagens históricos, mas representações de ideias opostas sobre o mundo. Na sua perspectiva, Adão representa aqueles que abraçam o cosmos como uma obra boa, isso quando não o consideram como sendo perfeito. Já Cristo representa aqueles que têm uma posição anticósmica, rejeitadora da existência material. No primeiro volume de O mundo como vontade e como representação, ele escreve:

Tal pecador foi Adão, no entanto todos nós existimos nele. Adão, por sua vez, foi infeliz, e nele todos nos tornamos infelizes. — Em realidade, a doutrina do pecado original (afirmação da Vontade) e a da redenção (negação da Vontade) é a grande verdade que constitui o cerne do cristianismo, o resto sendo, na maioria das vezes, apenas vestimentas e invólucro, ou algo acessório. De acordo com isso, devemos sempre conceber Jesus Cristo no universal, como símbolo ou como personificação da negação da Vontade de vida; não no particular de acordo com a história mítica nos evangelhos ou segundo a história provavelmente verdadeira que está no fundamento deles, pois nem num caso nem no outro ficaremos inteiramente satisfeitos. Trata-se aí somente de um veículo para o povo, que sempre exige algo fático, daquela primeira concepção. — Que em nossa época o cristianismo tenha esquecido sua verdadeira significação e degenerado num otimismo rasteiro não nos concerne aqui.

Schopenhauer escreve isso na primeira metade do século XIX, mas poderia estar escrevendo hoje, especialmente a parte em que desdenha do cristianismo otimista e degenerado tão comum em nossas esquinas. Cioran, por sua vez, escreve no século XX, e sua obra lida em boa parte com a ideia da queda no tempo. Nossa expulsão do Jardim do Éden simboliza para ele o rompimento com a unidade primordial do ser, da natureza da qual fazíamos parte junto com os outros animais, sem termos plena consciência do todo, assim como eles. Nossa consciência, contudo, transformou-se. Ela se tornou demasiadamente afiada. Deixamos de ser apenas conscientes do presente, tornamo-nos lúcidos, segundo Cioran. Para ele, a lucidez é a consciência da consciência, é ser capaz de refletir e ter a consciência do tempo. Sabemos das coisas, sabemos que sofremos, além de termos pleno conhecimento de que um dia morreremos. Ter consciência num grau elevado é, inclusive, questionar o porquê de tudo isso e buscar alguma resposta, qualquer resposta, que nos ajude a encarar o terror de nossa situação absurda.

Também para Cioran, pouco importa os pormenores das mitologias religiosas que estamos falando. Tendo sido fortemente influenciado pela filosofia pessimista de Schopenhauer, Cioran também agrupa determinadas crenças num mesmo campo anticósmico. A ideia da queda do homem no tempo, de sua separação da inconsciência ou, pelo menos, de uma consciência menos consciente que compartilhávamos com o resto dos animais, queda essa que teria ocorrido após a transgressão de Adão no mito abraâmico, é perfeitamente compatível com as mitologias dármicas e com a crença num ciclo de nascimento e morte sem princípio que deve ser rompido através da iluminação, que vem na forma do moksha ou nirvana. No livro Confissões e anátemas (Aveux et anathèmes em francês; Anathemas and Admirations na versão inglesa), Cioran faz a seguinte observação:

Pecado Original e Transmigração: ambos identificam o destino com uma expiação, e não importa se estamos falando do pecado de Adão ou daqueles que cometemos em nossas existências anteriores.

O importante, mais uma vez evocando o pensamento schopenhaueriano, é a verdade filosófica que se esconde por trás das doutrinas da fé, doutrinas essas que são recheadas de histórias fictícias compostas ao longo do tempo para tornar algumas verdades mais palatáveis ao povo e fazê-lo entender a realidade sem a necessidade de uma explicação mais detalhada e muitas vezes difícil de ser aceita. O embelezamento das histórias é, de certa maneira, uma forma que a doutrina da fé encontrou para espalhar a verdade a todos. Mas há, é claro, o problema de que nem todas as doutrinas da fé estão interessadas na verdade. As ditas religiões otimistas são um exemplo disso. E mesmo religiões que inicialmente estariam interessadas na verdade se degeneram, sendo o cristianismo o melhor exemplo na visão de Schopenhauer.

O mito da queda só se aproxima da verdade quando ele não é utilizado para se fazer uma apologia sorrateira do demiurgo e do mundo criado por ele, seja a apologia feita através de interpretações literais ou quase literais, o que é mais comum nas igrejas modernas, ou seja através de interpretações simbólicas equivocadas que louvam o universo ao invés de amaldiçoá-lo, algo que é feito comumente entre aqueles que preferem ler textos sagrados de maneira alegórica ou mística. De nada adianta ler esses textos de maneira alegórica se a conclusão a qual se chega é uma de afirmação da Vontade, da existência, como um bem supremo. A interpretação correta é aquela que não se furta em apontar as falhas do mundo sem se apegar à dogmas mentirosos a respeito do mal ser puramente a ausência do bem, quando toda a realidade grita o contrário: os males, as dores, doenças, fome, apatia ou a simples ausência de algo são os motores que movem a existência, sendo os prazeres e o contentamento fugazes e temporários. Se algo é ausência na existência, esse algo é o bem: o bem é a ausência do mal.  

Pecado original, nascimento único, transmigração, metempsicose; não importa com qual roupagem vem a ideia de que o devir é uma expiação, a ideia em si permanece intacta. Quando interpretados da maneira correta, entendemos que somos “salvos” seguindo o exemplo da rejeição do mundo, seja do Cristo ou do Buda. Ser salvo, aqui, não é ir para o céu ou paraíso num sentido literal, mas ser poupado na medida do possível das aflições intrínsecas ao devir, aflições que não podem ser totalmente evitadas, exceto através do não-ser anterior ao nosso nascimento ou posterior à nossa morte. Enquanto que outros animais também sentem dor e morrem, e enquanto que alguns podem até sofrer emocionalmente, só o homem sabe disso num sentido profundo, pois “caímos no tempo” graças à nossa capacidade de entendimento. A queda no tempo, num sentido alegórico, é somente nossa. No livro apropriadamente intitulado A queda no tempo (La Chute dans le temps em francês; The Fall into Time em inglês), Cioran escreve:

O espetáculo da queda prevalece sobre o da morte: todos os seres morrem; somente o homem tem a vocação de cair. Ele está num precipício pendendo sobre a vida (como a vida, de fato, pende sobre a matéria). Quanto mais longe da vida ele se move, seja para cima ou para baixo, mais perto ele chega de sua ruína.

A situação do homem é de efemeridade e sofrimento. Estamos numa situação precária. Não é a toa que somos os únicos seres capazes de conscientemente tirar a própria vida. Em nossa condição pós-queda no tempo, somos atormentados por simplesmente existir. Na mesma obra, Cioran escreve:

Se Deus uma vez anunciou que Ele era “aquilo que é”, o homem, por outro lado, poderia definir-se como “aquilo que não é”. E é precisamente essa falta, esse déficit de existência que, despertando seu orgulho por reação, incita o homem ao desafio ou à ferocidade. Tendo abandonado suas origens, trocado a eternidade pelo devir, maltratado a vida projetando sua aberração inicial sobre ela, ele emerge do anonimato por uma série de repúdios que o tornam o grande desertor do ser. Exemplo de anti-natureza, o isolamento do homem é igualado apenas por sua precariedade. O inorgânico é suficiente para si mesmo; o orgânico é dependente, ameaçado, instável; o consciente é a quintessência da decrepitude. Uma vez desfrutamos de tudo, exceto da consciência; agora que possuímos consciência, agora que somos atormentados por ela, agora que ela figura aos nossos olhos como o inverso da inocência primária, não conseguimos nem assumi-la nem abjurá-la. Encontrar em outro lugar mais realidade do que em si mesmo é confessar que tomamos o caminho errado e que merecemos nossa queda.

Dada essa condição desgraçada do homem, Cioran se pergunta qual caminho devemos tomar. Ele escreve:

Já que tudo o que foi concebido e empreendido desde Adão é suspeito, perigoso ou fútil, o que fazer? Renunciar à raça? Isso seria esquecer que nunca se é tanto homem quanto quando se lamenta sê-lo. E tal lamento, uma vez que se apodera de alguém, não oferece meios de escape: torna-se tão inevitável e tão pesado quanto o ar...

Mas ele próprio já sabe a resposta. A pergunta é retórica. Em outra passagem, ainda em A queda no tempo, Cioran pergunta novamente:

Tudo o que nos afeta de uma forma ou de outra sendo potencialmente sofrimento, devemos concluir disso a superioridade do mineral sobre o orgânico? Nesse caso, o único recurso seria restabelecer o mais rápido possível a imperturbabilidade dos elementos.

O tempo é um erro da eternidade, a vida é um erro da matéria e, por fim, a consciência, um erro da vida, segundo o pensamento cioraniano. Em outras obras, ele escreve que somos um escândalo da biologia, gorilas que perderam seus pelos e forjaram ideais falsos para conseguir suportar a vida. Schopenhauer, por sua vez, considera o ser humano como uma manifestação superior da Vontade cega que está por trás de toda a existência. Mas até mesmo essa superioridade não é fruto de uma mente organizadora, mas apenas da necessidade de uma manifestação gradual da Vontade. Ambos concordam que somos algo que não deveria ter sido e que quanto menos consciência, melhor. Segundo Schopenhauer, ao vermos a quantidade de dor e sofrimento que se passa na Terra num único dia, deveríamos concluir que seria melhor que a Terra fosse tão estéril quanto a Lua. Já para Cioran, tudo o que diminui o reinado da consciência é bem vindo: melhor ser um animal menos complexo do que um humano, melhor uma planta do que qualquer animal, e seria melhor ainda se só existissem pedras e química inorgânica. De acordo com os dois, cada etapa que acabou produzindo seres lúcidos deve ser lamentada.

Cioran, em A queda no tempo, escreve:

Há algo sagrado em todo ser não sabe que existe, em toda forma de vida isenta de consciência. Aquele que nunca invejou o vegetal perdeu o drama humano.

Os elogios às seitas e grupos religiosos que praticaram a recusa da procriação que encontramos em Schopenhauer torna-se peça ainda mais central na obra de Cioran. No segundo volume de O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer elogia a mensagem antinatalista encontrada no texto gnóstico conhecido como Evangelho segundo os Egípcios. Cioran elogia o mesmo texto em seu livro intitulado Do Inconveniente de ter Nascido. A parte específica a qual eles se referem é uma em que Salomé pergunta à Jesus quanto tempo duraria o reino da morte, ao que Jesus responde que o reinado da morte durará enquanto houver a procriação. A ideia aqui é de que a procriação permite com que nossas essências metafísicas sejam enjauladas dentro de prisões de carne. Tanto em termos individuais quanto coletivos, uma das formas mais eficazes encontradas pelas religiões — e filosofias — pessimistas para se estancar a queda no tempo à qual os membros de nossa espécie estão submetidos é uma ética da recusa da reprodução. A geração de uma nova criatura que irá não apenas sofrer e morrer, mas saber que sofre e que morre, é a marca mais contundente da queda do homem, de nossa separação da unidade primordial, do eterno presente no qual vivem os outros animais e da inconsciência na qual existem os vegetais e as pedras.

Em O malévolo demiurgo (em francês, Le mauvais démiurge; The New Gods na versão inglesa), Cioran escreve:

Todo parto é suspeito; os anjos, felizmente, são inadequados para isso, sendo a propagação da vida reservada aos caídos.

De certa maneira, podemos pensar nos filósofos pessimistas dos últimos séculos até o presente como marcionistas, bogomilos ou cátaros perdidos na era moderna. Inimigos do demiurgo, condenam o universo que ele fabricou, ainda que considerem isso tudo de forma alegórica. Uma visão naturalista da realidade, cética de princípios metafísicos e sobrenaturais, não é de forma alguma incompatível com a alegoria de um mundo forjado por deuses monstruosos. Basta observamos a natureza de perto para entendermos que sua beleza encobre uma luta por sobrevivência cruel e sem sentido. Nós, como produtos dessa mesma natureza, somos privilegiados ou, talvez, amaldiçoados com o entendimento. Daí o mito da queda ser tão pertinente, comemos da árvore errada, a Árvore do Conhecimento, enquanto deveríamos ter comido apenas da Árvore da Vida, como faz todo o resto da criação. Agora, contudo, é tarde demais, e nossa ruína já foi decretada. Cabe apenas saber se seguiremos a ideia de Adão, mantendo a atitude de que a nossa presença no devir deve ser assegurada através da multiplicação, como está escrito em Gênesis 1:28, ou se seguiremos a ideia de Cristo, tornando-nos eunucos, num sentido metafórico, para podermos entrar no Reino dos Céus, como está escrito em Mateus 19:11-12.


por Fernando Olszewski