Cristãos que odeiam Cristo

Soldado zombando de Cristo, de Carl Bloch

O judaísmo historicamente nunca foi uma religião proselitista, isto é, nunca foi uma religião que buscava converter todos os homens para que fossem salvos, como no caso do cristianismo e do islã, as duas grandes religiões proselitistas do mundo. Houve, também, um grande período de proselitismo no budismo, com missionários sendo enviados do subcontinente indiano não apenas para a China, mas para o extremo Ocidente, chegando até mesmo ao mundo helenístico. Outra religião que buscava conversos e chegou a rivalizar durante alguns séculos com o cristianismo foi aquela iniciada pelo profeta persa Mani, que fez uma amálgama do zoroastrismo, budismo, gnosticismo e cristianismo.

Existe sim conversão ao judaísmo, mas ao contrário dessas outras mencionadas, a religião judaica em si não busca converter ninguém. Isso não implica num exclusivismo de salvação, até porque este termo não se aplica ao judaísmo da mesma forma que se aplica ao cristianismo e ao islã, por exemplo. Os gentios, isto é, os não judeus que vivem vidas justas e seguem as leis de Noé, são considerados pios segundo a crença judaica. Segundo a crença judaica, suas almas não serão amaldiçoadas, nem nada do tipo, pelo contrário. Então, não há nenhuma grande necessidade de conversão dos homens dentro da sua teologia.

Porém, se o judaísmo hoje se tornasse uma religião proselitista, ele ganharia dezenas de milhões de conversos logo nas primeiras semanas, através de milhões de cristãos que desdenham Cristo e focam a sua doutrina quase que exclusivamente no Antigo Testamento, que eles apropriaram para si ao ponto de se considerarem os verdadeiros israelitas. O princípio ascético, que além de ser histórico entre os primeiros cristãos é muito bem fundamentado biblicamente em Mateus 19:10-12, 1 Coríntios 7 e 1 João 2:15-17, é completamente rejeitado pelos cristãos que odeiam Cristo. Eles também rejeitam a total primazia da fé em Cristo em contraposição à Lei do Demiurgo, como atestado em Gálatas 3:23-25, 1 João 5:19 e 2 Coríntios 4:4. Para esses cristãos, Jesus nada fez além de confirmar as leis mais horrendas do Levítico, os acontecimentos mais dantescos do Êxodo e prometer ganhos materiais, o que é totalmente contrariado pelo Jesus bíblico em Lucas 12:33, Mateus 19:21-24.

Não cabe aqui fazer uma explicação detalhada de vinte séculos de desenvolvimento da religião cristã. Um resumo bem tosco basta. Durante os primeiros três séculos depois de Cristo, não havia uma ortodoxia estabelecida e grupos com diferentes interpretações consideravam-se cristãos do mesmo jeito e até participavam dos mesmos cultos. A partir do século II, com Pais da Igreja como Irineu de Lion, começaram a condenar grupos como marcionistas e gnósticos, e começou a surgir a ortodoxia cristã que é compartilhada até hoje pelas quatro grandes divisões da cristandade, que são, por ordem de tamanho: catolicismo, protestantismo, catolicismo ortodoxo e ortodoxia oriental.

Apesar das inúmeras divergências que separaram esses grupos ao longo da história, todas essas denominações são trinitárias, isto é, consideram que há apenas um único Deus que existe em três pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. As divergências inclusive se dão em grande parte por conta da forma como cada um desses grandes grupos interpreta a relação entre Pai, Filho e Espírito Santo; mas, novamente, não cabe aqui entrar nessas diferenças que hoje nos parecem ridículas; e concordo que sejam mesmo.

Mas, além das diferenças estéticas e teológicas, há uma diferença de prática que é bastante importante: a aprovação ou a rejeição do princípio ascético, algo que nunca foi um dogma ao qual todos deveriam obedecer, mas sempre foi bem visto aos olhos das principais igrejas cristãs durante 1500 anos. É verdade que nenhuma das grandes denominações aprova o ascetismo para todos — algo que ocorria no marcionismo, gnosticismo, bogomilismo e catarismo — visto que isso implicaria numa eventual morte de toda a humanidade através da recusa da reprodução. Mas há muitos ascetas e monges católicos e, também, nas igrejas ortodoxas e orientais. Apenas uma das grandes divisões cristãs teve como base inicial uma rejeição total ao princípio ascético: o protestantismo.

E mesmo entre protestantes surgiram alguns grupos que enfatizavam o princípio ascético através da comunhão de bens, solidariedade irrestrita e total negação da própria vontade de vida. Entretanto, também surgiu entre protestantes, mais especificamente na América do Norte, interpretações deploráveis das Escrituras, que negaram até mesmo princípios básicos da Reforma, como a recusa da venda de indulgências, isto é, a compra e venda de salvação por parte do clero da igreja. A iconoclastia da Reforma, embora supostamente mantida, é também negada, visto que há uma clara adoração da estética de bens materiais de luxo. De nada adianta reclamar dos palácios de ouro dos papas e cardeais, que também representam uma perversão da mensagem cristã, se a alternativa à isso é a ideia de que Deus recompensa os seus representantes na Terra com mansões, carrões e iates.

Daí para a completa negação do Novo Testamento é um passo. É o que se vê entre alguns cristãos contemporâneos que tratam as epístolas de Paulo como prova de que os primeiros cristãos romperam com a antiga aliança firmada entre Deus e os israelitas, considerando isso um erro, numa inversão do marcionismo e do gnosticismo. Enquanto que marcionistas e gnósticos defendiam o Deus de Jesus e rejeitavam o Demiurgo do Antigo Testamento, alguns cristãos contemporâneos defendem o Demiurgo e rejeitam o Deus de Cristo. Eles querem tanto serem judeus, querem tanto que Jesus seja apenas uma nota de rodapé que confirma o Antigo Testamento, que estão dispostos a jogar fora praticamente todo o Novo Testamento e seus apóstolos. São gnósticos e marcionistas invertidos, adoradores do Demiurgo.

O que escrevo aqui não é uma crítica ao judaísmo, que é realmente uma religião que não defende o ascetismo assim como o islã e o zoroastrismo, mas uma crítica a determinados cristãos em particular que acreditam saber mais sobre o que é o judaísmo do que os próprios judeus. Não é à toa que volta e meia eles enfrentam problemas quando viajam para a Jerusalém do século XXI e começam a pregar na rua, achando que conseguirão converter os judeus que lá vivem. É ainda mais bizarro pensar que, em termos históricos, a ânsia desses cristãos em se associarem ao judaísmo é muito estranha, visto que os líderes da Reforma eram bastante críticos ao judaísmo, a começar por Lutero, que além de mero crítico em questões teológicas foi extremamente antissemita em suas ações.

Também não faço uma defesa do resto da cristandade frente ao protestantismo, porque pouco adianta preservar o espírito ascético de abnegação própria e doação aos sofredores para alguns, ao mesmo tempo em que mantêm uma enorme estrutura arcaica, dogmática e opressiva para a maioria, uma estrutura que preza mais pela pureza teológica do que pela experiência viva do exemplo de Cristo. Sim, há frades que andam o mundo confortando os pobres sem pedir nada em troca. Há monges que negam toda vontade própria, também. Mas há mais corrupção, abusos e violência. Aqueles que são mais como Jesus dentro dessas denominações não-protestantes não as absolvem dos seus males.    

Daí vem o meu posicionamento de que a Reforma foi uma grande oportunidade perdida do ponto de vista de uma religião ou filosofia pessimista. O princípio ascético é aquilo que faz até os menos educados de nós notarem a similaridade entre figuras como a de Buda e a de Cristo, enquanto os faz perceber que Buda e Cristo não se encaixam bem com os outros profetas afirmadores do mundo. Certas religiões e filosofias são mais anticósmicas, isto é, seguem a ideia de Cristo ou de Buda, enquanto que outras não são nada anticósmicas, isto é, seguem a ideia de Adão, Moisés, Zoroastro e tantos outros profetas e patriarcas afirmadores do devir.

Se quisermos mesmo seguir a ideia de Cristo ou até mesmo a de Buda, devemos entender que este mundo é sofrimento e cabe a nós meditarmos sobre ele e sobre o nosso lugar dentro dele, além de tratarmos os outros como irmãos e irmãs de sofrimento, companheiros de infortúnios. Para fazermos isso, não precisamos acreditar em nada sobrenatural, nem em histórias fantásticas escritas há milhares de anos, nem em dogmas ou teologias, nem na ideia de que seremos salvos ou de que existe vida após a morte. Basta entendermos que devir e sofrimento são sinônimos, e que somos todos intimamente ligados uns aos outros por estarmos aqui nesta situação desesperadora.  


por Fernando Olszewski