Jesus Woke: uma breve análise filosófica a partir de Schopenhauer
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Sermão da Montanha, de Carl Bloch |
De acordo com Schopenhauer, o catolicismo era um cristianismo do qual se abusou profundamente, enquanto que o protestantismo seria um cristianismo degenerado. As razões que ele dá para isso são as seguintes: enquanto que o catolicismo manteve vivo o espírito asceta, negador da vontade, presente na mensagem cristã original, ele cometeu crimes e abusos incalculáveis ao longo de sua história; o protestantismo, porém, teria degenerado a mensagem primária do cristianismo de negação da vontade, atacando o ascetismo real, isto é, o monasticismo. Vale a pena citar uma longa passagem do segundo volume de O mundo como vontade e como representação, de Schopenhauer:
Quanto mais sublime é uma religião, tanto mais ela está aberta aos abusos por parte da natureza humana, que, no geral, é de disposição torpe e ruim: por isso no catolicismo os abusos são muito mais numerosos, e maiores, que no protestantismo. Assim, por exemplo, o monasticismo, essa metódica negação da vontade, praticada em comum para efeito de encorajamento recíproco, é uma instituição de tipo sublime, que, entretanto, justamente por isso, tem o seu espírito deturpado. Os revoltantes abusos da Igreja despertaram elevada indignação no reto espírito de Lutero. Mas, como consequência dessa indignação, ele chegou ao ponto de querer reduzir o máximo possível o próprio cristianismo, para cujo fim ele antes de tudo limitou às palavras da Bíblia, em seguida, entretanto, foi muito longe com o seu zelo bem intencionado, na medida em que, no princípio ascético, ataca o coração do cristianismo. Pois, após a deposição do princípio ascético, logo tomou necessariamente o seu lugar o princípio otimista. Mas otimismo é nas religiões, como na filosofia, um erro fundamental, que interdita todo o caminho para a verdade. Em conformidade com isso tudo, o catolicismo me parece um cristianismo do qual se abusou vergonhosamente, o protestantismo, no entanto, um cristianismo degenerado, e que o cristianismo em geral, portanto, teve o destino que cabe a todas as coisas nobres, sublimes e grandiosas, tão logo tenha de subsistir entre humanos.
No artigo intitulado Schopenhauer on Religious Pessimism (Schopenhauer sobre o Pessimismo Religioso em português), o acadêmico Dennis Vanden Auweele mostra bem que, para Schopenhauer, embora o catolicismo tenha mantido a tradição do ascetismo através do monasticismo e do celibato para membros do clero e ordens religiosas, ele se tornou uma religião otimista por rejeitar o conceito da graça. De fato, quando lemos a obra de Schopenhauer, ele imputa ao catolicismo não apenas crimes e abusos, mas também o afastamento da doutrina da graça, que diz que somos incapazes de salvarmos a nós mesmos somente pelas nossas ações. Schopenhauer vê na figura de Santo Agostinho a doutrina mais correta, enquanto rejeita Pelágio. Enquanto que Agostinho enfatizava a natureza caída do homem e de toda a criação por conta de nossa culpa primária, através do dogma do pecado original, Pelágio acreditava que não carregamos uma culpa primária em nós e que nosso arbítrio era totalmente livre para escolhermos ou rejeitarmos a mensagem de Cristo. O catolicismo, embora tivesse condenado o pelagianismo, teria escamoteado ele para dentro da Igreja ao considerar que a salvação vem tanto da fé, quanto das obras.
Schopenhauer não trata essas coisas de maneira literal, mas ideal. Para Schopenhauer, tudo no mundo empírico é fenômeno, manifestações individuadas de uma única vontade metafísica que subsiste fora das formas a priori de nossas representações mentais, o tempo e o espaço. A vontade, portanto, é atemporal e ilimitada, e tudo aquilo que existe no mundo é objetivação dela. Sendo a vontade a essência íntima de todas as coisas, inclusive a dos humanos, somos, em essência, ao mesmo tempo vítimas e malfeitores. Somos, portanto, culpados, queiramos ou não, mesmo que nós, como manifestações individuais, sejamos inocentes e não tenhamos cometido nenhuma agressão. O catolicismo, embora possua o dogma do pecado original, também abraça a ideia de salvação pelas obras, o que para Schopenhauer faz com que essa religião abrace a possibilidade da nossa natureza ser boa de uma maneira essencial. O protestantismo enfatiza a salvação pela graça divina e pela fé, enfatiza a depravação total da humanidade, colocando as boas obras apenas como consequência da salvação. Seu grande problema, para Schopenhauer, foi rejeitar o ascetismo, que é a negação da vontade. Isso fez do protestantismo uma religião otimista.
Se fôssemos cínicos, num sentido mais contemporâneo do termo e não no sentido filosófico original, poderíamos dizer que os elogios que Schopenhauer faz a Lutero e aos ideais que levaram à Reforma Protestante não passam de uma defesa à religião de seus ancestrais mais imediatos, visto que seus pais vieram de famílias protestantes, embora não fossem muito religiosos. Mas não creio que é isso que acontece na análise de Schopenhauer. Há religiões inteiras que ele considera serem fundamentadas desde o seu princípio no otimismo, isto é, na afirmação da vontade. Dentre elas, o judaísmo e o islã. Sim, ele menciona grupos, geralmente místicos, de judeus e muçulmanos que enveredam para interpretações mais pessimistas da realidade, mas diferentemente do cristianismo e do budismo, por exemplo, Schopenhauer considera essas religiões como afirmadoras da vontade desde o princípio e, portanto, otimistas, ao contrário do cristianismo original e do budismo, que seriam, para ele, religiões que negam a vontade, e portanto são pessimistas.
Mas até mesmo dentro do protestantismo Schopenhauer nota a capacidade para a negação da vontade, como no caso dos shakers. Os shakers surgiram no século XVIII e uma de suas principais doutrinas é o total celibato, algo que normalmente é visto com maus olhos pelo protestantismo mais convencional. Essa característica fez com que Schopenhauer os considerasse uma vertente pessimista do cristianismo reformado. Citando novamente uma extensa passagem do segundo volume de O mundo como vontade e como representação:
Todavia, mesmo no seio do protestantismo, o espírito essencialmente ascético e encratita do cristianismo veio de novo a lume, e o resultado disso é um fenômeno que talvez nunca tenha existido antes em tal magnitude e determinidade, a saber, a muito curiosa seita dos shakers da América do Norte, fundada por uma inglesa, Anna Lee, em 1744. Os membros desta seita já atingiram o número de 6 mil, os quais, repartidos em quinze comunidades, povoam várias pequenas cidades [...]. O traço fundamental de sua regra de vida religiosa é o celibato e a completa abstinência de toda satisfação sexual. Esta regra, segundo admitem unanimemente inclusive os ingleses e norte-americanos que os visitam, que de resto os desprezam e lhes lançam sarcasmos de todo tipo, é estrita e fielmente observada; embora irmãos e irmãs por vezes habitem até a mesma casa, comam na mesma mesa, sim, dancem juntos na Igreja por ocasião do culto [...] No intervalo de cada dança, um de seus mestres grita: “Lembrai-vos de que nos alegramos aqui, diante do Senhor, por ter matado a nossa carne! Pois este é o único uso que podemos fazer aqui de nossos membros rebeldes.”
Schopenhauer escreveu isso na primeira metade do século XIX. Os shakers hoje têm apenas dois ou três membros, tendo todos os outros morrido ou deixado o grupo por não quererem praticar o celibato. Nesse sentido, o catolicismo foi mais esperto: enquanto cultiva o celibato para uns, encoraja o matrimônio para a maioria. As linhas convencionais do protestantismo são ainda mais enfáticas: o matrimônio é encorajado para todos e o celibato mal visto.
Hoje em dia, embora muitos padres católicos em países como os Estados Unidos e, em menor parte, Brasil, tenham sido infectados pela retórica da chamada “guerra cultural” da política entre conservadores e progressistas, ela teve seu começo nos Estados Unidos entre diversas denominações protestantes, em especial no chamado Cinturão da Bíblia, região evangélica extremamente conservadora no sul daquele país. Podemos dizer que os evangélicos norte-americanos ainda provêm a maior parte do combustível que abastece o motor da guerra cultural, com reflexos não apenas nos Estados Unidos, mas em vários países do mundo, da Europa à América do Sul.
Os Estados Unidos são historicamente um país de denominações protestantes. No século XIX e XX, eles ainda passaram pelos chamados “avivamentos espirituais”, nos quais a experiência pessoal e intra-denominacional protestante foi enfatizada sobre obediência cega a autoridades eclesiásticas que muitas vezes promoviam uma fé considerada insossa e aberta demais para o mundo — o que é interessante do ponto de vista de uma filosofia schopenhaueriana, pois, embora eles dissessem que viviam para o Reino dos Céus, eles ainda eram otimistas e amantes do mundo, dada a sua oposição ao verdadeiro ascetismo, aquele que rejeita o mundo. Esses avivamentos ocorridos nos Estados Unidos foram em grande parte responsáveis pelo cenário global atual: entre os países de renda alta, os Estados Unidos são de longe o mais religioso — e os estados americanos mais violentos, menos educados e com menor expectativa de vida dos Estados Unidos são os mais religiosos e conservadores.
É dentro desse contexto que, de um ano para cá, vemos notícias sobre como diversos pastores americanos estão recebendo reclamações de seus fiéis sobre pregações chamadas de “woke”. A palavra “woke”, que significa “desperto” em português, originalmente se referia à pessoa que estava desperta às opressões e injustiças da sociedade e visava melhorá-las. Atualmente, na guerra cultural e política entre conservadores e progressistas, woke é um termo depreciativo usado por conservadores para se referir aos progressistas e suas visões culturais e políticas. Muitos pastores evangélicos não estão conseguindo pregar o Sermão da Montanha, onde Jesus diz que devemos dar a outra face, perdoar nossos inimigos, além de se posicionar contra a busca por ganhos materiais. Eles também dizem que seus fiéis reclamam dos ensinamentos de Cristo sobre ajudar os mais necessitados, as prostitutas, os doentes e abraçar os sofredores em geral. Em resumo, cristãos evangélicos acusam Jesus Cristo de ser woke demais e pedem para que se pregue mais o Antigo Testamento.
Isso vai de encontro às críticas de Schopenhauer ao protestantismo que, segundo ele, abraçou o otimismo ao rejeitar o ascetismo. Suas críticas ao protestantismo, em especial no segundo volume de O mundo como vontade e como representação, faz com que tenhamos certeza de que ele não ficaria nem um pouco surpreso se voltasse à vida nos dias atuais e visse o que se tornou essa vertente da religião cristã. De nada adianta o foco na graça se abandonamos a negação da vontade. Não é a toa que a religião evangélica passou a enfatizar cada vez mais o Antigo Testamento, que é, salvo alguns textos, afirmador da vontade. A afirmação é tamanha que se rejeita não apenas o ascetismo, mas o reconhecimento de si nos outros, o que abre espaço para a elevação do egoísmo mais atroz. A crítica à venda de indulgências, muito importante durante a Reforma Protestante, é também jogada no lixo por diversas denominações reformadas na atualidade. O grotesco “evangelho da prosperidade” é a oficialização da morte dos melhores ideais da Reforma.
A reação que esses cristãos têm, chamando Jesus de woke, não é apenas um coice político saído do éter, mas resultado de um processo histórico de mudança de pensamento, iniciado na Reforma Protestante. Renegaram o principal tema do Novo Testamento, que é a ideia de que devemos nos fazer eunucos para alcançarmos o Reino dos Céus, como Cristo diz em Mateus 19:11-12. A rejeição muitas vezes violenta do ascetismo, enfatizando a ideia de que todos devem se casar, é um tapa metafórico até mesmo na cara de Jesus, visto que ele jamais se casou e, pelo menos segundo os escritos e a tradição, nunca teve relações com ninguém. Mas o ascetismo não é um fim em si mesmo, ele representa o completo reconhecimento do indivíduo como fenômeno que se reconhece como manifestação da vontade que anima a existência empírica — e esse reconhecimento leva necessariamente o asceta a ter compaixão de todos os sofredores. Mesmo sem chegar ao ascetismo, o reconhecimento de uma união mística com tudo é algo que fez com que muitos cristãos ao longo dos séculos, mesmo aqueles que casam, fossem capazes de se reconhecer até em seus inimigos.
Dessa forma, um ateu que se doe aos necessitados de maneira genuína representa muito mais o espírito original do cristianismo do que um cristão que defende a criminalização da pobreza. É perfeitamente compreensível que cristãos que odeiam pobres, rejeitam aqueles que são diferentes e cultuam a riqueza material prefiram que seus pastores falem pouco de Jesus e foquem no Antigo Testamento. É perfeitamente compreensível que considerem Jesus como woke, progressista e coisas do tipo. Fica claro por que esses cristãos têm ojeriza àqueles outros cristãos, os que seguem o Novo Testamento sem se importar tanto com as leis tribais do velho deus.
O Novo Testamento enfatiza de forma escancarada o desapego ao mundo da matéria, a preferência pelo celibato e a compaixão, mesmo em detrimento da própria vida. Para os seus detratores cristãos anti-woke, entretanto, Jesus veio apenas para confirmar os piores aspectos do Antigo Testamento, nada mais. Mas as próprias escrituras, por mais distorcidas que sejam, confirmam o contrário: o Novo Testamento rompe com o Antigo. Há diversas passagens em que isso fica exposto, mas mencionarei aqui uma das minhas favoritas. Em Gálatas 3:23-25, São Paulo escreve:
Antes que viesse essa fé, estávamos sob a custódia da Lei, nela encerrados, até que a fé que haveria de vir fosse revelada. Assim, a Lei foi o nosso tutor até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos mais sob o controle do tutor.
Antes de concluir, porém, cabe aqui uma observação importante.
Schopenhauer ignorou questões políticas e sociais, ao ponto de ser criticado por outro grande filósofo pessimista do século XIX, Philip Mainländer. Alguns conservadores atualmente, inclusive, utilizam-se do pessimismo filosófico de Schopenhauer para dar um ar de intelectualidade às suas posições, muito embora saibam pouco de sua filosofia. Se soubessem, certamente não aprovariam suas críticas ao nosso cristianismo otimista e degenerado, nem seu elogio ao budismo e à negação da vontade. Eles teriam horror da sua preferência pela extinção, que é a finalidade última da negação da vontade, a coroa de todo o seu sistema filosófico.
Sim, caso tivesse que apostar, diria que Schopenhauer, se voltasse à vida hoje, muito provavelmente não se aliaria a marxistas, por exemplo. Mainländer estava correto ao apontar que ele ignorou quase que completamente a política. Mas, quando olhamos para a filosofia moral defendida por Schopenhauer, fica bastante claro que ele também não teria nenhuma afinidade com os auto-procralamados “cristãos conservadores”. Tais cristãos, embora antissemitas enrustidos em boa parte dos casos, acreditam que Jesus veio somente para afirmar os piores aspectos do Antigo Testamento e nada mais. Seu antissemitismo latente não os faz rejeitar o Antigo Testamento, pelo contrário, eles o tomam para si, colocando-se como os verdadeiros israelitas. Imagine o horror deles ao saber que Schopenhauer considerava os marcionistas e gnósticos como mais próximos à verdadeira mensagem de Cristo do que qualquer denominação cristã subsequente.
por Fernando Olszewski